Honda Civic, Toyota Corolla, Volkswagen Golf, Renault Clio, Volkswagen Polo, BMW Série 3, Mercedes Classe C, Opel Corsa, Porsche 911, Ford Mustang. Sabe o que esses carros têm em comum? Todos eles são produzidos há, pelo menos, 30 anos, atravessando gerações e sempre se renovando, mas mantendo a identidade além do nome.
Carros diferentes, sim. Mas como eu e você somos diferentes do que éramos há 25 anos, estes carros também são. A essência, contudo, se mantém.
O Gol poderia estar nesta lista, como o Polo e o Golf, mas a Volkswagen decidiu matá-lo na semana passada. Então agora ele não faz mais parte dos carros que resistem ao tempo e se tornam verdadeiros clássicos da indústria.
O fim do Gol não parece ter causado tanta comoção. Ele já vinha esquecido há algum tempo, preterido em nome dos modernos SUV com alguma razão. Mas, como diria o MAO, vamos lá, pessoal… o Gol não é só um carro. Ele é uma instituição nacional. Se nossa indústria automobilística tem 65 anos e o Gol esteve presente em 42 destes anos, significa que ele fez parte de 65% dessa história.
Não sei se você já se deu conta, mas só a Kombi foi feita por mais tempo que o Gol no Brasil. Nenhum outro carro, nem o Fiat Uno, nem o Chevrolet Opala e nem mesmo o Fusca foram feitos por tanto tempo nestas terras.
Então, por mais esquecido que ele estivesse, acabar com uma instituição nacional sobre rodas é, no mínimo, estranho, não? Por que não renová-lo? Por que o Virtus e o Polo não foram batizados de Gol? Só para manter a linhagem. O Polo nunca foi muito relevante por aqui mesmo, apesar do sucesso moderado nos anos 2000 e 2010.
Revisitando a história do Gol e alguns fatos recentes da Volkswagen e do cenário econômico brasileiro, cheguei a alguns dos fatores que colaboraram para o fim do Gol. Vou elaborar em tópicos.
O Gol é fruto de uma realidade que acabou há muito tempo
Lembra como era o mundo em 1980? Muitos aqui não lembram, simplesmente por que não eram nascidos ou eram jovens demais. Mas era um mundo bem diferente — tanto que mereceu uma matéria para reforçar a noção de distância temporal.
Naquele mundo bem diferente, o Brasil tinha importações proibidas. Elas começaram sobretaxadas e depois, em 1976, foram proibidas de vez. Com o custo de importação elevado, era mais viável produzir carros aqui, feitos para o mercado local. É por isso que tivemos tantos modelos exclusivos do nosso mercado. A Kombi, por exemplo, foi mantida na mesma “plataforma” por 56 anos. O Fusca nunca mudou de verdade.O Opala era um Rekord adaptado à nossa realidade, assim como o Corcel.
Falando nele, sua chegada mostrou que o Fusca era um projeto anacrônico mesmo para o Brasil daqueles tempos. Não era um produto à altura do Fusca sob o ponto de vista do público? Certamente não. Mas era um carro mais sofisticado que o velho besouro que, na época, já passava dos 30 anos de projeto. Ficou claro que o Fusca era um carro obsoleto e que algo precisava ser feito. E o que foi feito foi a Brasilia (ou “o” Brasilia, se preferir).
Ela tinha tudo o que o Fusca tinha de melhor (sua mecânica e suspensão robustas), porém em uma embalagem mais moderna e mais racional. Não foi à toa que fez sucesso, ainda que não tenha conseguido superar o Fusca. Em 1973 uma novidade escancarou como a Volkswagen estava ultrapassada: o Chevrolet Chevette.
Não só por que ele era um soco de modernidade na cara do Fusca, mas também por que, perto dele, a Brasilia parecia ultrapassada, apesar de nova. Aliás, você já se deu conta de que o Chevette é mais antigo que a Brasilia? Ele foi lançado em maio de 1973, um mês antes da Brasilia. Pois é… imagine na época.
A Volkswagen precisava mesmo de algo mais novo. Algo como o Passat, que chegou na mesma época, mas era bem mais caro que o Chevette. Importar o Polo ou o Golf não era uma opção. Além do ferramental exclusivo para a plataforma de motor transversal, a posição do motor também exigiria novas transmissões, aumentando o custo e, consequentemente o risco de fracasso do novo modelo.
