Hoje em dia o Porsche 718 Boxster/Cayman é saudado como um dos melhores esportivos da atualidade. E não poderia ser diferente: ele junta a consagrada dinâmica dos Porsche ao layout de motor central-traseiro, que é naturalmente superior ao arranjo “tudo atrás” do 911 – e não é segredo nenhum o fato de o 718 só não ter mais potência para não prejudicar as vendas do irmão maior.
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Mas o “baby Porsche” nem sempre esteve em uma posição tão confortável. No fim da década de 60, ao buscar uma alternativa mais barata ao 911, a Porsche colaborou com a Volkswagen na criação do 914 – um esportivo de motor central-traseiro com teto removível, linhas retas na carroceria e duas opções de motor: um flat-4 Volkswagen de 1,6 litro e 80 cv (Porsche 914/4) e um flat-6 Porsche de dois litros e 110 cv (Porsche 914/6).
Mas não foi uma parceria bem sucedida: a Porsche e a Volkswagen se estranharam por várias vezes durante o desenvolvimento do carro, principalmente na hora de dividir os custos, culminando com o abandono da VW no meio do processo – o que prejudicou diretamente as vendas do 914. A Porsche teve de bancar tudo sozinha, e acabou repassando os gastos para o público no preço final.
Como resultado, o Porsche 914 jamais foi o sucesso de vendas que poderia ter sido, caso dependesse exclusivamente de seu desempenho. O que é uma pena, pois o Porsche 914 era um excelente esportivo e merecia mais respeito.
Mas é claro que a Porsche tentou reverter esta situação. Como? Dando ao 914 mais potência, obviamente. Foi assim que, em 1971, nasceu o carro sobre o qual viemos falar hoje, sugestivamente apelidado “Brutus”.
A iniciativa foi do engenheiro Ferdinand Piëch, sobrinho de Ferry Porsche. Duas décadas antes de assumir a presidência da Volkswagen, que comandou entre 1993 e 2002, Piëch estava fortemente envolvido com o braço de competição da Porsche. Ele foi um dos grandes responsáveis pela criação do ousado Porsche 917, protótipo com um enorme flat-12 de cinco litros que foi o vencedor das 24 Horas de Le Mans em 1970 e 1971. Na época, o 917 foi considerado altamente arriscado pela cúpula da fabricante, que até então só havia feito carros de corrida com motores pequenos, e que não se afastavam muito dos Porsche de rua.
Talvez o sucesso do Porsche 917 tenha dado a Piëch a confiança necessária para levar a cabo um novo plano: dar ao 914 um flat-six bem mais potente que o motor 2.0 oferecido no 914/6. Mas também houve outro fator importante: Piëch estava para receber um novo carro da Porsche para utilizar no dia-a-dia, e decidiu utilizá-lo como mula de testes para o “super-914”.
Inicialmente, a Porsche colocou atrás dos bancos um motor de 2,6 litros sobre o qual não se sabe muito a respeito, mas que provavelmente era uma versão de curso ampliado do flat-six de 2,4 litros usado no 911. Este motor não durou muito tempo no carro, sendo logo substituído por um flat-six de 2,8 litros vindo diretamente do Porsche 911 RSR que competia no Grupo 4 da FIA – um motor de competição, capaz de entregar 300 cv sem qualquer tipo de indução forçada. Por fim, ainda insatisfeito, Piëch encomendou ao departamento de engenharia um motor especial, de 2,9 litros, capaz de entregar nada menos que 345 cv e de girar a mais de 9.000 rpm – algo evidenciado pelo conta-giros com marcações até 10.000 rpm. Tem noção? Estamos falando de 235 cv a mais que o Porsche 914 mais potente oferecido ao público – um acréscimo de mais de 214%.
Mas o motor, evidentemente, não foi a única modificação executada no protótipo, que foi batizado Porsche 916. O carro também recebeu para-lamas alargados (os mesmos do 914 de competição), para acomodar taludas rodas Fuchs de 15×7 polegadas, calçadas com pneus 180/70; freios com discos ventilados iguais aos do Porsche 911S; suspensão retrabalhada com molas mais firmes e amortecedores Bilstein; barras estabilizadoras na dianteira e na traseira; e novos para-choques pintados na cor da carroceria, sendo que o dianteiro possuía uma entrada de ar mais generosa para ajudar no arrefecimento do motor. O teto removível foi substituído por uma peça fixa, de metal, soldada à carroceria, e o assoalho também recebeu reforços estruturais.
O apelido “Brutus” foi dado ao carro por Corina Piëch, filha de Ferdinand Piëch – segundo consta, não pelo desempenho brutal do carro, mas pelo visual agressivo conferido pela carroceria preta, pelos para-lamas mais largos e pelos pneus bifudos. E, mesmo depois que seu pai foi transferido da Porsche para a Audi, em 1972, Corina continuou usando o carro por algum tempo – é por isso que há um emblema com seu nome na tampa do porta-luvas. Diz-se que Corina ocasionalmente aparecia com o carro no departamento de design da Porsche para encomendar algumas alterações no interior do carro, que foi equipado com rádio e alto-falantes sob o painel, próximos às soleiras das portas.
O Porsche 916 deveria fazer sua estreia no Salão de Paris de 1971 e, em seguida, começar a ser produzido em série. Mas isto jamais aconteceu. E não é difícil entender o motivo: um Porsche 914 com motor de 350 cv – mais potente que o mais potente dos 911, que tinha um flat-six de 190 cv em 1971 – não era exatamente uma ideia brilhante em termos de marketing, visto que a reputação do 914 já não era das melhores por causa do envolvimento da Volks no projeto. Além disso, eram modificações caras demais, que não faziam sentido algum financeiramente.
Apesar disto, foram fabricados outros dez protótipos do Porsche 916, que receberam as mesmas modificações estéticas, estruturais e de suspensão, mas tinham motores menos potentes – o flat-six de 2,4 litros e 190 cv do Porsche 911S, e o motor de 2,7 litros e 210 cv do Porsche 911 Carrera. Um fan-site dedicado ao Porsche 916 , dizendo que parte deles foi enviada para os EUA, enquanto a maioria permaneceu na Europa. Alguns estão marcados como “em restauração”, e há um deles que, de acordo com a tabela, foi destruído em um acidente. Como a página é antiga, pode ser que estes dados estejam desatualizados.
O paradeiro do “Brutus” original, entretanto, é bem conhecido. Corina Piëch vendeu o carro a um oficial do exército norte-americano, o Coronel Robert E. Hartvigsen, em abril de 1974. Na época, Hartvigsen morava na Alemanha, onde permaneceu até abril de 1978, usando o carro com relativa frequência. Poucos meses antes de retornar para os Estados Unidos, Hartvigsen mandou o carro para a sede da Porsche, em Zuffenhausen, para uma revisão completa.
Hartvigsen foi o último dono do Porsche 916 “Brutus”, ficando com ele pelo resto da vida – ainda que, no fim das contas, tenha o deixado guardado em uma garagem, parado, à mercê do tempo. Foi só em 2015 que o carro foi recuperado e restaurado, em um processo que levou três anos. Depois de ser revelado ao público no Concours d’Elegance Amelia Island de 2017, o protótipo agora é um dos destaques da agência de leilões Artcurial, que leiloará o “Brutus” durante a edição de 2019 do Rétromobile, evento de clássicos realizado anualmente em Paris.
O valor de arremate estimado fica entre € 800.000 e € 1.200.000 – ou algo entre R$ 3.400.000 e R$ 5.000.000, em conversão direta.