Na primeira parte desta mini série de dois posts, falamos sobre como a BMW faz “o mesmo carro” há quase 50 anos e mostramos que, desde o lançamento do 2002, a fabricante sempre teve em seu catálogo um cupê leve e compacto com desempenho esportivo — e que ele nem sempre foi o M3.
Agora, nesta segunda parte, vamos falar do outro lado dos cupês da BMW, uma linhagem com uma pegada mais estradeira, e com modelos desenvolvidos do zero para esta missão.
BMW M1
Essa história não poderia começar com outro modelo senão o maior e mais lendário cupê da BMW, o M1. Tudo começou quando o BMW 3.0 CSL se tornou obsoleto demais para competir sob as regras do Grupo 5 no Mundial de Carros Esporte (o avô do atual WEC). Diante do problema, o chefe da BMW Motorsport, Jochen Neerspasch decidiu desengavetar um velho projeto de motor central-traseiro idealizado por Paul Bracq em 1972, o BMW Turbo.
O projeto original havia sido arquivado em favor do desenvolvimento da nova linha de sedãs da BMW, que resultaria nos primeiros Série 3, Série 5 e Série 6. Mas agora, diante da necessidade de se mostrar competitivo nas pistas, usar o conceito de motor central como base de um programa de competição parecia o caminho mais sensato a seguir.
Como o BMW Turbo original foi desenvolvido com base no motor quatro-cilindros do 2002 turbo, o projeto acabou completamente modificado. A carroceria foi desenhada por Giorgetto Giugiaro e seus designers da Italdesign com base no seis-em-linha do 3.0 CSL de corrida. A fabricação dos carros ficaria a cargo da Lamborghini, que fechou um contrato para produzir 400 exemplares e homologar o carro. Depois, o carro receberia uma versão turbo do seis-em-linha antes de cair na pista e começar a ganhar corridas.
Mas antes disso a Lamborghini teve alguns problemas financeiros e atrasou o início da produção. O prazo final seria 1977, mas os italianos acabaram falindo e a BMW cancelou o contrato em abril de 1978. O jeito foi fazer o carro como puderam: o chassi tubular foi construído pela Marchesi, a carroceria de fibra de vidro foi fornecida pela Transformazione Italiana Resina (T.I.R.) — ambas de Modena, na Itália. De lá o carro era enviado para a ItalDesign, em Turim, onde chassi e carroceria eram montados e recebiam o interior e acabamento geral. O carro então era enviado a Stuttgart, onde a encarroçadora Baur (a mesma que fabricava o Audi Quattro de homologação) instalava o conjunto mecânico. Depois o carro voltava a Munique, onde a BMW Motorsports fazia o acerto final.
Na versão de produção, o BMW M1 foi equipado com um seis-em-linha de 3,5 litros, com seis borboletas, comando duplo e injeção mecânica Kugelfisher. Ele produzia 277 cv e levava o cupê de 1.300 kg à velocidade máxima de 260 km/h. Nas versões de pista, o motor M88 recebia um turbocompressor, que elevava a potência para entre 450 e 850 cv.
No fim das contas, o M1 foi um carro perdido em seu tempo, quase sabotado por fatores externos: durante o seu desenvolvimento para o Grupo 5, a FISA mudou as regras de homologação, exigindo que os carros fossem homologados para o Grupo 4 antes do Grupo 5. A homologação para o Grupo 4, por sua vez, exigia um mínimo de 400 exemplares de rua. Para ajudar a engrossar a contagem de carros, a BMW Motorsport criou a Procar, uma categoria monomarca que colocou pilotos de Fórmula 1 e várias outras categorias em carros iguais.
O programa do M1 acabou em 1980, quando a BMW decidiu concentrar seus esforços na Fórmula 1. O M1 foi produzido até o ano seguinte, quando as últimas das 453 unidades ficaram prontas.
BMW M635i
Em 1976 a BMW lançou o sucessor do BMW E9 — a série de cupês de seis cilindros que deu origem ao 3.0 CSL — na forma da nova Série 6 (E24). A produção começou naquele mesmo ano com apenas dois modelos, o 3.0 CS de 185 cv, e o 3.3 CSi de 197 cv, capazes de chegar a 210 e a 215 km/h, respectivamente.
Apesar do sucesso do CSL, a nova geração não teve um sucessor para o modelo aliviado. Além da pegada grand tourer do E24, mais voltada ao luxo combinado com alto desempenho, o modelo do programa de automobilismo da BMW passou a ser o M1. Assim, uma versão espartana do E24 simplesmente não fazia sentido. Mas isso não significa que ele não teve sua versão de alto desempenho.
O primeiro passo foi dado em 1978, quando uma nova versão topo de linha foi lançada: a 635 CSi. O modelo tinha a cilindrada aumentada para 3,5 litros e recebeu um câmbio de cinco marchas com relações mais curtas que a de seus irmãos. Como a modificação da cilindrada foi feita com aumento do diâmetro dos pistões e redução do curso, a curva de torque ficou melhor distribuída. A potência chegou aos 218 cv e a velocidade máxima aos 222 km/h.
