Em 16 de julho de 1955, Juan Manuel Fangio terminou o GP da Grã-Bretanha em segundo lugar. Ele perdeu a corrida para um então jovem piloto muito promissor chamado Stirling Moss, que viria a desafiá-lo com mais frequência a partir daquela primeira vitória, mas não foi o bastante para impedi-lo de conquistar um recorde jamais visto na F1 até então: a conquista do terceiro título mundial.
Nenhum piloto havia conseguido o feito — Fangio já havia igualado Alberto Ascari, o primeiro bicampeão da F1, mas tornou-se o primeiro tricampeão, depois o primeiro tetracampeão e, depois, o primeiro pentacampeão — um recorde que durou meio século.
Recordes são algo especial. Eles servem como registro dos limites conhecidos pela humanidade — sejam eles impostos por humanos ou como ação da natureza. O nome recorde, aliás, vem da palavra latina para “recordar”, “registrar”, “lembrar”. Os recordes são, ao mesmo tempo, o registro e um lembrete da nossa capacidade.
Neste final de semana, durante o GP da Itália em Monza, Max Verstappen, quebrador de recordes como Fangio, obteve mais uma marca inédita na Fórmula 1 e em sua carreira: venceu 10 GP consecutivos nesta temporada de 2023.
Ninguém fez nada parecido até hoje. Max também tem o recorde de vitórias em uma mesma temporada, o recorde de pódios em uma só temporada, o recorde de piloto mais jovem a vencer uma prova, o recorde de piloto mais jovem a disputar um GP, o mais jovem a vencer um GP, o mais jovem a fazer uma volta mais rápida, o piloto mais jovem a conquistar um pódio, o mais jovem a pontuar e o mais jovem a liderar uma volta.
Isso, claro, sem mencionar os registros em que ele aparece entre os 10 recordistas de todos os tempos, como o número de corridas disputadas, o número de provas concluídas consecutivamente (ou seja, sem abandonar) etc. E é justamente sobre esse tipo de recorde que eu quero falar.
A Fórmula 1, embora não pareça, divide a torcida apaixonadamente como o futebol. Schumacher e Senna, Piquet e Senna, Fangio e Schumacher, Schumacher e Hamilton, Clark e Fangio, Hamilton e Fangio, Vettel e Prost… é só escolher o nome de dois multicampeões, colocá-los em comparação e esperar a pancadaria verbal começar. O conceito de melhor pode ser objetivo: se a corrida é disputada em condições de igualdade, o melhor é quem vence.
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Mas… como você compara pilotos que nunca competiram diretamente? Que nem sempre tiveram igualdade de condições? Aí vem o apelo à suposta verdade estatística, pois “números não mentem” e as estatísticas são irrefutáveis, pois elas são recordes — lembra do significado original? São registros da realidade, guardados como um lembrete, para descobrirmos onde chegamos.
Só que… a estatística não é objetiva como pode parecer. O ditado popular diz que “estatística é a arte de torturar os números até que eles digam a verdade”. Ariano Suassuna repetia um velho adágio sobre a existência de três tipos de mentira: as maldosas, as inocentes e a estatística.
Não, a estatística não é objetiva só porque trata de números e realidade. Ela também não é subjetiva, nem absoluta. Ela é relativa. Ela depende de algo anterior a ela para que ela possa ser analisada. Um exemplo gritante de como a estatística é relativa, é um dos recordes do Max Verstappen: ele é o piloto com o maior número de pontos conquistados em uma única temporada — foram 454 em 2022. Ele também aparece na quinta posição desta tabela, com os 395,5 pontos que ele conquistou em 2021.
Essa tabela de recordes, aliás, é dominada por pilotos que correram entre 2011 e 2022 — ou seja: ninguém antes de 2011 aparece ali. A razão é óbvia: em 2010 foi introduzida a base do atual sistema de pontuação, que concede 25 pontos ao vencedor, 10 ao quinto colocado e apenas 1 ao décimo. Metade do grid pontua, já que temos 10 equipes e 20 pilotos. Em 1950, apenas os seis primeiros pontuavam, e o vencedor ganhava oito pontos. Em 1990, vencedor ganhava 10 pontos, mas só os seis primeiros pontuavam. Em 2009, o vencedor ganhava 10 pontos e só oito pilotos pontuavam.
Percebe como a estatística é relativa? Estamos comparando cenários diferentes. Para conseguir 25 pontos em 1950 era preciso vencer três corridas e chegar em sexto na quarta. Hoje um piloto consegue 25 pontos em quatro corridas chegando três vezes em sexto lugar e uma vez em quinto.
Como comparar as diferentes eras? Simples: pela proporção de pontos ganhos em relação aos pontos disputados. Resolvido, não? Max Verstappen, em 2022, conquistou 454 pontos de 597 possíveis — 76,17% do total. É o recorde? Não. Porque, em 2013, Sebastian Vettel conquistou 397 pontos dos 475 possíveis, o que corresponde a 83,58% do total disputado. Logo… Vettel é o piloto com o melhor desempenho de pontos em todos os tempos. Ou não?
Aí que está a bendita/maldita relatividade da estatística. É incontestável. Nenhum piloto antes ou depois de Vettel colheu os pontos disponíveis como ele fez em 2013. Mas… há um conceito muito esquecido pela turma devota da Nossa Senhora da Absoluta Estatística. Nessa ciência, a probabilidade de um evento acontecer aumenta à medida em que o universo da amostragem aumenta.
