O tempo vai passando, e a aura mítica dos muscle cars das décadas de 1960 e 1970 só vai ficando maior e mais densa. Por quê? Simples: com a recente transformação da indústria automobilística, crescentemente preocupada com consumo de combustível e emissões, os tempos de gasolina barata motores grandes e beberrões parece mais distante a cada dia.
Um bom exemplo de como aquela era uma época diferente está nos dealership specials – edições especiais limitadas oferecidas pelas concessionárias norte-americanas como forma de atrair clientes.
Era mais ou menos como se fazia aqui no Brasil em tempos de mercado fechado, mas o contexto não poderia ser mais distinto. Por aqui, era uma questão de necessidade: sem poder comprar os carros bacanas que eram vendidos lá fora, as lojas se esforçavam para lotar os clientes de opções, e os faziam sob demanda – caso dos Dacon, por exemplo.
Nos EUA, a questão era outra: havia muita concorrência, e as concessionárias precisavam se destacar de alguma forma – além de cumprir metas estabelecidas pelas fabricantes, elas conseguiam direcionar seus produtos ao público local, personalizando os automóveis de acordo com tendências regionais. Do lado das fabricantes, havia a velha questão do win on Sunday, sell on Monday – as preparadoras de concessionária acabavam sendo um apoio valioso na hora de criar receitas de carros de competição para arrancadas, virando verdadeiros laboratórios de pesquisa. No fim do dia, as duas partes se ajudavam. E quem saía ganhando era o público.
Neste post, vamos falar sobre algumas das concessionárias que fizeram conversões matadoras em muscle cars, nos focando em sua época de ouro: os anos 1960. Como existiram várias destas empreitadas, decidimos separá-las em uma minissérie, com cada um dos capítulos dedicado a uma das três grandes de Detroit. Além disso, nosso objetivo é falar dos especiais matadores, com modificações mecânicas interessantes – e não das séries especias que se resumiam a combinações de cores e acessórios estéticos.
O post de hoje é sobre a General Motors – que possivelmente era a mais popular entre as dealerships para fazer seus specials.
Yenko
É simplesmente impossível não começar este post falando sobre a Yenko – a concessionária que, com seu Chevrolet Camaro Yenko/SC com motor big block, levou a própria fabricante a imitar a receita.
Já falamos sobre o Yenko/SC algumas vezes aqui no FlatOut, mas não custa relembrar: na época, a Chevrolet relutava em dar ao Camaro o motor big block 427, temendo que ele canibalizasse as vendas do Corvette. Em 1967, o motor mais potente do Camaro era o V8 small block 396 (6,5 litros) com 375 cv. Don Yenko, o dono da concessionária, resolveu dar um jeito nisso com as próprias mãos – e criou uma lenda no processo. Com o big block no lugar, o Camaro dispunha de estrondosos 430 cv, e ainda recebia câmbio de quatro marchas com relações mais próximas, capô de fibra de vidro com scoop funcional e visual inspirado no próprio Corvette, suspensão traseira reforçada, e diferencial traseiro com relação 4.10. Entre 1967 e 1969 foram feitos por volta de 320 exemplares do Yenko Camaro.
Isto posto, nem só de Camaro vivia a Yenko. O próprio Don Yenko começou a preparar os carros da Chevrolet com o Corvair – o improvável carro com motor flat-6 arrefecido a ar que servia como entrada para a gama da fabricante. Entre 1966 e 1969, Yenko ofereceu o Corvair Stinger com quatro níveis de preparação – e potência que variava entre 160 e 240 cv sem o uso de qualquer tipo de indução forçada. A versão mais potente, o Stage IV, também tinha o peso aliviado, recebia gaiola de proteção, e só podia ser usado na pista. Com homologação junto à FIA e tudo.
A Yenko também oferecia um pacote de preparação para o Chevrolet Chevelle/Nova, que recebia as mesmas modificações que o Chevrolet Camaro. Entretanto, só foram feitos 38 exemplares do carro, pois a partir do ano seguinte as leis para emissões de poluentes começaram a atrapalhar este tipo de negócio.