Além do conjunto mecânico mais esportivo, o 635CSi também tinha um spoiler dianteiro sem faróis de neblina embutidos e um spoiler preto na tampa do porta-malas. Juntos, eles reduziam a sustentação do carro em 15%.
A linha permaneceu assim até 1983, quando chegou a vez do 635 CSi passar pelo tratamento da divisão Motorsport. Na garagem do pânico bávara, o 635 CSi recebeu o motor M88 do BMW M1, porém recalibrado para produzir 286 cv, e um diferencial de deslizamento limitado com bloqueio de até 25%. Logicamente, a divisão colocou sua assinatura na obra, e assim o modelo passou a se chamar M635 CSi — e é considerado hoje o primeiro M6.
Um detalhe curioso é que o M635 CSi não usava rodas com medidas em polegadas, e sim em milímetros. Isso por que a Motorsport apostou em um novo tipo de pneus da Michelin, a linha TRX. Eles foram os primeiros pneus de perfil baixo produzidos em grande volume e foram desenvolvidos exatamente por causa de carros como o M635 CSi. Com o expressivo aumento de potência dos carros no fim dos anos 1970, os pneus da época precisaram evoluir para garantir desempenho e segurança.
Um dos caminhos mais lógicos a seguir era a adoção de perfis mais baixos, algo comum nos pneus diagonais de corrida, mas ainda pouco usados nos radiais devido ao comprometimento do conforto de rodagem. A Michelin percebeu que seria possível manter o conforto com perfis baixos se os impactos fossem distribuídos por toda a roda. Mas para isso seria preciso desenvolver o pneu juntamente com a roda, e assim surgiu o primeiro sistema de roda e pneu da história.
O único inconveniente é que os pneus TRX só poderiam ser usados com as rodas para as quais foram desenvolvidos. Para não haver confusão, as medidas da roda foram determinadas em padrão métrico: 315 mm e 415 mm, equivalentes a 12,4 polegadas e 16,3 polegadas. No exterior, essas rodas são conhecidas como “metric wheels”. No Brasil, elas são frequentemente identificadas como “rodas BMW 16,5 polegadas”.
Com motor de supercarro e pneus exóticos, o BMW M635 CSi era capaz de acelerar de zero a 100 km/h em 6,1 segundos e à máxima de 225 km/h. Ele foi produzido até 1988, quando saiu de linha sem deixar um sucessor direto. Entre 1983 e 1988, foram produzidos 4.088 unidades, sendo 1.767 “M6” americanos, com motor amansado para 260 cv (S38) pela redução de taxa de compressão e adoção de catalisador para atender às leis de emissões americanas.
BMW 850CSi
O BMW M635 CSi saiu de linha em 1988 sem um sucessor direto, mas isso não significa que ele não teve um sucessor à sua altura. Na metade de sua vida, em meados dos anos 1980, o M635 CSi já não tinha tanto fôlego para encarar o Porsche 928 e o Mercedes SL, então os engenheiros começaram a trabalhar em um novo modelo, com mais potência, mais motor, mais aerodinâmico, mais grave, mais agudo, mais tudo.
Foto: DesertMotors
O resultado foi um cupê longo e que lembrava vagamente o M1. A dianteira tinha uma linha fina de grade e faróis escamoteáveis, seguida por um longo capô e cabine recuada. As portas não tinham moldura nos vidros, nem coluna central — algo que realçava ainda mais seu perfil sinuoso. O modelo ficou em desenvolvimento por quase cinco anos, até que foi apresentado ao público no Salão de Frankfurt de 1989. Seu nome era 850i, e ele foi o primeiro modelo da inédita Série 8. O sucesso foi imediato: a BMW recebeu mais de 5.000 encomendas na primeira semana do evento.
O BMW 850i também foi primeiro BMW equipado com suspensão traseira multilink, e tinha um dos primeiros controles eletrônicos de tração e estabilidade do mundo. Foi também pioneiro no uso de um acelerador eletrônico que dispensava cabos, essencial para os modos adaptativos de condução. O motor era um V12 de cinco litros de 300 cv de potência e 42 mkgf de torque. Com o V12, ele acelerava de 0 a 100 km/h em 6,8 segundos, com máxima limitada a 250 km/h. Belos números no papel, mas que não faziam jus ao seu visual de supercarro. O motivo? Peso. O 850i pesava nada menos que duas toneladas, o que o tornava pouco ágil em qualquer lugar distante de uma autobahn.
A solução chegou em 1992, quando o 850i passou pela BMW Motorsport. A cilindrada subiu para 5.576 cm³, gerando 380 cv de potência e 56,1 mkgf de torque. A velocidade máxima continuou limitada em 250 km/h, mas a aceleração passou a ser feita de zero a 100 km/h em seis segundos cravados. Para diferenciá-lo do 850i, a Motorsport resgatou a sigla CSi do M635, e seu nome mudou para 850CSi.
