O desenvolvimento de um motor é um processo caro, demorado e delicadíssimo – afinal, é do coração do carro que estamos falando. É preciso a projeção e as medidas de centenas de componentes diferentes, os materiais usados, as dimensões externas e todos os demais aspectos do motor levando em conta os carros em que ele será utilizado, as exigências para consumo de combustível e emissão de poluentes e o tempo que o motor ficará no mercado. Se alguma falha de projeto passar batido e o motor for fraco demais, pouco confiável ou difícil de manter, o prejuízo para a imagem do carro, do motor e até mesmo da fabricante pode ser irreparável. É por isto que os motores costumam ficar dez, vinte, trinta anos no mercado – às vezes o processo de encontrar todos os possíveis defeitos no motor demora algum tempo. E enquanto não se acerta, é preciso arcar com o prejuízo.
Desse modo, ao longo dos anos, as fabricantes reaproveitam projetos por muito tempo, realizando atualizações incrementais a seus projetos – novos sistemas de alimentação, melhorias no fluxo de ar, materiais mais leves e resistentes. Mas a gente está falando de algo mais radical: criar um motor totalmente novo a partir de outro projeto.
Existem pelo menos três maneiras de fazê-lo: simplesmente juntar dois motores iguais para criar um terceiro motor, maior e mais potente; aproveitar as dimensões e o as características básicas de um motor, porém aumentar as proporções ou a quantidade de cilindros (modular); ou uma híbrida das duas: reaproveitar as dimensões de um projeto, porém modificar sua concepção original.
A primeira maneira é a mais graxeira de todas – e por isso costuma ser feita por entusiastas, e não fabricantes. Com a segunda maneira, é o oposto: são as fabricantes que têm mais recursos para realizar adaptações mais profundas em um projeto – criar, por exemplo, um V10 a partir de um V8 exige um refinamento maior do que simplesmente juntar dois motores para trabalhar juntos. Já a terceira maneira é, bem, ainda mais complicado. Com a lista a seguir você vai entender o que estamos querendo dizer.
O flat-8 dos irmãos Fittipaldi
Aqui no FlatOut costumamos nos referir ao carro que Wilson e Emerson Fittipaldi construíram para participar dos 1.000 Km da Guanabara como “o Fusca de dois motores dos irmãos Fittipaldi”. Isto porque, na prática, o motor flat-8 na traseira do bólido era composto por dois motores flat-4 Volkswagen, arrefecidos a ar como deve ser.
A escolha recaiu sobre o Fusca por questões de disponibilidade, custo e facilidade de preparação. Primeiro, eles pensaram em preparar o motor original, um 1300 de 46 cv. No entanto, mesmo aumentando o deslocamento, melhorando o fluxo, colocando comandos mais agressivos e carburadores maiores, dificilmente a potência passaria dos 200 cv.
Foi um de seus colegas, o engenheiro Ary Leber, que então teve a ideia: por que não juntar dois motores preparados em um só, conseguindo assim 400 cv? E foi exatamente isto o que eles fizeram. Ambos os flat-4 recebeu kits Okrsa importados para aumentar o deslocamento para 2,2 litros, e cada um deles chegou a 200 cv. Os motores foram unidos pelo virabrequim usando uma cinta elástica de FNM/Alfa 2000, e o resultado foi um flat-8 naturalmente aspirado de 4,4 litros e 400 cv.
O que importa é que, com o chassi tubular na traseira (a melhor forma de segurar o flat-8 e a suspensão em um arranjo rígido e leve) e uma carroceria de fibra de vidro de apenas 17 kg feita pela Glasspac o Fusca chegou a impressionantes 420 kg. Ou seja: estamos falando de uma relação peso/potência de 1,05 kg/cv – quase 1/1!
O Fusca flat-8 ainda usava o câmbio de um Porsche 550/1500 RS, que também forneceu os freios a tambor (!) e todo o conjunto de direção. Se ficou rápido? Nos treinos de classificação para os 1.000 Km da Guanabara de 1969, disputando contra caras como o Alfa Romeo P33 e o Ford GT40, ele conseguiu o terceiro melhor tempo. Na corrida o Fusca manteve posição durante a primeira hora da corrida, mas teve de se retirar por uma quebra no câmbio. Consertado, o Besouro de oito cilindros voltou a correr em novembro de 1970, mas foi forçado a abandonar a prova novamente – desta vez, porém, por causa de uma falha na junta que unia os motores. Depois disso, os irmãos Fittipaldi decidiram vender o carro, cujo paradeiro atual é desconhecido.