No fim das contas, como sabemos, a Volkswagen lançou um misto quente: o queijo veio da Brasilia e o presunto veio do Passat. O Scirocco inspirou o pão que envolveu esse recheio mecânico. A receita só foi funcionar de verdade quando a Volkswagen finalmente colocou o motor EA827 no Gol, pouco antes de matar o Fusca. Aí ele deslanchou e ficou na liderança por 27 anos.
Mas não sem mudar, claro. Nos anos 1990, com as importações liberadas, o mercado brasileiro finalmente amadureceu e o Gol precisou mudar. Mas diferentemente do Chevrolet Corsa, do Fiat Palio, do Ford Fiesta e, mais tarde do Peugeot 206 e do Citroën C3, o Gol manteve um pouco da plataforma BX, derivada do Passat, juntou com um punhado de coisas novas e foi administrando sua fama.
Esse improviso já deixava claro algo que acabou colaborando para o fim do Gol 30 anos mais tarde: a matriz alemã não queria um projeto tão localizado em um mercado secundário para a marca. Enquanto as importações eram fechadas, o Gol foi tolerado: era um projeto local para atender uma necessidade local muito específica. Mas com as importações liberadas, por que não matar o Gol e vender o Polo, como na Europa? Um carro só, feito em só um lugar (poderia ser Brasil, Argentina, México, Portugal, tanto faz).
O Gol era claramente um carro de outro tempo, um tempo em que o Brasil era mais local do que global. E isso levou ao segundo fator que contribuiu para o seu fim.
O Gol deixou de ser aceito pela Alemanha
A primeira tentativa de matar o Gol no Brasil aconteceu em 2002. Foi naquele ano que a Volkswagen nacionalizou o Polo, lançando aqui a quarta geração (9N). A Volkswagen do Brasil, por outro lado, decidiu desenvolver um projeto local que pudesse substituir o Gol sem a necessidade de um projeto europeu.
O motivo? Difícil afirmar com certeza, mas suspeito que tenha relação com remessa de royalties e as naturais disputas políticas internas — diretores em busca de melhores resultados para escalar o organograma da empresa, em bom português.
O Fox acabou trazendo alguns problemas e uma solução para a Volkswagen. O primeiro é que ele não substituiu o Gol e precisou ser posicionado acima dele. Afinal, era um projeto novo, que estava em amortização, para usar um termo simples. O Gol havia sido desenvolvido na década anterior e sido um campeão de vendas. Seu projeto estava mais do que pago. E o Polo, aquele dos faróis circulares, nunca pegou por aqui.
Outro problema era que o Fox, mesmo mais caro que o Gol, tinha um interior mais espartano que o Gol — e aqui estou falando do “G3”, lembrado com saudosismo pelos fãs justamente pelo refinamento do design interno. E o último problema do Fox é que ele não canibalizou o Gol a ponto de substituí-lo. Pelo contrário: ele manteve o Gol intocado e ainda criou um nicho de si mesmo. E por ser derivado da plataforma PQ24 do Polo, ele ainda acabou exportado para a Alemanha, substituindo o Lupo.
Para resolver o problema de o Fox ser mais caro e ter acabamento inferior, a Volkswagen, em vez de refinar Fox, decidiu simplificar o Gol. E daí veio o infame “G4” com seu interior simplório e seu visual questionável. Um evidente retrocesso em relação ao G3.
A situação do Gol começou a se complicar de verdade quando ele ganhou a terceira geração, o chamado “Gol G5” ou NF. O layout de motor transversal permitiu que ele, finalmente, compartilhasse o conjunto motriz completo com os outros modelos, mas sua plataforma pouco tinha das demais. Era um carro com ferramental exclusivo, como o Polo não podia ser no Brasil dos anos 1970.
Para piorar, o Fox reestilizado continuava vendendo bem — tanto que o Polo saiu de linha em 2014 e seu substituto de fato foi o… Fox, que havia sido criado para substituir o Gol.
Naquele mesmo ano a Volkswagen da Alemanha tentou uma nova cartada para substituir o Gol: o Up. O modelo, fruto de um projeto caríssimo, não estava indo bem na Europa, mesmo distribuído para a Skoda e Seat. A matriz então decidiu que ele seria vendido no Brasil — especialmente por que ele compartilhava elementos com o Fox por aqui, além do fato de o Brasil ter se mantido em alta durante a crise global de 2008 (por tê-la empurrado para 2014, é verdade…).
