Você já tentou pegar um vidro de mercúrio (o metal, não o remédio) sem saber que aquilo é um vidro de mercúrio? Quem já tentou, sabe o que acontece: o vidro escapa da mão na primeira tentativa.
Seu cérebro vê aquele vidrinho de 50 ml e seus músculos aplicam a força necessária para erguer 50 gramas, mais ou menos, porque estes vidrinhos normalmente têm soluções diluídas em água ou álcool. Só que 50 ml de mercúrio pesam 680 gramas.
Metais em geral são assim. Eles têm peso específico elevado. O magnésio, por exemplo, é o mais leve dos metais estruturais e tem peso específico 1,7g/cm³ — ou seja: se fosse líquido, 1 ml de magnésio pesaria 1,7 grama. A água, você sabe, pesa 1g por mililitro. É por isso que se usa magnésio nas ligas metálicas leves.
O magnésio, contudo, não é o mais leves dos metais — alguns não são estruturais, como o sódio, o potássio e o lítio. Estes três têm peso específico inferior ao da água. O mais leve deles é o lítio, pesando 0,53 g/cm³.
O lítio, você sabe, é a base das baterias dos carros elétricos atuais. Baterias de íons de lítio. E aí você pode pensar: se elas usam o metal mais leve que há, elas não deveriam ser mais leves?
Deveriam, mas não podem. Porque elas também usam níquel, manganês e cobalto. E estes metais são bem mais pesados que o lítio. O níquel, que é o metal principal da liga usada nas moedas brasileiras, pesa 8,5 g/cm³. O manganês pesa 5,95 g/cm³ e o cobalto pesa 8,83 g/cm³. E estes metais estão presentes nas baterias justamente para que elas possam funcionar como um carro elétrico precisa que elas funcionem — com uma alta concentração de armazenamento de energia e longa vida útil.
No fim das contas, apesar de usar como componente principal o metal mais leve disponível na natureza, uma bateria de carro elétrico pesa, em média, 450 kg — que é o peso de aproximadamente 500 litros de gasolina ou 550 litros de etanol hidratado. Ou 30% do peso de um sedã médio-compacto movido a combustão interna. É claramente um obstáculo que os carros elétricos precisam transpor, se pretendemos eletrificar a frota global nos próximos anos.
Só que… o peso é apenas um dos obstáculos dos carros elétricos em relação às baterias. Fabricar baterias para carros elétricos em escala global é um desafio em cada um dos aspectos envolvidos na cadeia produtiva. São eles que veremos nesta segunda parte da série “Os Desafios do Carro Elétrico”.
É a ciência
Entre 2009 e 2013 a indústria automobilística enviou 145.585 pedidos de registro propriedade industrial ao escritório de registros e patentes dos EUA. Destes, mais de 2.000 eram somente da Toyota relativos a powertrain — e isso inclui tecnologias de baterias e sistemas de alimentação de motores elétricos.
A indústria está trabalhando incessantemente — e incansavelmente — para desenvolver uma tecnologia que seja capaz de otimizar os veículos elétricos para que eles, finalmente, possam substituir plenamente os carros com motores de combustão interna. Mas há uma barreira que não depende apenas da vontade, do trabalho, dedicação e investimentos: a realidade.
Quando uma tecnologia é dominada, é possível multiplicar a produtividade multiplicando a força de trabalho ou os investimentos. Mas quando você precisa descobrir uma tecnologia nova, as coisas são diferentes. Não adianta contratar nove mulheres para gerar um filho em 1 mês. É preciso esperar os nove meses da gestação humana. A ciência não acontece no ritmo em que se deseja, mas no ritmo em que a natureza acontece.
Há dezenas de tecnologias de baterias em desenvolvimento atualmente, mas três delas são as mais promissoras: as baterias de fluxo de oxirredução, as baterias de íons de lítio em estado sólido/semi-sólido, e as baterias de metal-ar.