Um carro mais desconhecido era o Chevrolet Deuce da Yenko, cujo nome era um trocadilho com “Chevy II”. Ele usava uma abordagem diferente, empregando o motor 350 preparado para render 360 cv. Era uma forma de satisfazer aos clientes que queriam um Yenko e faziam questão do seguro – algo muito difícil de se obter em um Camaro ou Nova com motor big block.
Os mais atentos vão lembrar que o nome Yenko retornou recentemente, criando versões de pista do Chevrolet Camaro moderno. Os novos Yenko usam apenas a marca, que foi comprada por uma preparadora chamada Special Vehicle Engineering, com decoração inspirada no Yenko/SC clássico e potência que varia entre 800 e 1.000 cv.
Royal Bobcat Pontiac
Nem só de Chevrolet vivia a GM dos EUA nos anos 1960 – havia também a Pontiac, cujos carros tinham uma pegada mais esportiva e descolada. E a Royal Bobcat Pontiac era, de certa forma, a Yenko da Pontiac.
Havia, porém, uma diferença interessante. Se a relação da Yenko com a Chevrolet foi uma inciativa da concessionária, que meio que obrigou a fabricante a dançar conforme a música, no caso da Royal Bobcat Pontiac a iniciativa foi mútua – a concessionária de Ace Wilson, que fundou sua empresa no fim da década de 1950, contou com todo o apoio da Pontiac desde o início.
Este apoio vinha de Jim Wangers, chefe do departamento de marketing da Pontiac. Ele ajudaria a Royal a criar versões especiais e, em troca, a fabricante tinha um belo laboratório de testes para seus motores. Win-win para todo mundo. Especialmente depois do lançamento do Pontiac GTO em 1964 – aquele que muitos reconhecem como o primeiro de todos os muscle cars. Na época, Pontiac recorreu à Ace Wilson para preparar os carros que eram enviados aos testes das revistas, incluindo a instalação de um motor V8 de 6,9 litros (421 pol³) no lugar do original de 6,4 litros (389 pol³) – devidamente disfarçado, claro – para causar uma boa impressão. Deu certo.
Nos anos seguintes, o Pontiac GTO foi a menina dos olhos da Bobcat Pontiac – que, pelas mãos de Wilson, se tornava o Bobcat GTO, completo com motor de 400 pol³ (6,55 litros), coletor de admissão de alto fluxo e um aumento na taxa de compressão. O carro também ganhava listras brancas, pneus com red stripes, freios a disco com servo-assistência e diferencial Positraction com relação 3.90.
Era o bastante para virar o quarto de milha nos 12 segundos baixos… e para vender cerca de 1.000 exemplares por ano até 1969, entre carros prontos e kits para instalação por conta própria, que podiam ser encomendados pelo correio. Bons tempos…
Baldwin-Motion
A Chevrolet podia até estar tentando proteger o Corvette quando recusou-se a colocar um big block no Camaro, mas a verdade é que o Corvette não precisava ser protegido. E ele também ganhou um dealership special pouco depois, na terceira geração (C3). Cortesia da Baldwin-Motion, concessionária que ficava em Long Island, na costa leste dos EUA.
Na década de 1960, a Baldwin-Motion oferecia kits de preparação para toda a linha de cupês da Chevrolet – do Camaro ao Impala, sempre com a garantia de que uma determinada cavalaria seria obtida, bem como os tempos no quarto-de-milha. Era literalmente um certificado de garantia – e, caso o comprador constatasse que seu carro oferecia números aquém do prometido, o dinheiro era devolvido. Mas não há registro de que tal coisa tenha ocorrido.
A Baldwin-Motion está nesta lista, porém, pelo que fez na virada da década de 1970, com o Corvette C3. O Baldwin-Motion Corvette era mais que um ‘Vette com motor preparado – ele tinha modificações radicais na carroceria (o fato de ser um carro de fibra de vidro ajudava), com uma dianteira inspirada pelos clássicos europeus dos anos 1960, como as Ferrari 250, por exemplo.
O grande atrativo estava debaixo do capô: o motor big block preparado para render 500 cv – oficialmente, pois na prática o número estava mais próximo dos 540 cv.
