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Pensatas

Por que os carros populares não têm impostos populares?

Às vezes parece que alguns assuntos procuram a gente. Há três semanas publicamos uma pensata sobre a possibilidade de voltarmos a ter carros populares no Brasil, depois que o chefão local da Stellantis alertou para a necessidade de uma convergência de esforços do governo, das fabricantes e das instituições financeiras para discutir o assunto. O problema dos populares de R$ 70.000, afinal, não é só do público que não tem essa grana para comprar um carro novo.

Quando as fabricantes decidiram se concentrar nos carros mais caros, com maior valor agregado/percebido, parecia o plano perfeito: em vez de ficar fazendo centenas de milhares de carros populares, dando garantia para todos eles em troca de margens estreitas que só valem a pena quando se tem um grande volume de vendas, eles fariam umas poucas dezenas de milhares de carros de luxo, que são trocados a cada três ou cinco anos e embolsariam margens gordas.

Acontece que não é assim que a indústria funciona. O valor agregado dos produtos mais caros é possível porque eles compartilham a infra-estrutura produtiva com produtos mais baratos, de grande volume. É o equilíbrio que faz a máquina girar. E isso falando apenas do fabricante em si.

Pense em tudo o que é afetado direta e indiretamente pela produção de centenas de milhares de carros populares: o funcionário que faz o carro caro é o mesmo que faz o carro barato. Mais carros significa uma maior demanda por força de trabalho, mais empregos e mais salários. Salários que serão gastos na economia local. No supermercado e na escola.

São os carros de grande volume que giram a roda das concessionárias. Um dia tem cinco revisões de populares e duas de carros de maior valor agregado. Mais mecânicos necessários, mais peças de reposição — fornecidas por fabricantes terceirizadas que também contratam gente. O carro é mais do que uma conta de custo de produção vs. valor de venda. Ele extrapola o setor econômico e afeta a sociedade em diversos aspectos. Os subúrbios, por exemplo, vieram da motorização das cidades. Morar longe é possível porque o carro é possível. Menos carros a venda significa menos financiamentos, menos dinheiro circulando, menos crédito na praça.

Até uma gráfica que faz adesivos ganha dinheiro com os carros

Por isso, quando uma fabricante diz que temos um problema, talvez seja uma boa ideia ouvir o que ela tem a dizer. Mas, por alguma razão que desconheço e não pretendo investigar, em vez de ouvi-la, a primeira reação do público é classificar o alerta da fabricante como um blefe para obter benefícios. Eu até entendo isso, afinal, aqui é Brasil, como já disse sabiamente Dominic Toretto.

Mas… se deixarmos essa desconfiança de lado por alguns instantes para prestar um pouco de atenção no discurso e na realidade, ficará claro que os dois coincidem em alguns momentos.

Já vimos que a motorização do Brasil aconteceu em três ondas incentivadas pelo Governo. A primeira, visando equilibrar a balança comercial pela industrialização. A segunda pela redução de impostos para um certo tipo de carro. E a terceira pela redução de impostos e pelo fomento ao crédito. Sim, tivemos efeitos colaterais, mas também temos uma das maiores capacidades produtivas do planeta — afinal, mesmo no pior momento da crise iniciada em 2014, o Brasil se manteve entre os seis maiores produtores de automóveis do planeta.

Sim, tivemos uma crise iniciada em 2014, que teve consequências desastrosas e que, quando finalmente viu uma luz no fim do túnel, viu a saída bloqueada pela crise global causada pela pandemia. O impacto na indústria brasileira foi forte — já falamos sobre isso em março de 2020.

Qual será o futuro da indústria automobilística brasileira?

Agora, três anos depois, o presidente da Stellantis na América do Sul colocou o assunto em pauta, o governo deu ouvidos, entendeu que é importante mesmo e até mesmo chegou a um preço-alvo para esse novo carro popular: R$ 45.000.

