Há cerca de 15 anos, a imprensa brasileira, sempre ávida por sinônimos criativos para coisas que já têm nomes precisos, começou a usar termos como “bloco” para se referir ao motor do carro, e “montadora” para se referir à fabricante de automóveis. Esteticamente o texto ficava interessante, pois se evitava a repetição de palavras. Em vez de “motor”, depois “motor”, depois “motor” e mais “motor”, usava-se “motor”, “bloco”, “propulsor” etc.
O problema é que “bloco” como sinônimo de motor é conceitualmente errado. É como usar “esqueleto” como sinônimo de “corpo”, porque o bloco é só um pedaço do motor. Felizmente o “bloco” era só uma moda passageira. Hoje pouca gente ainda usa o termo como sinônimo de motor.
Mas “montadora” tem uma história diferente. Tão diferente que “montadora” virou mesmo sinônimo de “fabricante de automóveis”, como se não existissem montadoras de geladeiras, bicicletas, computadores e televisores. A ideia por trás de “montadora” é que a fabricante de automóveis, supostamente, não fabrica o automóvel inteiro. Ela faz o monobloco e os demais sistemas são montados com componentes fornecidos por empresas terceirizadas. Se os componentes chegam prontos e ela só monta, ela é uma montadora, e não uma fabricante.
É um argumento falho sob qualquer ponto de vista — etimológico ou conceitual. Fábrica é uma palavra de origem latina que designava o local onde o ferreiro transformava o metal em armas. Você pode até argumentar que o ferreiro pega a matéria-prima e a transforma, mas a ideia de fabricar é justamente esta: pegar uma coisa e transformá-la em outra. Além disso, a fabricante faz todo o projeto do carro e o encomenda aos fornecedores, sem contar que a fabricação do motor e do monobloco/chassi é trabalho da fabricante — e, por isso, ela é fabricante.
Reduzir uma fabricante a “montadora” torna o termo impreciso, porque existem montadoras. Uma empresa que recebe um veículo pronto, porém desmontado, é uma montadora, não uma fabricante. Se ela projeta e transforma um monte de chapas de metal em uma carroceria completa, e instala nela um motor que ela própria fundiu, ela é só uma montadora?
A montagem é apenas uma etapa da fabricação de um automóvel. Atualmente praticamente tudo além do monobloco e motor (e, às vezes, transmissão) é fabricado por terceiros — embora, em sua maioria, desenvolvido pelo fabricante do automóvel. Os freios, por exemplo, quase sempre são fornecidos pela Brembo, Ate, TRW e Bosch. Os vidros são Sekurit, AGC ou Pilkington. Transmissões, quando não feitas pela própria fabricante, geralmente são da Tremec, Getrag, ZF ou Aisin. O mesmo vale para rodas, bancos, acabamentos plásticos, lanternas, ECU e afins.
É por isso que, quando a transmissão automática de dez marchas Ford-GM foi lançada, não foi exatamente uma surpresa que elas compartilhassem uma transmissão. Porque isso já aconteceu antes quando ambas usaram caixas manuais da Tremec. O compartilhamento de transmissões sempre foi algo muito comum por uma questão de custos — o que também abre espaço para o desenvolvimento independente de transmissões. As fabricantes citadas acima (Getrag, ZF, Tremec e Aisin) desenvolvem projetos com um certo grau de versatilidade para ser oferecidos aos fabricantes.
Foi assim que a ZF conseguiu desenvolver uma das transmissões mais populares de todos os tempos, apesar de estar no mercado há menos de 12 anos: a ZF 8HP.
O ZF8HP é um câmbio automático convencional — isto é: usa engrenagens planetárias e conversor de torque. Ele não traz nenhum conceito revolucionário em sua construção, mas acertou em cheio as principais demandas dos fabricantes desde 2008, quando foi usado pela primeira vez. Desde então, ele ganhou mais duas gerações, e foi usado em mais de 90 modelos de 25 fabricantes. Praticamente todos os BMW, Aston Martin, Bentley, Rolls-Royce, Jaguar, Maserati e Land Rover usam essa transmissão.
Somente em 2017 foram feitas 3.500.000 unidades desta transmissão, o que é mais da metade da produção total da antecessora 6HP, produzida entre 2000 e 2014. Como ela se tornou tão popular em tão pouco tempo?
Tempos de troca rápidos
A ZF iniciou uma pequena revolução nos tempos de troca de marcha com a transmissão anterior à 8HP, a 6HP, graças a uma mudança na forma de obter as relações – além da otimização do fluxo interno do conversor de torque. A explicação exata merece uma matéria à parte, mas resumidamente, até o ZF 5HP, o acréscimo de uma relação exigia a instalação de mais um conjunto de engrenagens.
