Pegar a chave do carro, ir até a garagem. Forçar a porta para conseguir abrir, pegar o cinto que está todo enrolado ao lado do banco (porque os cintos não são retráteis), sentar, bater o joelho no volante. Virar a chave. Lembrar que precisa injetar gasolina. Virar a chave de novo. Ouvir o motor de partida vacilar e pensar “a bateria!”. Tentar mais uma vez. Bombear o acelerador, ouvir o motor pegando, prestar atenção no ronco. Quando estiver minimamente estável, conservar o acelerador levemente pressionado. Acender um cigarro. Esperar mais dois minutos, por precaução. Pronto, podemos ir.
O parágrafo acima está menos para uma descrição poética de como é ter um carro antigo e mais para uma longa lista de obrigações. E era assim sempre que eu queria sair de carro com o Robso, meu Gol LS 1985 com motor 1.6 a álcool. De seus 81 cv de fábrica, calculo que 60 ainda estavam ali. Os outros foram embora junto com a saúde do carburador, que estava com a base quebrada, oxidada e funcionando, não me perguntem como, sem um dos giclês. Nunca cheguei a ver o painel com conta-giros, pelo qual paguei dois pedais de guitarra (novinhos) e um violão (nem tão novinho assim), instalado e funcionando. O carburador que eu comprei pelo Mercado Livre (não façam isso, pessoal) parecia novo ao olhar, mas simplesmente se recusava a “pegar regulagem”.
Nisso, o carro já está na oficina há uns dois meses. Não tenho tempo de ir buscá-lo, o dono da oficina conhece o carro muito bem e não tenho garagem para guardar – melhor que fique lá do que em frente à minha casa, por mais que o pobre ladrão que fosse tentar roubá-lo provavelmente desistiria antes de chegar à metade do procedimento.
Não me entendam mal. Eu continuo gostando de carros antigos, orgânicos, cheios de manha e de macetes. Mas eu não podia deixar passar a oportunidade que tive de trocá-lo por um carro mais moderno e confiável. E foi o que aconteceu. Ou vai acontecer em breve.
O Robso ainda está comigo, mas creio que não vai durar muito tempo. Em seu lugar, entrou outro hatch de duas portas: o vermelhinho lá em cima, Wilfred, um Uno Way 2008 na cor vermelho Alpine. Todo original.
Ah, os critérios que uso para batizar meus carros são segredo.
É, é um Fiat. Há alguns anos, quando o FlatOut não existia e o Juliano, o Leo e eu escrevíamos no Jalopnik Brasil, convoquei os leitores para me ajudarem a escolher um novo carro. Eu tinha um Mille ELX 1995 e tenho quase certeza que ele não era “Mille” coisíssima nenhuma, porque andava demais. Tenho saudades e me arrependo de ter cuidado tão mal dele.
Quem acompanha o FlatOut (e se interessa por minhas crônicas da vida real) deve lembrar que comprei o Gol depois de me mudar de cidade, em um rompante de “estou com o dinheiro na mão e nunca mais vou achar um negócio como esse”. Eu estava redondamente enganado: o carro foi mal cuidado por seu dono e acabou dando mais trabalho e despesas do que eu esperava. E, na real, eu não deveria me surpreender, não é?
Claro, me diverti bastante com o Gol e aprendi muito com ele. Tive, quando ele funcionava, a experiência de ver pessoas olhando quando eu passava e tentar decifrar se elas sentiam simpatia por aquele velhinho ou se estavam incomodadas com o ronco alto e estralado demais. Saí de casa de banho tomado e voltei com cheiro de combustão nas roupas. Fiquei sem combustível porque o marcador não funcionava (clássico!), quebrei o motor de partida tentando fazê-lo pegar, quase fui multado porque os faróis não funcionavam direito, perdi os freios porque o fluido vazou todo… foi um ano cheio de aventuras. Peguei o carro em agosto de 2016.
“Mas o que aconteceu, Dalmo? Amarelou?”
