Há alguns dias fizemos aqui no FlatOut uma lista de motores bacanas derivados de outros motores – fossem projetos feitos por entusiastas, de forma totalmente graxeira, ou executados pelas próprias fabricantes como forma de aproveitar o potencial de motores que já existiam.
Entre as sugestões estavam o motor do Fusca flat-8 dos irmãos Fittipaldi (que entra na primeira categoria) e o motor V10 Magnum de oito litros da Mopar (que pende mais para a segunda categoria). Citamos, ainda uma terceira maneira de fazer um motor derivado de outro motor – na verdade, um misto das duas. E o primeiro exemplo que vamos citar nesta segunda parte se encaixa nesta categoria.
BRM H16
Foto: The Cahier Archive
Foi a extinta equipe britânica BRM (de British Racing Motors) que achou que era uma boa ideia usar um motor de 16 cilindros em H. Eem 1966, quando as regras da Fórmula 1 mudaram para permitir motores sobrealimentados de até 1,5 litro ou naturalmente aspirados de até três litros. A BRM escolheu a segunda opção.Mas em vez de criar um V8 ou V12 de três litros, como seria a decisão lógica, eles decidiram complicar um pouco as coisas. Primeiro, eles pegaram seu motor V8 de 1,5 litro e o transformaram em um flat-8 de 1,5 litro abrindo o ângulo entre as bancadas de cilindros para 180°. Depois, eles juntaram dois destes flat-8 em um único motor. Mas em vez de colocar os dois motores em fila indiana, eles simplesmente colocaram os motores um em cima do outro, unindo seus virabrequins por um sistema de engrenagens. De certo modo, o arranjo lembrava uma letra “H” na horizontal.
A ideia por trás do design era criar um motor mais potente e compacto do que um V12. O formato achatado do H16 permitia reduzir o centro de gravidade, enquanto o comprimento do motor era o mesmo de um quatro-cilindros em linha. É por isso que alguns aviões anteriores à década de 40 usavam motores em H. Além disso, utilizar componentes de um motor já pronto era uma ideia atraente do ponto de vista financeiro. E daria menos trabalho.
Acontece que, como você deve ter imaginado, o motor H16 era extremamente complexo e tinha problemas de durabilidade, como era de se prever. Desde o início os virabrequins vibravam demais e quebravam constantemente, assim como o exagerado trem de válvulas e o sistema de injeção mecânica. A primeira versão do motor, com 32 válvulas, entregava 400 cv a 10.250 rpm, enquanto a versaõ final, com 64 válvulas, tinha 425 cv a 10.500 rpm. Não é de se imaginar que um motor de Fórmula 1 com oito comandos para operar 64 válvulas seja um pouquinho problemático?
O BRM P83, que disputou a temporada de 1966, foi o único carro da equipe a usar o motor H16. Ele não pontuou naquele ano, e após o fim do campeonato foi aposentado porque a BRM decidiu usar um V12, mais comum. Por outro lado, o Lotus 43 utilizou o motor de 16 cilindros enquanto o Cosworth DFV não ficava pronto. Incrivelmente o carro conseguiu vencer uma corrida naquele ano: o Grande Prêmio dos EUA, com Jim Clark ao volante.
Bugatti W18
Vamos fazer uma pequena viagem no tempo: em 2014, contamos aqui no FlatOut a história dos carros conceito que deram origem ao Bugatti Veyron. Entre eles estava o EB118, um cupê esportivo de dois lugares cujo design foi encomendado pelo Grupo VW ao estúdio ItalDesign de Giorgetto Giugiaro. O carro apresentado no Salão de Paris de 1998 tinha desenho limpo e típicamente noventista, mas já trazia elementos de design que seriam vistos no Veyron, como o formato dos faróis e da grade e as formas sóbrias e agradáveis do interior.
Seu aspecto mais impressionante, porém, era o motor W18 de 6,3 litros e 563 cv. Imagine três motores de seis cilindros em linha e 2,1 litros ligados ao mesmo virabrequim, separados por um ângulo de 60°. Imaginou? Não dá medo só de pensar? Pois a VW fez um motor exatamente assim.
Na verdade, o W18 de 72 válvulas (quatro por cilindro) e seis comandos de válvulas deslocava 6.255 cm³. Além dos 563 cv, ele tinha nada menos que 66,3 mkgf de torque a 4.000 rpm. Era acoplado a uma caixa automática de cinco marchas que levava a força do motor para as quatro rodas e, de acordo com a Bugatti, o EB118 poderia teoricamente ir de zero a 100 km/h em 5,5 segundos com velocidade máxima de 330 km/h.
Havia dois grandes problemas com o motor W18. O primeiro é que ele era obviamente muito pesado, com nada menos que 318 kg. O segundo tinha a ver com o posicionamento dos coletores de admissão e escape. Nos motores em V, geralmente a admissão fica entre as bancadas de cilindros e os coletores de escape, nas laterais. É uma questão de lógica: com a admissão no meio, o ar chega mais rápido e mais frio aos corpos de borboleta, enquanto o escape nas laterais visa conseguir a maior distância possível entre fluxo dos gases de escape e o sistema de admissão. Como o motor W18 era, em essência, dois motores em “V” siameses, os coletores de admissão e escape ficavam muito próximos, e com isto o motor tinha sérios problemas de arrefecimento.