No 6HP, a ZF não podia mais aumentar o número de engrenagens por questões de peso e dimensões do câmbio, então ela adotou um novo conceito de relações chamado “mecanismo de Lepelletier”, que combina uma engrenagem planetária simples a uma engrenagem planetária dupla (que era usada até o 5HP – destacada na imagem abaixo). Com isso foi possível obter seis marchas com oito componentes no 6HP, enquanto o 5HP usava 10 componentes para as cinco marchas. Com menos componentes para resultar em mais relações, a troca de relações se tornou mais rápida.
Na 8HP, o mesmo arranjo mecânico (oito marchas com nove componentes – veja abaixo) com evoluções no conceito permitiu que a troca de marcha fosse realizada em apenas 200 milissegundos — é o mesmo tempo das trocas da transmissão do Lexus LF-A. Estas evoluções foram uma maior capacidade de processamento — o que faz com que o comando manual e todo o gerenciamento dos componentes envolvidos na troca de marcha (as bombas e os atuadores hidráulicos dos freios e embreagens) sejam processados mais rapidamente pela ECU do câmbio.
Como comparação, a transmissão de embreagem dupla do Lamborghini Performante precisa de 290 milissegundos, enquanto a caixa da FXX Evoluzione mudava as relações em 150 milissegundos. Uma troca manual muito rápida acontece em pouco menos de 500 milissegundos, mas normalmente é feita em 1 segundo.
Na BMW ela substituiu não apenas o 6HP, mas também as transmissões de embreagem dupla da marca — tanto que os atuais M3/M4 e M5 são equipados com a 8HP. Ainda que as transmissões de embreagem dupla fossem mais rápidas, elas eram menos confiáveis e menos duráveis que a 8HP e, aparentemente, para a BMW M a diferença entre 200 milissegundos e os 80 milissegundos da transmissão SMG II não é algo que irá decepcionar os clientes dos esportivos.
Packaging
A economia de componentes também resultou em uma caixa mais compacta. E, sendo mais compacta, ela é mais versátil e adequada a aplicações mais diversas. O câmbio é relativamente leve, algo desejável em uma geração de automóveis que precisa combinar eficiência e economia ao desempenho: apesar de ter duas marchas extras em relação ao 6HP, ele é 2,8 kg mais leve, e é apenas 12 kg mais pesado que o 5HP, que tolerava 560 Nm de torque máximo em sua última evolução, enquanto o 8HP suporta até 900 Nm combinado a motores Otto/Atkinson e 1.000 Nm quando combinado a motores Diesel (a diferença está no regime de rotações).
Economia/eficiência
O arranjo das planetárias combinadas também permite o “salto” de marchas por usar quatro conjuntos de marchas, dois freios e três embreagens internas, além de desacoplar as relações que não estão em uso, diminuindo as perdas mecânicas. Isso fez dele um câmbio mais econômico: comparado ao 6HP ele pode ajudar a reduzir o consumo em até 11% e, comparado aos automáticos convencionais de cinco marchas (como o 5HP), essa marca chega aos 14%.
Versatilidade
Estas características todas combinadas resultaram em uma transmissão versátil em termos de adaptação das relações e de instalação nos carros — trocam-se menos componentes para obter diferentes relações. Por ser relativamente compacta, ela pode ser usada em sedãs médios como os BMW Série 3 e Jaguar XE, ou até mesmo como um transeixo, como nos Aston Martin, que têm o câmbio acoplado ao eixo traseiro e ligado ao motor dianteiro por um tubo de torque (abaixo).
Ela também foi usada no Dodge Demon, que teve um “transbrake” adaptado à caixa e, ao mesmo tempo, é usada em versões híbridas de modelos Audi, Porsche e BMW, com seu conversor de torque substituído por um motor elétrico. Não é uma característica exclusiva da 8HP, mas quando se combina suas características, a 8HP acabou se mostrando uma opção mais adequada a diversos modelos.
O câmbio tipo DCT, por exemplo, em baixas rotações transmite vibrações para o interior do carro, algo que não acontece com conversores de torque. E por usar um conversor de torque otimizado, o 8HP não tem aquele comportamento um tanto hesitante das antigas transmissões automáticas. O ex-CEO da Aston Martin, Andy Palmer, quando questionado sobre a decisão de abandonar a dupla embreagem, disse: “Esse câmbio é mais barato, mais rápido e mais leve. Por que eu deveria usar dupla embreagem? Há dez anos o DCT parecia o câmbio do futuro. Agora ele parece o câmbio do passado”.