As baterias de fluxo de oxirredução armazenam a energia em tanques como dois eletrólitos líquidos em vez de eletrodos negativos e positivos. Os eletrólitos geram eletricidade enquanto fluem através das células das baterias e têm como principal vantagem a possibilidade de se reabastecer os eletrólitos como se fossem gasolina em um posto.
O problema dessa tecnologia é que os tanques ainda precisariam ser grandes demais (e por consequência pesados demais) para proporcionar a autonomia equivalente a de um carro movido a gasolina/etanol/diesel.
Por esse motivo um grupo de pesquisadores do Massachussets Institute of Technology, o famoso MIT, abandonou as baterias de fluxo de oxirredução para trabalhar em uma tecnologia de baterias chamada “íons de lítio semi-sólidas”. Nesse tipo de bateria um eletrólito sólido de cerâmica substitui o eletrólito líquido e, por isso, não se degrada com o tempo e ainda duplica a quantidade de energia que pode ser armazenada.
Como bônus, estas baterias não são inflamáveis e seu desempenho melhora com o calor, diferentemente das baterias atuais de íons de lítio, que perdem eficiência com o aquecimento e, por isso, precisam de arrefecimento líquido. Por outro lado, o eletrólito de cerâmica é cinco vezes mais pesado que os eletrólitos líquidos e ainda são frágeis, podendo se quebrar com os impactos inerentes à rodagem dos carros.
Já as baterias de metal-ar usam um fluxo de ar através da bateria para ativar a reação química que produz energia elétrica. Nesse sentido ela é semelhante às células de combustível, podendo ser “reabastecida” com ar comprimido. Contudo, por ser uma bateria com desenvolvimento recente, ale ainda tem um número muito limitado de cargas e recargas antes de esgotar sua vida útil.
As três tecnologias parecem promissoras, não? Elas são mesmo, mas estão prometendo esse desempenho todo desde o início da década passada. Não por incompetência dos cientistas, falta de investimentos ou recursos, mas simplesmente por que a ciência é assim.
Há ainda uma variação das atuais baterias de íons de lítio que é ainda mais promissora: as baterias de lítio-silício. Elas são como as baterias de íons de lítio atuais, porém substituem os ânodos de grafite por eletrodos de silício, que podem armazenar mais energia que o grafite.
O obstáculo, por ora, é a vida útil inferior às baterias atuais — por expandir e contrair durante a carga e descarga, os eletrodos de silício têm sua vida útil reduzida em relação às baterias atuais. Em 2017, quando estas baterias despontaram como as mais promissoras para o futuro, esperava-se que elas chegassem ao mercado em cinco anos.
Os cinco anos se passaram e elas ainda não chegaram, mas elas evoluíram significativamente a ponto de a Se tudo correr bem e as metas de prazos forem atingidas, a Porsche já pretende usar estas baterias a partir de 2024 e, com elas, a autonomia dos carros poderá chegar ao dobro do que se consegue com as baterias atuais.
Essa mudança, contudo, resolve o problema da autonomia, mas não do tempo de recarga, tampouco do peso — afinal, elas ainda serão feitas de lítio, níquel, manganês e cobalto.
Por que lítio?
Uma pergunta que você já deve ter feito é “por que as baterias usam íons de lítio e não outra composição?”. É por que, comparadas às baterias tradicionais de níquel-cádmio (pilhas AA comuns, por exemplo) ou níquel-hidreto metálico (pilhas AA recarregáveis), as baterias de íons de lítio recarregam-se mais rapidamente, têm maior densidade de energia, têm maior vida útil, conservam essa densidade maior por mais tempo, e ainda são mais leves que baterias equivalentes de outra composição.
É uma resposta um tanto óbvia: elas são as mais utilizadas porque são as que combinam melhor as características desejadas em um pacote de baterias. E isso não vale só para os carros, mas também para os aparelhos eletrônicos pessoais e domésticos: para se obter a densidade/fluxo de energia de uma bateria de smartphone comum em 2022, seria preciso, teoricamente, mais de cinco pilhas alcalinas AA. Compare os tamanhos e o peso e ficará claro o porquê de as baterias de íons de lítio serem universais atualmente.