Ligado a uma caixa TH400 reforçada, que levava a força do motor para as rodas traseiras através de um diferencial 4.88, o Baldwin-Motion Corvette era capaz de ir de zero a 100 km/h em 4,4 segundos e de rasgar as longas rodovias americanas a mais de 240 km/h (não que a lei permitisse).
Foram vendidos poucos exemplares – apenas dez – mas a Baldwin-Motion vendeu centenas de kits para que os proprietários pudessem reproduzir a receita da preparação mecânica por contra própria.
Camaro ZL-1
O COPO Camaro ZL-1, lançado em 1969, foi o outro dealership special: ele foi encomendado pela concessionária de Fred Gibb, em La Harpe, Illinois. Gibb já tinha experiência com os motores da Chevrolet antes, e sabia que ele era o motor certo para dominar as provas de arrancada da região.
O ZL-1 era um motor V8 de 427 polegadas cúbicas (7 litros) criado para equipar o Corvette nas corridas da Can-Am. Ele era baseado no big block L88, mas tinha bloco e cabeçotes feitos de alumínio, por isso produzia mais potência que o motor original — oficialmente era 441 cv, mas dizem que os motores produziam mais de 500 cv — e pesava quase o mesmo que um 327 (5,4 litros) small block. Até mesmo a capa seca e a carcaça do câmbio de quatro marchas eram feitas de alumínio.
No fim de 1968 Gibb entrou em contato com Vince Piggins, o chefe da COPO (Central Office Production Order), divisão da Chevrolet que cuidava dos projetos feitos por encomenda na época. Piggins era o cara que dava o sinal verde para todos os projetos da divisão – e ele gostou da ideia, autorizando que Gibb encomendasse um lote de carros para realizar o projeto. Mas precisavam ser no mínimo 50 carros – o número necessário para homologar a série para as provas de arrancada da NHRA.
No fim das contas, Gibb percebeu que o alto custo para fazer cada carro seria proibitivo – imagine que um motor ZL-1 custava o mesmo que três Camaro de entrada. Seria impossível lucrar. Por isso, depois de fazer 69 carros e conseguir vender apenas 13, ele devolveu o restante à Chevrolet, que os redistribuiu a outras lojas pelos EUA. De todo modo, o ZL-1 já nasceu lendário, e hoje é um dos muscle cars mais valiosos já feitos. Dizem até que ele é o supra-sumo do Camaro de primeira geração.
Nickey Chevrolet
A Nickey Chevrolet foi fundada em 1925 em Chicago, Illinois, e já era uma das empresas mais tradicionais do mercado quando houve o boom dos muscle cars nos Estados Unidos – ao ponto de, na década de 1960, ser a concessionária que mais vendia carros e componentes de manutenção e preparação nos Estados Unidos. Famosos por seu emblema com o “K” ao contrário e por fornecer passagens de avião gratuitas aos clientes que estivessem dispostos a buscar seus carros com eles (apenas os preparados, claro), a Nickey tinha um vasto catálogo de peças para quem quisesse envenenar seu Chevrolet e dispunha de uma oficina completa para a fabricação de hot rods e carros de arrancada.
No caso dos muscle cars, como era praticamente “de lei” para o período, era o V8 big block 427, com seus 430 cv. Mas eles também ofereciam motores como o LT1, small block 350 de 375 cv, ou mesmo o big block LS6 de 454 pol³ (7,4 litros) e 450 cv.
Todos eles podiam ser instalados no Chevelle, no Nova, no Camaro ou no Corvette, e a Nickey era especialmente famosa por não ligar muito para as emissões de poluentes – eles acreditavam que, como não eram uma fabricante, tecnicamente eles estavam isentos de oferecer catalisadores e outros equipamentos para estrangular seus motores. Assim, não era incomum que seus carros fossem, digamos, “fuçados” antes dos testes e, depois que eram feitos, ganhassem escape direto para respirar melhor e fazer mais barulho.
Como a Nickey era uma empresa grande e lucrativa, eles acabavam descolando certo crédito para isto. Claro que não durou muito tempo e, no começo dos anos 1970, eles tiveram que pisar no freio e focar-se nos carros originais de fábrica, para pessoas normais.