Não se sabe se a Bugatti em algum momento teve planos concretos de colocar o motor W18 em um carro de rua, e também não se sabe ao certo a origem do projeto – uma possibilidade é que o motor de três cilindros e 1,2 litro do Volkswagen Lupo, subcompacto que também foi apresentado pela Volkswagen no Salão de Paris de 1998, tenha sido o ponto de partida. Na época a Volkswagen chegou a dizer que os dois propulsores compartilhavam certas características. Um exemplo é o diâmetro dos cilindros idêntico no W18 e no três-cilindros: 76,5 mm.
A Bugatti ainda aproveitou o motor W18 em outros dois conceitos: O EB218, sedã derivado do EB118 apresentado no Salão de Genebra de 1999; e o Bugatti 18/3 Chiron, mostrado no Salão de Frankfurt naquele mesmo ano. O 18/3 Chiron, aliás, tinha a dianteira parecidíssima com o que vimos no Veyron seis anos depois.
Agora, um ponto importante: o motor W18 da Bugatti não tem parentesco algum com o motor W16 que foi, de fato, usado no Veyron. Que, aliás, é o próximo item da nossa lista.
Volkswagen W16
Como resolver o problema de superaquecimento do motor W18? Eliminando o arranjo problemático de coletores, naturalmente. Quando começou a ficar claro que um hipercarro com um número obsceno de cilindros e potência muito acima de qualquer outro superesportivo da época, a Bugatti viu que precisaria de uma solução mais eficiente e, importante, que fosse viável. Para isto, foi preciso buscar a base do projeto nas prateleiras da Volkswagen.
Por sorte, lá estava exatamente o que a Bugatti precisava: o motor VR6 da Volkswagen, que por si só já era inusitado: ele tinha duas bancadas de cilindros separadas por um ângulo de apenas 15°, diferentemente dos motores em V convencionais, que possuem ângulos maiores (sendo 65° e 90° os ângulos mais comuns). Com isto, apenas um cabeçote é necessário para abrigar as duas bancadas de cilindros. É como uma mistura de motor em V com motor em linha. Até no nome: o V vem de V-Motor, enquanto o R vem de Reihenmotor, que significa “motor em linha”. Isto faz com que o motor seja mais compacto do que um V6 convencional, e perfeito para a aplicação pretendida pela Volks: carros com motor transversal e tração dianteira que foram projetados para motores de quatro cilindros. Além disso, é possível manter o arranjo tradicional de coletores de admissão e escape usado nos motores em linha.
O motor W16, então, aplicou a mesma lógica dos motores em V formado por dois motores em linha – só que ele é um motor em W feito com dois motores VR6. O coletor de admissão fica no meio, os coletores de escape ficam do lado de fora, como deve ser.
A Bugatti batizou o motor do Veyron como 16.4 porque são 16 cilindros com quatro válvulas cada. Como muita gente sabe, além das 64 válvulas, o W16 também tem quatro comandos de válvulas e dez radiadores. São 1.014 cv a 6.000 rpm e insanos 127,5 mkgf 2.200 rpm. O motor era acoplado a uma caixa DSG, de dupla embreagem e sete marchas, e a força ia para as quatro rodas através do sistema tração integral com diferencial Haldex. Mas, para fazer tudo isto funcionar, foram necessários pouco mais de dois anos de aperfeiçoamentos — de agosto de 2003, quando o primeiro protótipo funcional ficou pronto, a novembro de 2005, quando todos os problemas do projeto foram resolvidos e o hipercarro começou a ser produzido.
O arranjo de cilindros do motor W16. Note também a quantidade de válvulas no cabeçote
Vale lembrar que os motores W8 e W12 da Volkswagen, usados por modelos como o Passat, o Phaeton e o Touareg, seguem a mesma lógica: o W8 é formado por dois “VR4” (dois VR6 com dois cilindros a menos cada), e o W12 é o fruto da união de dois VR6. Um belo exemplo de modularidade.
O flat-8 do Porsche 908
Os irmãos Fittipaldi fizeram um motor flat-8 usando dois flat-4 Volkswagen em 1969. É possível que eles tenham se inspirado no Porsche 908, que foi feito no ano anterior para competir nas 24 Horas de Le Mans e em outras provas de longa duração.
O carro era construído sobre um chassi tubular, com carroceria de fibra de vidro. Este chassi abrigava o motor flat-8 montado em posição central traseira, cuja concepção era bastante simples: dois flat-4 de quatro cilindros e 1,5 litro em fila indiana, unidos por um único virabrequim.
Era um motor de concepção simples, com arrefecimento a ar e duas válvulas por cilindro e comandos simples nos cabeçotesEstava longe de ser o state of the art da época e não era dos mais potentes, com cerca de 350 cv a 8.400 rpm, mas era confiável e robusto o bastante para as corridas de longa duração. Com ele a Porsche competiu nas 24 Horas de Le Mans e Daytona, além de outras provas de endurance como os 1.000 Km de Nürburgring.
Apesar de não ter feito muito sucesso nas pistas (esta parte ficou com o 917), o Porsche 908 era um belíssimo carro de corrida — um protótipo baixo, de linhas aerodinâmicas e sensuais, e uma longa traseira que caía suavemente até quase encostar no chão a fim de reduzir o arrasto aerodinâmico nos retões dos circuitos europeus. A partir de 1969, no entanto, a Porsche decidiu transformá-lo em um spyder de cockpit aberto e traseira mais curta, configuração que resistiu até 1981 — quando a fabricante adotou um flat-six turbinado de 2,1 litros e mais de 500 cv.