Amarelei, sim. Quer dizer, meus colegas me disseram que é assim mesmo: ter um carro antigo para uso diário é recompensador, mas tudo que é recompensador também é difícil, senão não seria recompensador. E também não é para todo mundo. Ou seja, não é questão de ter coragem ou não, e eu não preciso me sentir um frango.
Eu não utilizava o carro todos os dias, mas sempre que saía com ele, era para pegar estradas, muitas vezes de terra. No último fim de semana, o primeiro com o Uno, peguei uma vicinal em Bofete, interior de São Paulo, que o Gol certamente não conseguiria transpor. Não com seus 32 anos de idade, não nas condições em que estava. Para deixá-lo em condições de enfrentar o que o Fiat enfrentou, teria de gastar no mínimo o valor que investi na compra do VW.
Descendo a serra de Bofete, onde perdi os freios por superaquecimento – tive que parar, esperá-los esfriar e seguir viagem. Não conseguiria fazer o mesmo com o Gol
Não estou dizendo que não gosto do Gol e que o Fiat é muito melhor. Mas o Fiat é minimamente moderno a ponto de eu confiar nele para uma viagem e saber que, fazendo a manutenção corretamente, ele não vai me deixar na mão tão facilmente. Ele é mais silencioso, mais confortável (ou menos desconfortável, no caso), tem vidros e travas elétricos e satifaz minhas necessidades ao volante. Claro, quando se trata do Fiat Uno, eu não sou o cara mais imparcial que existe, mas vocês entendem o que quero dizer.
E tem outra coisa, falando em “necessidades ao volante”: o Uno fabricado no Brasil até 2014 é o mais perto que se pode chegar de dirigir um carro antigo em um carro recente. E vocês sabem que eu não estou falando besteira: o projeto do Uno foi virtualmente o mesmo de sua concepção a sua aposentadoria: construção monobloco, suspensão independente nas quatro rodas, motor pequeno na dianteira, linhas retas para melhorar o aproveitamento de espaço no interior e um indefectível charme italiano (este nem todo mundo vê, mas está lá), ainda que o desenho da carroceria, assinado por Giorgetto Giugiaro, tenha sido bastante desfigurado na última reestilização, que aconteceu lá em 2004.
O painel é igual ao de 1995, exceto pelo odômetro digital e carcaça cinza em vez de preta
O Mille teve a ousadia de se manter no mercado com apenas o básico por trinta anos e, até o último deles, até que se segurou nas vendas e só saiu de linha porque o custo de adaptar seu projeto para airbags e ABS não compensava o investimento. Quem só precisava de um carro que protegesse da chuva comprava um Uno e, incidentalmente, acabava tendo a chance de sentir um pouco do que era dirigir um carro novo em 1984. Em espírito, e no modo de conduzir, meu carro ainda é um carro antigo. Direção sem assistência, lata aparente, quase nada de isolamento acústico, nada engessado, nada anestesiado. De falta de envolvimento e comunicatividade não posso reclamar.
Só que novo
Claro, ele ganhou um motor com injeção eletrônica e acelerador eletrônico e, mesmo com os cortes de custo e a economia de escala, beneficiou-se bastante dos métodos de produção modernos e do controle de qualidade muito mais rigoroso a que fabricantes e fornecedores submetem as peças. Com isto, mesmo sendo um carro extremamente simples e virtualmente idêntico ao que era há 30 anos, meu Uno consegue ser muito mais confiável do que um carro fabricado, de fato, há 30 anos. Como o pobre do Robso, que já foi repintado, teve o túnel soldado, foi rebaixado e agora, está parado.
Mas eu não o vendi, não: ele fez parte da negociação pelo Uno… que era do meu pai. Ou seja: é um carro que eu já conheço. O Gol vai ficar com ele e, com sorte, vamos conseguir transformá-lo em um carro de lazer. Este sim, o uso perfeito para um carro antigo. A hora dele vai chegar.