Por exemplo: nos EUA, elevadores e escadas rolantes hospitalizam cerca de 17.000 pessoas por ano, enquanto os acidentes aeronáuticos hospitalizam 1.000 pessoas por ano. Só que… há 18 bilhões de passageiros em elevadores e apenas 195 milhões de passageiros em aeronaves nos EUA — antes que você questione o número, uma pessoa que realiza duas viagens é contabilizada como dois passageiros, pois o dado de interesse não é o número de indivíduos, mas quantos passageiros estão no avião/elevador por viagem. Há 92 vezes mais passageiros de elevadores/escadas rolantes do que de aviões. Se há mais gente viajando em elevadores e escadas rolantes do que em aviões, a probabilidade de alguém se acidentar é maior, simplesmente por superioridade aritmética. Há mais chances de o evento ocorrer.
Juan Manuel Fangio disputou 52 corridas de Fórmula 1 em toda a sua carreira na categoria, que se estendeu de 1950 a 1958. Ele teve só 52 chances de vencer — e ao longo de sete anos, o que dá menos de oito corridas por ano. Max Verstappen fez seu 52º GP na metade da sua terceira temporada, em 2017, e atualmente já disputou 177 corridas. É natural que ele tenha tantos recordes: é o melhor de sua geração, claramente um dos melhores de todos os tempos, e teve muito mais chances de conquistar pontos, poles e vencer corridas.
O mesmo ocorre com Lewis Hamilton, que ultrapassou o número de vitórias e poles Michael Schumacher — e também aconteceu com Michael Schumacher ao ultrapassar o número de vitórias e poles de Ayrton Senna. Eles simplesmente tiveram mais chances de obter estas marcas. Senna não pôde disputar 324 GPs como Hamilton ou 308 como Michael Schumacher. Não apenas por causa de seu acidente em Ímola, mas simplesmente porque a Fórmula 1 de seu tempo tinha apenas 15 corridas por temporada. Mesmo se tivesse corrido até os 42 ou 43 anos como Schumacher, Kimi e Alonso, Senna teria disputado menos de 300 Grandes Prêmios.
Não pense, contudo, que estou tentando desmerecer Max Verstappen, Lewis Hamilton, Michael Schumacher ou Ayrton Senna. A questão é que não dá para comparar pilotos de diferentes eras pela estatística. Max é o piloto que venceu mais provas em uma temporada, é um número impressionante e inédito, e que teve no páreo outros 20 ou 30 pilotos desde que a Fórmula 1 começou a fazer temporadas de mais de 20 corridas, mas somente ele o fez.
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E aqui voltamos à relatividade da estatística: o recorde de Max mostra sua superioridade sobre os rivais nas condições atuais — desde 2016, quando tivemos a primeira temporada de 21/22 corridas. Quem quiser usar a estatística para “ganhar” uma discussão com algum traço de objetividade precisa destes recortes de contexto.
Como fazer para comparar os pilotos de diferentes eras, então? Simples: não compare. Não existe motivo plausível ou racional para fazer isso. E se não for racional, aí entramos em discussões subjetivas, que envolvem a opinião de cada um. Além de serem discussões insuportavelmente chatas e que não chegam a lugar nenhum.
Eu, particularmente, tenho no meu panteão pessoal de heróis da Fórmula 1 Jack Brabham, Bruce McLaren, Dan Gurney, Stirling Moss e Rubens Barrichello. Os motivos são subjetivos — já falei deles aqui, aqui, aqui e aqui. Para os torcedores que não viram Fangio, mas chegaram antes de Ayrton Senna, Jim Clark foi o maior de todos os tempos. Só que o próprio Jim Clark “temia” Dan Gurney, que venceu quatro corridas. Para quem viu Fangio, Clark e Senna, os três são a “divina trindade” da Fórmula 1. Os mais novos tendem a preferir Schumacher, Hamilton ou Max. Ou os três.
O resumo da história é que a estatística não prova nada. Só registra que algum piloto aproveitou melhor as condições que lhe foram dadas em determinado período. E, não por acaso, os recordistas de cada período são justamente estes que colocamos nestas comparações inúteis. Mas se você insiste nas estatísticas, aqui vai uma muito boa, trazida por Jackie Stewart há alguns anos:
Sabe quantas pessoas dirigem no mundo? Milhões. Quantos pilotos licenciados existem? Milhares, mas só alguns competem. Dentre as centenas de competidores, somente alguns são realmente bons. Depois vem a Fórmula 1. Só há 21 pilotos na Fórmula 1. Destes 21 pilotos só seis são realmente bons. Destes, só três são excepcionais. Geralmente só um deles é genial.
Desde 1950, apenas 599 pilotos diferentes sentaram-se em um carro de Fórmula 1. Destes, somente 94 venceram ao menos um GP (um a cada seis pilotos). Dois GPs? 65 pilotos. Três GPs? 59 — há dois campeões mundiais aqui, acredite — e nenhum deles é Keke Rosberg, que foi campeão com uma única vitória na temporada de 1982.
Se a estatística de Sir Jackie Stewart estiver correta, não há mais que 20 gênios em toda a história da Fórmula 1. Nós sabemos exatamente quem eles são, porque para procurar seus números, precisamos saber seus nomes. E sabemos seus nomes não por causa dos recordes que eles conquistaram, mas pela forma que eles conquistaram estes recordes.