Isso pode mudar no futuro? Claro que sim. As baterias de íons de lítio começaram a aparecer há cerca de 30 anos e só se tornaram o padrão da indústria nos últimos 15 anos. Mas o fato de terem se tornado o padrão da indústria é justamente um dos desafios que os carros elétricos precisam enfrentar.
Primeiro, porque o investimento em desenvolvimento é feito sobre elas. E não se trata só de uma questão econômica, mas de ciência, mais uma vez:
“Sem uma revolução na química não será possível reduzir os preços das baterias. As baterias acessíveis e de alta densidade de energia necessárias para parear os preços dos elétricos e dos carros a combustão, só funcionam em ambientes extremamente controlados em laboratórios.”
Depois tem a própria questão econômica:
Na verdade, elas ficaram tão baratas que, atualmente, a reciclagem não é economicamente viável — atualmente a reciclagem de baterias é subsidiado pelos governos como medida de proteção ambiental. . E ainda há uma outra guinada que leva as baterias para um caminho novo neste labirinto: o cobalto é o componente mais escasso das baterias de íons de lítio — e, por isso, também o metal mais valioso nesta composição.
Um recurso finito – e outro escasso
O problema é que o cobalto compõe o cátodo nas baterias de íons de lítio, porque ele permite o armazenamento de uma densidade maior de energia. E sendo o mais escasso dos metais, sua mineração é limitada e envolta por questões de direitos humanos que contribuem para aumentar esta escassez.
Existe a possibilidade de substituí-lo por outros tipos de cristais, com algum tempo de desenvolvimento. Porém é justamente o valor do cobalto que viabilizaria economicamente a reciclagem das baterias de íons de lítio em larga escala. Aqui é importante frisar que não se trata de uma impossibilidade de se fazer baterias mais eficientes, mas de mais um dos desafios que o carro elétrico precisa encarar.
Quanto ao lítio, as reservas são relativamente grandes — estima-se que hoje exista cerca de 21 milhões de toneladas de lítio disponíveis para mineração. Considerando que uma bateria atualmente tem, em média, 8 kg de lítio, estamos falando de lítio suficiente para mais de 2 bilhões de carros. Mas há outro problema na mineração do lítio: o custo de abertura das minas e a demanda de baterias pela indústria automobilística.
Aqui precisamos relembrar que as baterias de íons de lítio não são algo exclusivo dos carros elétricos. A produção de baterias para carros elétricos concorre com a produção de baterias para dispositivos eletrônicos de todo tipo. E, se vamos escalar a produção de baterias para automóveis, pode ser que a demanda se torne maior que a oferta em algum momento. Isso já é um consenso no setor de mineração, que foi manifestado publicamente pelo CEO da mineradora de lítio Piedmont Lithium, Keith Phillips.
, Philips disse que “existe lítio suficiente no mundo, mas não até 2035” e que, mesmo com a capacidade de mineração aumentando 20% ao ano, a oferta não será suficiente para atender a demanda global. Como consequência, Philips prevê uma alta histórica no preço do lítio ao longo da próxima década — tanto pela oferta reduzida, quanto pelo investimento significativo necessário para a abertura de novas minas de lítio.
Isso, porque espera-se que a demanda por baterias aumente dos atuais 340 GWh para mais de 3.500 GWh em 2030. Os demais componentes necessários para a montagem dos pacotes de baterias terão que crescer no mesmo ritmo.
A questão mais preocupante, contudo, é mesmo a construção de novas minas de lítio, porque todo o processo é mais demorado. Afinal, uma mina de lítio não é como um poço caipira, que você cava, encontra o mineral e começa a explorar. A abertura de uma mina envolve estudos de viabilidade que podem se estender por anos, além da capacidade de extração ser gradual — ou seja: começa-se extraindo pouco e somente depois de alguns anos é que ela atinge sua capacidade nominal projetada de extração.
