Dê uma boa olhada na foto abaixo. A plaqueta é da Mercedes-Benz, o logotipo Tiptronic é da Porsche, então trata-se de uma transmissão automática com trocas manuais.
É bem provável que você tenha pensado que a Mercedes andou licenciando ou mesmo usando transmissões automáticas da Porsche em algum momento de sua história recente. Mas agora é a hora em que eu tento te surpreender: esta foto foi feita debaixo de um Porsche 911.
Sim: o Porsche 911 usou um câmbio automático da Mercedes.
Eu poderia explicar rapidamente como e quando isso aconteceu, mas há uma relação de longa data entre as duas empresas que precisa ser contada. Pode ficar tranquilo, porque não vou voltar até os anos 1920, quando Ferdinand Porsche trabalhou na Mercedes e criou o SSK (se quiser, você pode ler mais sobre isso aqui). Minha viagem pela história irá voltar somente até os anos 1970, quando a Porsche lançou o 928.
Apesar de ser uma fabricante de esportivos, a Porsche já vinha flertando com versões automáticas desde meados dos anos 1960, quando lançou o câmbio Sportomatic no 911. Não era exatamente um câmbio automático, mas ele dispensava o pedal de embreagem, usando um atuador hidráulico para desacoplar e acoplar a ligação com um conversor de torque que substituía o volante do motor. Desta forma, as marchas eram trocadas manualmente, sem a necessidade de se pisar na embreagem. No para-e-anda do trânsito o conversor de torque entrava em cena para dar sossego ao motorista, que não precisava sequer tocar no câmbio, apenas segurar o carro no freio como em um automático convencional.
Porsche Sportomatic: a história do avô do câmbio Tiptronic e do PDK
O sistema não era grande coisa, mas já era alguma coisa. Ele tinha um ajustador de marcha lenta entre os bancos para evitar que o carro morresse quando parado, e se você esbarrasse na alavanca a embreagem era desacoplada como em uma troca de marchas. Mesmo assim, o câmbio sobreviveu até 1980 e foi usado até mesmo nas versões 2.7 do Porsche 911.
Ainda em 1980 os engenheiros da Porsche iniciaram o desenvolvimento de alternativas ao Sportomatic feitas in-house. Isso, porque a fabricante já tinha uma alternativa ao Sportomatic desde 1977, só que ela vinha de uma outra região de Stuttgart.
Quando a Porsche lançou o 928, com uma proposta mais luxuosa que a do 911, ela procurou um câmbio automático de verdade para ele, e encontrou na Mercedes-Benz a transmissão mais adequada. Inicialmente era um câmbio de três marchas, ainda da primeira geração de transmissões automáticas da Mercedes, mas em 1983 foi substituído pelo novo 4G-Tronic nos EUA — onde mais de 80% dos modelos vendidos eram equipados com o câmbio automático —, e no ano seguinte no mercado europeu. Essa transmissão de quatro marchas permaneceu no 928 até 1991, quando o câmbio foi substituído pelo ZF 4HP22.
Essa substituição aconteceu porque em meados dos anos 1980, a Porsche juntou-se à ZF para desenvolver o câmbio automático perfeito para o 911. As soluções desenvolvidas pela própria Porsche não se mostraram satisfatórias no início, e a ZF foi procurada para isso.
Usando um controle eletrônico baseado em sensores de posição e carga do acelerador, velocidade do motor e do carro, sensores dos bancos de combustível e informações da ECU do ABS, este novo câmbio se “adaptava” ao estilo de condução do motorista, selecionando um de seus cinco mapas de acordo com os dados recebidos. Era a evolução do câmbio automático. Um câmbio automático que permitiria ao Porsche 911 ser dirigido esportivamente sem os inconvenientes de uma caixa automática tradicional.
Mas eles foram além: inspirados no seletor de marchas do câmbio de embreagem dupla do Porsche 962, eles desenvolveram a opção de trocas manuais. Havia um trilho menor ao lado da posição D, no qual as marchas eram aumentadas ou reduzidas pela alavanca seletora.
Nascia ali o câmbio Tiptronic.
Até aqui esta história não faz sentido, porque a Mercedes foi trocada pela ZF, que fez o Tiptronic. Então por qual motivo a Porsche usou um Mercedes-Tiptronic?
Isso aconteceu em 2002 por uma parceria técnica na qual a Mercedes passou a utilizar a tecnologia de trocas manuais em troca do fornecimento de transmissões para a Porsche. Em 1996 a Mercedes substituiu seu antigo 4G-Tronic — então com quase 20 anos — pelo novo 5G-Tronic, também conhecido por seu código 722.6. Inicialmente ele era um automático convencional, com cinco marchas e sem opção de trocas manuais. A partir do ano 2000 o câmbio 722.6 e outros automáticos da Mercedes, passaram a usar um sistema de troca manual que aumentava as marchas para a direita e reduzia para a esquerda.
Dois anos depois, quando a Porsche lançou 996 Turbo nos EUA, ele ganhou o câmbio 722.6 da Mercedes, com cinco marchas e trocas manuais, como todo Tiptronic. Até então todas as variações do Porsche 996 Carrera 3.6 usavam o câmbio Tiptronic 5HP 19HLA da ZF, mas a partir de 2003 somente o 722.6 da Mercedes foi usado, e permaneceu em uso até o fim da produção do 996, em 2006. Quando a geração seguinte, a 997, foi lançada, o câmbio Mercedes de cinco marchas continuou equipando o 911, mas somente até 2009. Naquele ano a Porsche substituiu o Tiptronic pelo novo PDK, de embreagem dupla, que começou a ser desenvolvido nos anos 1980 — quando a Mercedes entrou em cena com seu 4G-Tronic.
Como (e por que) a Porsche levou 45 anos para chegar ao câmbio PDK
Quanto ao 5G-Tronic da Mercedes, ele foi usado até recentemente pelos Dodge Charger de polícia nos EUA e pela Ssangyong na Coréia do Sul, depois de ter servido a todas as Classes da Mercedes com tração traseira, ao SLR McLaren, aos Jeep Grand Cherokee, Commander e Wrangler, aos Dodge Magnum, Challenger, Nitro e Durango, aos Chrysler 300 e Crossfire, e aos Jaguar XJ (X308) e XK8.
Atualmente os câmbios Tiptronic ainda são usados em alguns mercados por todo o grupo Volkswagen com versões de seis marchas fabricados pela Aisin, e oito marchas fabricados pela ZF.