Cizeta Moroder V16T
O Fusca dos Fittipaldi é um belo exemplo da primeira maneira que citamos – a mais roots delas, e o Cizeta-Moroder V16T é outro. Mas o Fusca e o Cizeta têm uma diferença fundamental em sua filosofia. O Besouro de Wilson e Emerson foi fruto da necessidade: a solução mais rápida e simples com o que se tinha à disposição. O Cizeta, por outro lado, era deliberadamente complicado, embora também fosse feito com o que se tinha à mão na época.
Isto incluía a carroceria, que aproveitada um desenho rejeitado de Marcello Gandini para o Lamborghini Diablo (para a felicidade do designer, que apreciava muito seu próprio trabalho). Era mais rápido e barato para o engenheiro e dono de concessionária Claudio Zampolli e para o compositor de trilhas sonoras Giorgio Moroder – idealizador e patrocinador do projeto, respectivamente – comprar um projeto de carroceria já pronto do que pagar para alguém fazê-lo do zero.
O Cizeta Moroder V16T foi feito para rivalizar com o Lamborghini Countach e com a Ferrari F40, os dois supercarros do momento em 1988 – ano em que o primeiro protótipo ficou pronto. Por isso, ele deveria ser superior a eles em tudo. Desse modo, chegou-se à conclusão de que ele deveria ter não oito, não dez, não doze: dezesseis cilindros.
Para isto, porém, foi preciso… juntar dois motores de oito cilindros. A Cizeta era uma iniciativa bastante independente, e não tinha cacife para projetar um V16 do zero. A decisão lógica foi unir os motores de oito cilindros pelo virabrequim. Talvez para permanecer fiel à raiz do projeto, optou-se por dois V8 de três litros vindos do Lamborghini Urraco, cupê 2+2 que também foi desenhado por Marcello Gandini.
Os dois motores foram unidos pelo bloco, enquanto os cabeçotes continuaram separados – assim, eram quatro bancadas de quatro cilindros separadas, com dois comandos para cada cabeçote – oito comandos, no total. No entanto, cada um dos 16 cilindros tinha duas válvulas, e não quatro, o que significa que o motor tinha, no total, “apenas” 32 válvulas.
O mais impressionante era que o motor ficava montado na transversal, com o câmbio ZF de cinco marchas ficava posicionado na longitudinal, ligado ao meio do V16 por uma flange. O resultado era um carro de pouco mais de dois metros de largura, sem contar os retrovisores. O motor transversal e o formato do conjunto mecânico quando visto de cima, são as razões para o “T” no mome do carro. O Cizeta V16T não era turbinado. Naturalmente aspirado, entregava 560 cv a 8.000 rpm e 55,1 mkgf — uma boa vantagem sobre os 455 cv do Countach e os 458 cv da F40.
Acontece que, por custar caro demais (o dobro do preço de um Lamborghini!), o Cizeta Moroder V16T foi um fracasso retumbante, tendo apenas cerca de 12 exemplares fabricados até 1995. A companhia faliu pouco depois.
O motor V10 da Dodge Ram
Vamos à segunda maneira de fazer um motor novo a partir de outro. O motor V10 utilizado pela Dodge Ram é um bom exemplo porque é um derivado direto do motor V8 Magnum, na versão de 360 polegadas cúbicas (5,9 litros) – o motor do Jeep Grand Cherokee 1998, por exemplo. A Chrysler começou a considerar a ideia de criar uma versão de dez cilindros do V8 Magnum em 1988, quando o mesmo ainda nem estava pronto. Naquela época, já se falava que o motor V10 deveria ser usado na Dodge Ram – a maior picape da família, com o maior e mais potente motor a gasolina da categoria. É uma ideia atraente, de fato.
O motor Magnum 5.9 tinha diâmetro de 101,6 mm e curso de 90,9 mm, deslocando no total 5.890 mm. Na prática, o que a Chrysler fez com o V10 da Ram foi adicionar mais dois cilindros, respeitando todas as medidas do V8 no que diz respeito a diâmetro, curso e distância entre os centros dos cilindros, comprimento de bielas e demais dimensões. O motor V10 era apenas 10 cm mais longo que o V8, pois uma das mudanças em relação ao projeto foi o reposicionamento da bomba de óleo, que não ficava mais na frente do motor e sim sobre ele. O diâmetro dos cilindros era o mesmo, mas o curso foi ampliado para 98,6 mm. No total, o deslocamento do Magnum V10 era de 7.996 cm³, arredondados para oito litros.