Isso sem contar com a possiblidade de a reserva do mineral estar justamente em um território protegido culturalmente. É claro que haverá uma disputa e um debate público a respeito.
Voltando ao lítio, como Philips explicou, existe oferta para a demanda estimada até o fim desta década. Para a década seguinte, quando os elétricos forem os únicos veículos permitidos, haverá escassez a menos que a extração aumente seis vezes até 2030. Para isso é necessário a abertura de 50 novas minas de porte médio.
A geopolítica
Aqui chegamos a um ponto estranhamente sensível. “Estranhamente”, porque a matriz energética derivada do petróleo evidentemente despertou uma disputa geopolítica entre os países produtores de combustíveis e os países dependentes destes combustíveis. A OPEP é uma prova concreta desta disputa, assim como os acordos dela com a Rússia, e a disputa com os EUA e outros países do Ocidente.
Lembre-se, por exemplo, da alta do barril alguns anos antes da pandemia, causada por uma disputa entre a Rússia e a OPEP, visando favorecer a Rússia na disputa pelo mercado com os americanos. Se o petróleo é objeto desse tipo de disputa, por que a matriz energética baseada em eletricidade e baterias não seria?
Isso fica ainda mais evidenciado quando se percebe uma certa pressa de alguns países em abolir o uso de carros de combustão interna e adotar apenas os carros elétricos. Isso, claro, além de ter a maior demanda global de baterias e veículos elétricos.
Este país é a China. Ela produz 75% das baterias de íons de lítio do planeta, e tem 70% da capacidade produtiva de cátodos e 85% da produção de ânodos. Mais de 50% da capacidade global de processamento e refino de lítio, cobalto e grafite está na China.
A Europa também tem um forte papel na cadeia dos carros elétricos. Mais de 25% dos veículos elétricos do planeta são produzidos no continente europeu, assim como 20% do processamento global de cobalto. Os EUA, por outro lado, são um mero figurante nesta peça: somente 10% da produção de veículos elétricos e apenas 7% da produção global de baterias — enquanto é o maior produtor de petróleo do planeta, com 1/7 da produção global.
O desempenho
Além de tudo o que já foi mencionado, há uma outra questão a respeito das baterias dos carros elétricos: o desempenho. A autonomia declarada é estimada com base em condições ideais, testes com temperatura controlada ou realizados no “mundo real” em condições particulares.
O que acontece é que as baterias O pessoal do site Motortrend está fazendo uma série de testes com a badalada picape Rivian R1T.
Ao final do primeiro trecho (a viagem de ida), o carro indicava 53% da carga remanescente e 153 milhas de autonomia (246 km) — um consumo de energia razoável, considerando que a ida é 50% do caminho e com aclives no percurso. Durante a noite, contudo, a queda drástica da temperatura reduziu a carga da bateria para 45%. Na segunda noite, a variação de temperatura derrubou a bateria para 33%. Na terceira noite a carga estava em 21% e, após a quarta noite, antes da viagem de volta, as baterias tinham apenas 12% de carga remanescente.
O desafio enfrentado pelos jornalistas da Motortrend não é uma exceção. Há dezenas de sites na internet com guias de “boas práticas” para otimizar a autonomia das baterias dos carros elétricos. E ainda que seja possível traçar um paralelo com os guias de “boas práticas” para economizar combustível, um motor de combustão interna não perde autonomia porque esfriou durante a noite a ponto de te pegar desprevenido sem ter onde abastecer.
Entre as boas práticas para otimizar o uso das baterias estão recomendações dignas de um plano de voo. Uma delas recomenda estacionar o carro apenas na sombra, outra diz para nunca passar dos 80% para não “viciar” a bateria. Outra fala para se usar o pré-condicionador — a ativação remota do ar-condicionado — quando o carro ainda estiver plugado, pois isso resfria a cabine com a energia da rede e não das baterias.
Estas questões, contudo, entram em outro desafio que os carros elétricos têm pela frente, que é a aceitação do público, o desejo das pessoas. Vox populi, vox Dei. Mas isso é um papo para a terceira parte desta série.
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