“Uno nem é carro” – você provavelmente já ouviu esta pérola. E, se é como eu, provavelmente foi difícil conter o impulso de dizer umas boas verdades na cara de quem pronunciou tal atrocidade. Uno é carro sim, e dos bons. E é sobre isto que eu vim falar hoje.
Se você acompanha o FlatOut, sabe que meu carro atual é um Volkswagen Gol LS 1985 sobre o qual não consigo parar de falar aqui no site. A propósito, o Robso está, neste momento, na oficina para uma regulagem no carburador e, finalmente, a instalação do painel (saiba mais sobre isto aqui). Mas quem acompanha nosso trabalho desde a época do Jalopnik sabe que meu primeiro carro foi um Fiat Uno Mille ELX 1995. E também percebeu que eu curto escrever o nome completo dos carros.
Eu já falei em algum momento que não foi uma boa ideia ter vendido o Uno – só percebi a beleza de carro que tinha nas mãos depois de passar algumas vezes pelo perrengue de dar a partida pela manhã em um Gol com motor 1.6 carburado a álcool, sem afogador. Claro, o estado do motor do Gol certamente tem a ver com isto mas, por experiência pessoal, no dia-a-dia prefiro a confiabilidade do sistema de injeção eletrônica Magneti Marelli do Uno à experiência old school do Weber 450 miniprogressivo. Ao menos nas idas e vindas cotidianas.
Mas eu não estou aqui para falar que o Uno é melhor que o Gol, mas para dizer porque o Uno é um carro que merece todo o seu com base no que sei sobre ele e em minha experiência como ex-proprietário de um exemplar.
Meu envolvimento com o Fiat Uno começou há dez ou quinze anos, quando meu pai trocou um belo Fusca 1600 1979/1980 por um bem conservado Uno CS 1.3 1988. Eu não entendia nada de carros na época, mas a diferença era notável. O Fusca era bem cuidado, nunca deu problemas e era o xodó da família, mas o Uno andava mais, era mais espaçoso por dentro e não muito maior por fora. Era movido a álcool e carburado, é verdade, mas o afogador funcionava e não me lembro de ter me atrasado na escola uma vez sequer por que o carro não quis pegar.
Em 2011 ganhei o Uno ELX que veio a substituir o CS 1.3 na garagem da família. Foi meu primeiro carro.
Quem compra um Uno está levando para casa um hatchback projetado no início da década de 1980 por ninguém menos que Giorgetto Giugiaro, italiano que é um dos maiores designers de todos os tempos. No Brasil, onde foi lançado em agosto de 1984, seu perfil bastante característico lhe rendeu o apelido de “botinha ortopédica”. No entanto, tanto aqui quanto na Europa, onde foi lançado um ano antes, o Uno foi um marco no design dos carros compactos.
Sua fórmula não criava uma revolução, seguindo o mesmo padrão criado pelo Mini nos anos 1950 e popularizado pelo Volkswagen Golf nos anos 1970: motor dianteiro transversal, tração dianteira, construção monobloco. Aliás, Giugiaro também foi o projetista do Golf Mk1. Ele sempre soube como fazer um bom compacto.
O Uno era um carro retilíneo, como outros da época. Mas suas linhas eram mais limpas e econômicas, com para-choques envolventes, maçanetas embutidas (na versão de duas portas), vidros bem integrados à superfície da carroceria, teto sem calhas e uma traseira quase plana, que ajudava seu coeficiente de arrasto aerodinâmico a ser um dos mais baixos para seu tempo – 0,34.
O formato retangular também ajudava a aproveitar ao máximo o espaço interno, especialmente a largura e a distância entre o teto e as cabeças dos ocupantes. As rodas ficavam bem nas extremidades da carroceria e a suspensão era muito bem acertada – no Brasil era independente nas quatro rodas, com feixes de molas semi-elípticas na traseira, enquanto o Uno italiano tinha eixo de torção. A modificação, é bem sabido, obrigou os engenheiros a dar um jeito de enfiar o estepe no cofre do motor, uma solução engenhosa que acabou deixando o capô do nosso Uno diferente do europeu – a tampa envolvia parte dos para-lamas dianteiros.
O interior era simples e funcional, com o painel “satélite” inconfundível, o cinzeiro móvel, a ergonomia impecável para um carro tão compacto e o acabamento sem firulas que só foi ficando ainda mais rústico, digamos, com o passar do tempo. Os últimos Uno tinham lataria aparente em todas as colunas com exceção das dianteiras, cintos de segurança fixos e um console central formado por um molde oco revestido pelo próprio carpete do carro. Os detratores do Uno dizem que era abusar da economia de escala; os admiradores admitem que era mesmo, mas reconhecem que a Fiat economizou em detalhes nem tão pequenos assim sem prejudicar a usabilidade geral do carro. O comprador do Uno queria um carro que gastasse pouco, andasse o suficiente e durasse muito. Não seria um console central feito de carpete que comprometeria o conjunto.
Uma vez que você aceita que o Uno foi um dos últimos automóveis recentes que levou ao pé da letra a definição mais simples de carro, você pode escolher respeitá-lo por isto.
Ou então pela competência do projeto original como popular, por sua desenvoltura natural em curvas, sua agilidade e comunicatividade, que o tornaram uma boa base para honestas versões esportivas e carros de competição — seus pedais são perfeitos para punta tacco e sua suspensão só precisa de um pouco de atenção na geometria para adquirir um comportamento dinâmico bastante empolgante.
Ou ainda pelo fato de ter usado o motor Sevel, de fabricação argentina, em algumas versões – comumente preparado pelos hermanos para girar acima das 9.000 rpm. Ou por sua capacidade de subir montanhas no asfalto…
… e na terra:
Por mais que reconheça que foi melhor para o Uno se aposentar no fim de 2013 (talvez tivesse sido melhor até um pouco antes), gosto de pensar que, em um mundo ideal, com leis de trânsito mais sensatas e motoristas que realmente as respeitassem, a impossibilidade/inviabilidade de instalar airbags frontais e freios ABS talvez não fosse motivo para encerrar sua produção.
Não vivemos nesta situação perfeita, mas o Uno continua sendo um bom primeiro carro para um jovem que acabou de tirar a carteira e quer se locomover com dignidade, adquirindo experiência ao volante em um carro que pode não ser rápido, mas sabe recompensar uma tocada limpa.
É por isto que, fico com a primeira opção. Escolho respeitar o Fiat Uno e admirá-lo por ter se mantido fiel às suas origens por trinta anos (considerando que ele nasceu na Itália em 1983 e morreu no Brasil em 2013). E, me desculpe o Gol (e seus fãs) mas se me oferecessem um belo Uninho, de qualquer ano ou versão, eu provavelmente aceitaria sem pensar duas vezes.