O problema é que, para transformar esse desejo pelo carro de R$ 45.000 em um carro de verdade que custa R$ 45.000 há um longo caminho que talvez o Brasil não esteja disposto a trilhar. E isso fica claro quando o público reage com o fígado ao alerta das fabricantes, dizendo que é blefe para sugar dinheiro público e remeter lucros para as matrizes no exterior.

O primeiro passo desse caminho é justamente entender esse jogo de interesses entre estado e empresas. Entender que o dinheiro não nasce na impressora dos bancos centrais, mas em cada minuto que cada um de nós dedicamos a fazer algo por outras pessoas — o que chamamos de… trabalho. Entender que precisamos dos fabricantes tanto quanto eles precisam de nós, que esse jogo de interesses deve ser, idealmente, uma relação de reciprocidade. Uma balança equilibrada, com pesos iguais aqui e ali.

Por que a consequência da não-industrialização e da desindustrialização pode desastrosa. E aqui eu volto àquele papo do início do texto, sobre os assuntos parecerem procurar a gente: há alguns dias recebi um email que dizia “como a desindustrialização afeta negativamente nossa economia” e trazia alguns dados interessantes — e que se aplicam também à indústria automobilística, aquela que precisa fazer carros de R$ 45.000, mas só consegue fazer carros de R$ 70.000 ou mais.

Um deles é o fato de a indústria de transformação (aquela que pega aço, plástico, vidro e borracha e transforma em carro, por exemplo) paga 50% do ICMS arrecadado em todo o Brasil. Outro? O complexo sistema tributário do Brasil penaliza a indústria por acaso, porque ela tem cadeias produtivas longas — daí os tais “impostos em cascata”, os “regimes tributários especiais”, as substituições, os diferenciais de alíquotas e afins. O tipo de coisa que fez o sorvete do McDonald’s deixar de ser sorvete para continuar custando o quanto as pessoas podem pagar, por exemplo.

Outro dado tem a ver com aquele trecho mais acima, sobre como um carro move a economia. Segundo a Confederação Nacional da Indústria, cada R$ 1 produzido pela indústria se tornam R$ 2,43 na economia brasileira.

Mas o que está acontecendo é que a indústria está produzindo menos carros no Brasil. Não se engane: os “recordes de produção” de 2021 e 2022  — e as parciais de 2023 — são relativos ao período após 2014. Nós atingimos um recorde histórico em 2013-14 e depois mergulhamos em uma depressão que, só depois dos “recordes de produção” de 2021 e 2022 colocou o volume de produção de carros de volta ao patamar de… 2005! Pode encarar como um retrocesso de 20 anos, porque foi isso o que aconteceu.

Produção de automóveis no Brasil nos últimos 25 anos

E aí, continuando a história dos assuntos que procuram a gente, os FlatOuters trouxeram ao nosso grupo secreto (quer participar?) uma matéria muito sucinta, mas preocupante, publicada pela revista Piauí. Ela dizia que os brasileiros pagam três vezes mais impostos que os japoneses na compra de um carro:

“O país [Brasil] ocupa o primeiro lugar no ranking de cobrança de tributos sobre automóveis: um terço do valor de um automóvel vai para os cofres públicos. A cobrança é três vezes maior que no Japão, onde os tributos consomem 9,1% do preço ao consumidor.”

A mesma matéria diz que o número de carros vendidos no Brasil produzidos no Mercosul aumentou 50% em 2022. E tem mais: o volume de carros importados do México aumentou 25%. Mas isso não aconteceu porque estamos comprando mais carros e, estes importados vieram no embalo.

Gráfico da revista Piauí

 O resultado prático disso é que, em 2015, o México ultrapassou o Brasil e se tornou o maior produtor de automóveis da América Latina.

Se é mais fácil importar de outro lugar, por que produzir aqui? Caridade? E aqui voltamos àquela questão de entender o jogo de interesses, a reciprocidade. Não há embargos comerciais e bloqueios econômicos ao Brasil no momento. Qualquer empresa do mundo — até mesmo as russas — podem comercializar seus produtos no Brasil. Elas podem optar por importar ou produzir aqui, depende do que vale mais a pena. Para muitas fabricantes, está valendo a pena importar. É por isso que o Fiat Ducato, por exemplo, vem do México.