Como um bom CSi, o novo modelo recebeu spoilers mais agressivos e teve sua altura rebaixada em 15 milímetros. A suspensão ganhou molas e amortecedores mais firmes, freios reforçados, direção mais direta e um diferencial traseiro de deslizamento limitado. Ele também recebeu um sistema chamado Active Rear-Axle Kinematics, que esterça as rodas traseiras em ângulos de até 2,5 graus, no mesmo sentido das rodas dianteiras.
Na verdade, o CSi só não foi batizado de M8 porque a marca tinha planos de lançar uma versão ainda mais potente com este nome — sobre o qual falamos neste post.
BMW M Coupe
O BMW M Coupe surgiu quase por acaso, como o cupê 2002 da primeira parte desta história. Nos anos 1990 alguns engenheiros da marca estavam incomodados com o Z3. Ainda que ele fosse um dos melhores hatches da época, ele simplesmente não deveria ter sido um conversível. Sério: uma equipe de cinco engenheiros da BMW M andou no carro e todos acharam que a ausência da estrutura do teto prejudicou o comportamento dinâmico do carro por dois motivos: o primeiro era a rigidez estrutural. O segundo, é que a suspensão traseira precisou ser reposicionada em relação ao projeto original para dar lugar ao mecanismo da capota retrátil.
Eles então concluíram que o carro precisava de um teto fixo e todos os dias após o expediente, eles batiam o cartão e continuavam em suas mesas trabalhando e discutindo como seria o jeito certo de fazer uma versão fechada do roadster. Com o projeto pronto eles precisaram convencer os executivos de que aquela era uma ideia viável — e eles conseguiram, desde que a equipe fizesse de tudo para reduzir seu tamanho e preço.
Assim, o M Coupe foi lançado em 1998 com duas versões de motorização — uma para os EUA, outra para a Europa. O modelo americano usava o motor S52 de 243 cv, enquanto o europeu vinha com o S50 de 325 cv. Este último era capaz de chegar aos 100 km/h em 5 segundos e continuar até os 270 km/h. Ele foi produzido assim até junho de 2000 e voltou em outubro de 2001 com o motor do BMW M3 E46, com 330 cv na versão europeia e 320 cv na versão americana.
Com o novo motor S54, ele passou a acelerar de zero a 100 km/h em apenas 4,3 segundos. Ele continuou produzido até 2002, quando o Z3 saiu de linha e as últimas das 6.315 unidades do M Coupe foram fabricadas.
Foto: Tumblr/collaverglas
Em 2006 o M Coupe voltou à cena, agora baseado no BMW Z4. O perfil “shooting brake” deu lugar a um perfil de cupê comum, mas o motor era o mesmo S54 do M3 E46, equipado com comando de válvulas variável VANOS, taxa de compressão de 10,5:1, módulo eletrônico recalibrado e cabeçote de alumínio para produzir 343 cv a 7.900 rpm e 37,2 mkgf de torque a 4.900 rpm.
Foto: Tumblr/collaverglas
Com ele, o novo M Coupe passou a acelerar de 0 a 100 km/h em 4,7 segundos e chegar aos 250 km/h (limitados eletronicamente). O câmbio é somente manual de seis marchas e freios e suspensão vêm do M3. A BMW só não chamou o Z4 M Coupe de “M4” porque não quis — ou então já planejava transformar o M3 Coupé em M4.
BMW M6
Em 2005 a BMW voltou a ter um cupê do estilo grã-turismo depois de seis anos — desde o fim da produção do Série 8 em 1999. E a volta foi em grande estilo: o cupê tinha linhas ousadas (para não dizer “polêmicas”) e o já lendário motor S85 V10 de cinco litros. Sim, um V10 da época dos V10 na Fórmula 1.
Ele produzia nada menos que 507 cv a 7.750 rpm — imagine quão orgástico é esse negócio chegando a 8.000 rpm — e acelerava de zero a 100 km/h em 4,4 segundos. O número fica ainda mais impressionante quando você leva em conta o peso do carro, 1.710 kg. A velocidade era limitada a 250 km/h, mas quem dava um jeito de desativar o limitador chegava além dos 300 km/h.
Apesar do peso alto, ele tinha teto de fibra de carbono, portas e capô de alumínio e tampa do porta-malas de compósito e termoplástico. O motor entregava a potência em dois estágios: no primeiro, ativado normalmente com a partida do carro, ele liberava 400 cv. Para conseguir os outros 107 cv era preciso ativar o botão M. Foram vendidos 9.087 M6 até 2010, quando ele saiu de linha.
Somente 701 foram equipados com câmbio manual, e os demais usam a SMG III, um câmbio sequencial semi-automático de embreagem simples.