O mercado automotivo nos EUA sempre foi bem diferente do nosso. Enquanto por aqui os hatches pequenos são a palavra de ordem, por muito tempo os americanos nem mesmo os consideravam carros — nada surpreendente para um país onde o Dodge Dart era um carro compacto. Talvez o carro que melhor simbolize esta imagem seja o Ford Festiva — não é preciso pesquisar muito para descobrir que, nos Estados Unidos, ter um Festiva e ser um fracassado na vida não são coisas muito diferentes.
Na verdade, o Festiva nem era um Ford — ele foi projetado e fabricado pela Mazda sob encomenda da marca do oval azul, que o começou a vendê-lo no Japão como Ford Festiva e na Coréia do Sul como Kia Pride em 1986, e só estreou nos EUA no fim de 1987.
O Festiva não era um carro ruim — na verdade, é só mais um hatch pequeno e quadrado feito para a cidade. Contudo, o desempenho pífio de seu quatro-cilindros de 1,3 litros e 58 cv e seu visual sem graça fizeram dele o símbolo da derrota sobre quatro rodas. Existe, contudo, um Festiva capaz de conquistar qualquer entusiasta: o Ford Festiva SHOgun.
O conceito é simples: pegar um Festiva, livrar-se do motor 1.3 e colocar algo bem mais forte em seu lugar. Quer dizer, não exatamente em seu lugar porque o SHOgun tem o motor em posição central-traseira, como os especiais de homologação do Grupo B.
O motor escolhido justifica também seu nome: trata-se do V6 encontrado debaixo do capô do Ford Taurus SHO de primeira geração, produzido entre 1989 e 1991. A pedido da Ford a japonesa Yamaha começou a desenvolver o motor SHO (sigla para Super High Output, ou “potência super alta” em uma tradução livre) a partir do V6 Vulcan em 1984.
O motor de três litros tinha algumas características que o tornavam muito avançado para sua época — cabeçote de alumínio de 24 válvulas com comando duplo e coletor de admissão de geometria variável eram algumas delas. O curso de 80mm dos pistões em cilindros de 89mm de diâmetro resultavam em um motor girador, capaz de entregar 223 cv a 6.000 rpm e 27,6 mkgf de torque a relativamente baixos 4.800 rpm, com corte de giro aos 7.300 rpm.
Não se sabe ao certo qual era o uso planejado originalmente pela Ford para o motor SHO — há relatos de rascunhos de um esportivo com motor central-traseiro —, mas o fato é que ele foi parar debaixo do capô de uma versão esportiva do Ford Taurus que, até então, era um sedã competente, porém meio insosso.
O fato é que, na virada dos anos 80 para os anos 90, um homem chamado Rick Titus queria transformar o Festiva em um carro rápido e divertido. Ele já havia sido editor da revista Motor Trend, piloto de corridas e, atualmente, é porta-voz da Ford. Mas, em 1990, ele foi o cara que teve a ideia de criar o Ford Festiva SHOgun.
Shogun era o título dado aos generais do exército japonês entre os séculos XII e XIX. Este título era concedido pelo próprio imperador, e por algumas gerações os shoguns tinham até mais poder dentro do governo do que o próprio imperador. Ao pegar um carro desenvolvido e produzido no Japão e colocar nele um motor americano com modificações de peso realizadas por japoneses, Titus deve ter achado apropriado batizá-lo de SHOgun — e ainda fez um trocadilho com o nome do motor.
Se o conceito partiu de Rick Titus, quem colocou a mão na massa foi Chuck Beck, famoso por fabricar réplicas extremamente fiéis do Porsche 550 Spyder nos EUA desde 1982. Ele sabia o que fazer quando lhe davam fibra de vidro, e ele foi o responsável por fazer o SHOgun passar de uma ideia mirabolante a algo palpável — e extremamente divertido de guiar.
Mecanicamente, não houve muito segredo: livrar-se dos bancos traseiros do Festiva, abrir um buraco no assoalho e colocar o motor e o câmbio manual de cinco marchas do Taurus SHO. Uma estrutura tubular era colocada em volta do motor, e a suspensão original do Festiva dava lugar à do SHO — um sistema independente nas quatro rodas, com amortecedores McPherson, molas helicoidais e barras estabilizadoras (estas, feitas sob medida para o diminuto Festiva).
Os freios também vinham do Taurus — discos ventilados de 10 polegadas nos quatro cantos, envoltos por rodas de 15×8 polegadas na dianteira e 16×10 polegadas na traseira.
Por dentro, o carro recebia novos instrumentos no painel, bancos Recaro e revestimento de couro. Do lado de fora, Beck fez sua mágica e, com para-lamas alargados, capô com scoop funcional (o cofre do motor agora abriga um duto para entrada de ar) e um novo para-choque, o SHOgun realmente lembra um pequeno especial de homologação para o WRC.
Com o novo motor, o que antes era um pacato Festiva se tornou um monstrinho capaz de acelerar até os 100 km/h em 4,6 segundos e fazer o quarto-de-milha em 12,9 segundos a 160 km/h, segundo um teste da Motor Trend na época — e ele nem era tão leve, pesando 1.166 kg. A revista também elogiou a dinâmica do carrinho, que, apesar de suas proporções cúbicas, não era extremamente arisco de traseira — ele tinha, sim, certa tendência ao sobresterço (por causa do peso concentrado na traseira), mas era bom de chão e não era fácil fazê-lo desgarrar de seu trajeto.
Algo entre sete e nove exemplares do SHOgun foram fabricados de 1990 a 1992, incluindo o protótipo. Sim, é um carro bem raro e obscuro, e nem mesmo a Internet fornece muito material visual sobre ele. Contudo, um exemplar ficou famoso por fazer parte da garagem de Jay Leno — quem mais? —, que foi um dos que pagaram US$ 47,5 mil (R$ 106 mil) pedidos por um exemplar do SHOgun assim que o carro começou a ser vendido.
E ele colocou um kit de injeção de óxido nitroso no porta-malas (sim, ele ainda tinha porta-malas!) do seu pequeno foguete prateado que, quando acionado, eleva a potência do V6 de 220 para cerca de 310 cv.
Raríssimo, com visual fodástico e aprovado por Jay Leno. Precisamos mesmo explicar por que o Festiva SHOgun é um dos melhores hot hatches do universo?