Quando uma fabricante vira para o governo e fala “tem que ver esse negócio aí”, o que ela está dizendo, na verdade é: “por que eu deveria instalar minha fábrica aqui no Brasil e não em qualquer outro cafundó do planeta Terra?” Essa é a pergunta que precisamos responder de forma convincente, baseados na realidade, com ações concretas. Não adianta falar em um “mercado consumidor de 200.000.000 de pessoas”, se a maioria delas não tem como consumir de verdade.

Além disso, a economia globalizada transformou os países em pontos estratégicos localizados. Nesse aspecto, ter acordos comerciais com mais países significa que você pode vender em mais lugares o que você produz aqui.

ALCA: a aliança de livre comércio das Américas. Um bloco econômico como a União Europeia foi rejeitado na virada dos anos 2000

O Brasil é um país tropical abençoado por Deus, bonito por natureza e tudo mais, mas isso não vai convencer uma empresa a se instalar aqui. Precisamos oferecer algum benefício, porque o México tem, porque a África do Sul tem, porque a China tem, porque a Tailândia e a Índia têm, assim como a Rússia e o Paraguai. Se queremos os benefícios de se ter fabricantes atuando no país, precisamos fazer algum sacrifício.

É uma negociação que interessa aos dois lados — uma relação de reciprocidade, como disse mais acima: o governo precisa de empresas que geram empregos, porque ele não é capaz de gerar emprego suficiente. Uma fabricante tem isso a oferecer, mas por que ela escolheria o Brasil em vez do México ou qualquer outro país do planeta? O que o Brasil tem a oferecer pra ela? Temos crédito facilitado, juros baixos? Temos um sistema tributário simplificado? Temos acordos de livre-comércio com muitos países?

Quando uma fabricante vem a público e diz que o Brasil precisa ser mais competitivo, ou que é preciso haver alguma mobilização para incentivar a indústria, eles estão realmente esperando um agrado dos governos. Mas o que costumamos chamar de subsídio à indústria nacional, historicamente, foi uma mero estímulo à redução de preços por benefícios fiscais/tributários com alguma contrapartida das fabricantes.

A produção de carros no México, país que vende para os EUA e para o Brasil. Compare com a curva brasileira do mesmo período e depois pense no Kwid de R$ 70.000

Nos anos 1950 a contrapartida foi a nacionalização, nos anos 1990 a contrapartida foi a produção de carros baratos, com motor de até 999 cm³. Nos anos 2000-10 foi o investimento no desenvolvimento de tecnologias e capacitação.

O resultado prático disso, dos incentivos e reduções de impostos foram três momentos de explosão de vendas de carros novos no país e o desenvolvimento de modelos locais, com tecnologia local. O carro flex, por exemplo, é um fruto disso. Embora não seja invenção nossa, foi aperfeiçoado e otimizado no Brasil e hoje nos coloca em uma situação privilegiada em relação ao controle de emissões.

Estas três ondas, no fim das contas, são exemplos concretos do que acontece quando reduzimos um pouco os impostos sobre os carros. Veja também o caso dos carros “PCD”. Alguns modelos tinham mais de 50% do seu volume de vendas composto por carros com as isenções desta modalidade.

Deturparam o carro PCD – e agora ele vai morrer

É evidente que o Brasil não tinha tantas pessoas com deficiência assim e que esse boom do PCD era claramente um abuso das brechas da lei. Podemos julgar o caráter das pessoas que abusaram dessa boa-vontade, mas também podemos olhar por outro lado: a demanda aumenta quanto os impostos diminuem.

Não surpreende que o mercado automobilístico esteja em crise no momento em que o Brasil tem uma das maiores tributações do mundo sobre os automóveis — ela é a causa desta crise, afinal. Historicamente produtos e serviços populares têm “impostos populares”, exceto o automóvel popular que, apesar de ser “popular”, ainda é tributado como um artigo de luxo.


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