Mas o Up, como o Fox em seu lançamento, era um produto caro. Ele até chegou como modelo de entrada, mas rapidamente foi reposicionado e o Gol voltou à trincheira. Em 2017 veio o novo Polo e aí começa o terceiro motivo para o fim do Gol.
O Gol se tornou um estranho no ninho
A chegada do Polo acabou embolando a linha de hatches da Volkswagen. Na época, entre os R$ 25.000 e os R$ 50.000 a Volkswagen tinha o Gol 1.0, o Gol 1.6, o Up 1.0 MPI, o Up 1.0 TSI, o Fox 1.0, o Fox 1.6 e o Polo 1.0 MPI.
Faça as contas: eram sete combinações de carroceria/motor diferentes em uma faixa de apenas R$ 25.000. Sem considerar as versões de acabamento de cada modelo, havia um intervalo de menos de R$ 3.600 entre os modelos. Na prática, a Volkswagen (intencionalmente ou não; como saber?) jogou todo mundo em uma arena para descobrir quem sobreviveria.
O Up morreu de morte matada. Caro demais, ele vendeu muito abaixo do esperado e a Volkswagen matou o projeto antes que perdesse ainda mais dinheiro. O Fox foi morto pelo Polo. Era um carro nascido da simplificação do próprio Polo de duas gerações anteriores àquele com quem concorreu. Não tinha chance, coitado. Morreu bravamente, contudo.
Já o Gol morreu de morte morrida. Com as mudanças do mercado (sim, estou falando dos SUV), a chegada de rivais mais modernos e mais chamativos, ele foi abandonado pelo público. A transferência do centro de desenvolvimento “emergente” do Brasil para a China, além da globalização das plataformas modulares, o levou a ser abandonado pela fabricante.
Por que insistir em um carro cuja plataforma sobrevivia apenas no Brasil — que já nem é mais tão importante como foi um dia? Um carro que até mês passado ainda mantinha os trilhos dos bancos do Passat B1 de 1974. Faz sentido?
A Volkswagen poderia ter investido o dinheiro do Fox na modernização do Gol? Talvez. Vá saber se a ideia era essa. Talvez por isso ele se chama Fox — é o mesmo nome do Gol sedã e do Gol perua exportados para EUA e Canadá nos anos 1980 e 1990. A Volkswagen também poderia ter investido no Gol em vez de adaptar o Up para o Brasil? Provavelmente. Mas lembre-se que a matriz não queria o Gol desde o fim dos anos 1990.
A Volkswagen poderia ter matado o Gol e o Polo N9 em 2014 e trazido o Polo Mk5 compartilhado com a Índia e batizando-o de Gol e Voyage? Poderia. Mas vá saber o que as planilhas e apresentações do pessoal da engenharia, da contabilidade e do marketing disseram sobre isso. No fim, o Polo virou o Gol. Ou o Gol virou o Polo. Ele não se chama mais Gol, mas Polo Track, um Polo simplificado como não poderia ter sido feito em 1974 — ou em 1980.
Um carro de outro mundo
O fim do Gol me lembra os últimos anos de vida do meu avô. Aos 92 anos ele se sentava à mesa e perguntava sobre os amigos à minha avó. “O que houve com o fulano?” — dizia ele. “Morreu”, ela respondia. “E com sicrano?” — perguntava, procurando algo familiar. “Morreu também”. Ouvindo aquilo eu me dei conta de que o mundo em que ele cresceu, se divertiu, prosperou e ajudou a construir, aos poucos estava se transformando em outro mundo — um mundo do qual ele não conseguia, não podia e, talvez, nem queria, fazer parte.
O Gol teve uma trajetória semelhante. Ele construiu a Volkswagen moderna no Brasil, mas aquele mundo que ele construiu, aos poucos se transformou em outro, do qual ele não consegue e não pode fazer parte. É só o ciclo natural das coisas. Se até o universo um dia terá fim, por que o Gol seria diferente? Ao menos sua existência não foi em vão: ele veio, sobreviveu, cumpriu sua missão, deixou seus herdeiros e agora partiu. Ao menos foi bom enquanto durou — não foi?