Outras modificações incluíam uma redução na taxa de compressão, de 9,1:1 para 8,4:1 e a troca das tampas de válvula de aço estampado por peças de liga de magnésio fundido (para reduzir ruídos e melhorar a vedação das juntas). Além disso, o V10 tinha um sistema de ignição direta (sem distribuidor), o que não apenas reduzia o tamanho do motor, mas também otimizava a queima e, consequentemente, melhorava a aceleração e a eficiência energética. Em 1994, quando o V10 chegou ao mercado nas versões 2500 e 3500 da Dodge Ram, a injeção eletrônica multiponto já era usada pela família Magnum, o que ajudou no desempenho, na economia de combustível e também na durabilidade dos motores.
Com 314 cv a 4.100 rpm e 62,2 mkgf de torque a 2.400 rpm, o Magnum V10 podia não ser o mais potente V10 do planeta, mas era o motor a gasolina com a maior faixa de torque utilizável do segmento (de 1.000 a 4.000 rpm). De acordo com a Dodge, o motor da Ram a tornava mais rápida que qualquer outra picape de seu porte, fosse com câmbio automático ou manual, carregada ou vazia, sozinha ou puxando um trailer.
Mas aqui a gente tem um bônus: o motor V8 360 deu origem também ao motor do Dodge Viper, outro V10 de 7.996 cm³ (ao menos nos primeiros anos). Dito isto, apenas o projeto do bloco (que era feito de alumínio, e não ferro fundido como na Ram) era igual: o sistema de arrefecimento, o virabrequim, o desenho dos cabeçotes e dos coletores de admissão, o desenho dos pistões e das bielas e o trem de válvulas foram desenvolvidos pela Lamborghini especificamente para a aplicação no superesportivo de motor central-dianteiro.
Quer mais um bônus? O próprio motor Magnum 360 é um projeto derivado diretamente do motor LA da Chrysler, que foi lançado em 1964 e fabricado até 1991. A versão de 318 polegadas cúbicas (5,2 litros) veio parar no Brasil em outubro de 1969 debaixo do capô do Dodge Dart nacional. Ou seja: tecnicamente, o motor V10 da Dodge Ram possui certo grau de parentesco com o motor do Dart brasileiro, assim como o V10 do Viper. É claro que diversas características fundamentais do projeto foram alteradas drasticamente ao longo dos anos, mas a raiz de todos estes motores é a mesma.
O motor do Radical SR8
Até agora citamos três projetos e duas maneiras diferentes de se criar um motor a partir de outro – ou se junta dois motores iguais, ou se pega um motor que já existe e se modifica, respeitando as características fundamentais do projeto. A terceira maneira? Pegar um motor que já existe e aproveitar a base do projeto, porém adicionando novos elementos e sendo mais subversivo nas modificações de seus elementos-chave. O britânico Radical SR8, equipado com um V8 derivado de um quatro-cilindros de moto, pode ser nosso primeiro exemplo desta linha de pensamento.
O motor tem exatamente os mesmos cabeçotes da Suzuki Hayabusa, com quatro válvulas (de titânio) por cilindro, duplo comando de válvulas e corpos de borboleta individuais. O bloco, contudo, foi projetado pela Radical com base no projeto da Suzuki, porém características próprias como um novo virabrequim de plano simples, sistema de lubrificação por cárter seco redimensionado, ECU própria e componentes internos desenhados in-house.
As bancadas de cilindros ficam dispostas a um ângulo de 72° (mais aberto, ajuda a abaixar o centro de gravidade) e o deslocamento pode ser de 2,7 litros ou 3,2 litros. No primeiro caso, o motor tem diâmetro de 81 mm, enquanto no segundo caso o diâmetro é de 84 mm. Já o curso dos pistões pode ser de 61 mm ou 71,5 mm. Em ambos os casos, a rotação máxima do motor é de 10.500 rpm – suficiente para que o motor 2.7 entregue 456 cv, enquanto 3.2 é capaz de entregar 558 cv.
Ambos são opções para o Radical SR8, uma espécie de protótipo produzido em série que só pode rodar na pista, e ir até lá rebocado em um trailer. Vendo e ouvindo um deles em movimento é possível notar suas raízes nipônicas.