Olá, pessoal! Primeiramente gostaria de agradecer os mais de 100 votos recebidos durante a seleção e poder compartilhar com vocês as histórias e experiências de participar da compra de carros em leilão em terras Canadenses. Meu nome é Fernando Saccon e moro em Winnipeg há dois anos, onde trabalho em ambiente acadêmico e dedico um pouco do meu tempo livre para trazer de volta às ruas carros que foram indenizados pela seguradora local devido à colisão, furto, forças da natureza, dentre outros.
No Brasil tive apenas três carros: primeiro um Clio 1.6 16V 2003, trocado por um Sandero 1.6 16v 2008 e, por último, um Ford Focus GL 1.6 2006. Os dois primeiros foram adquiridos em revendas de usados: apesar de toda aquela conversa de que o carro está revisado, nunca foi batido, blá blá blá, depois você descobre que muita coisa que foi maquiada pelo vendedor e já não adianta mais reclamar. Parte culpa minha, pela inexperiência.
Mas sem delongas, decidi que não compraria mais carro de revenda. O Focus foi adquirido de particular e, embora já com 110 mil km, não me deu nenhum problema e foi o melhor carro que tive em terras tupiniquins. Os K4M eram melhores no quesito motor e consumo, mas o Focus levou no conjunto da obra. Entretanto, na época que adquiri o Focus já tinha a intenção de comprar meu carro através de um leilão. Visitei alguns leilões em Curitiba na época, mas não achei o carro que eu queria, em condições razoáveis.
Leilão ainda no Brasil
Na época da compra do Focus eu já tinha experiência prévia com leilões: durante algum tempo comprei carros recuperados de financiamento na capital da Rússia brasileira e os enviei para o interior pé vermelho, onde eram revendidos. A grande maioria não teve problema algum: somente lavar, revisar itens básicos e por à venda. Sei que sou contraditório ao não comprar carros de revenda, mas revender carros de leilão. Façam o que eu digo, não façam o que eu faço.
Leilão no Canadá
Após um período apenas alugando carros conforme a necessidade (que daria um outro post), resolvi que era hora de partir para meu primeiro carro no hemisfério norte. A ideia de comprar um carro de leilão para uso particular sempre martelou minha cabeça, mas as pessoas que eu compartilhei minha ideia não tinham experiência nessa área e simplesmente me desanimavam, dizendo que eu iria gastar muito para consertar qualquer carro que viesse de lá.
Neste leilão em especial são leiloados uma média 500 automóveis e outros bens, sempre nas quartas-feiras, provenientes da seguradora provincial (só existe uma). Estes são listados com o status normal, salvado, indenizado e irreparável. A conta que a seguradora faz para determinar se um carro será consertado ou declarado salvado é a seguinte (o trecho a seguir é traduzido e adaptado do próprio site da seguradora):
Suponha que um veículo tem custo de reparação de $3.500 e seu custo de mercado é de $4.000 antes da colisão. Em uma conta simples, parece razoável consertá-lo em vez de pagar o que ele vale ao proprietário. Ao final, a seguradora economizaria $500 no processo. Todavia, imagine que se ele fosse levado a leilão poderíamos revendê-lo por $1200. Então, pagaríamos os $5000 ao proprietário e receberíamos $1200 em retorno, o que gera um custo de apenas $2800, em vez dos originais $3500. E não é verdade absoluta que veículos salvados não podem ou não compensam ser consertados. Muitas vezes o dano é cosmético, e não afeta o quão seguro e confiável o veículo é. Um exemplo são danos causados por granizo.
Após algumas visitas ao leilão apenas para verificar sua dinâmica (e conseguir entender o que o leiloeiro dizia), conversar e pedir dicas para os que estavam ali presentes, arrematei meu primeiro salvado, um Ford Freestyle 2007 com 139 mil km. Mal dava para ver a cor do carro, tão sujo que estava. Neste dia ainda estava parcialmente coberto pela neve, quase constante no mês de janeiro.
O crossover Freestyle (2005-2007) veio para substituir a descontinuada perua da quarta geração do Ford Taurus (2000-2003), com configurações de 6 (2+2+2) ou sete lugares (2+3+2), tendo opções de tração dianteira ou integral.
A plataforma utilizada foi a Ford D3, para veículos full size – em uso até os dias atuais na sexta geração do Ford Taurus – esta que é derivada da Volvo P2, utilizada na primeira geração dos modelos S80 e XC90. O motor sempre foi um Duratec 3.0 V6 (203 hp), ligado a uma problemática caixa CVT da ZF, da qual falarei adiante.
Em 2008 o modelo passou pelo primeiro facelift e passou a ser chamado de Taurus X. O motor passou a ser um 3.5 V6 (263 hp)e câmbio automático de 6 marchas (desenvolvido em parceria pela Ford e GM). O modelo continuou até 2010, quando foi sucedido pelo Ford Flex.
O exemplar que adquiri era um Freestyle SEL AWD 7 lugares, ar digital duas zonas, bancos elétricos aquecidos e em couro, DVD no teto, teto solar e mais algumas opcionais. Preço de arremate, $1.200, mais 13% de imposto = $1356. A vantagem do leilão por aqui é que o preço final é sempre o de arremate acrescido de 13%, que é a soma do imposto provincial (8%) mais o imposto federal (5%). No Brasil a conta é um pouco mais complicada: preço de arremate + 5% do leiloeiro + despesas de documentação + taxa de acordo com o tipo de bem+ (…). Essa última fica em torno de R$200 a R$400, dependendo do tipo (carro, moto, camionete, caminhão), enquanto as despesas de documentação são variáveis e dependem dos débitos vencidos (IPVA, licenciamento, multas).
Muitas vezes esta despesa é maior que o valor do carro (sic). Outra vantagem por aqui é que o processo é transparente. O resultado do leilão é sempre listado no site (e Facebook) a partir do dia seguinte, e existe um banco de dados (com aplicativo para smartphone) que contém os resultados dos últimos dois anos, inclusive com fotos (//mpiauction.com/). Assim é possível ter uma ideia do valor de venda de um determinado automóvel, checando os vendidos anteriormente.
O carro teve uma colisão que afetou o radiador, quebrou a parte inferior do para-choque e o suporte do radiador (ou mini frente). Comprei as seguintes peças: radiador (novo, paralelo, $192), suporte do radiador (novo, paralelo, $199), e parte inferior do parachoque (novo, paralelo, $199). Os faróis de neblina e alguns plásticos da parte inferior do carro consegui em um ferro-velho, pelo preço de $50 tudo. Aqui alguns ferro-velhos são do tipo ‘self-service’. Você entra com sua caixa de ferramentas, retira as peças, paga conforme uma tabela de preços padrão para cada componente, independentemente de marca/modelo e vai pra casa. Prefiro essa forma, para não ter que lidar com alguns maus vendedores que nem se movem para procurar a peça que você quer e logo soltam um ‘não tem’. Outros ainda funcionam da forma tradicional, e destes, boa parte possui seu estoque listado em seus respectivos sites.
A parte mais cara foi a funilaria. Paguei $1716 pelo serviço, que incluiu a troca da mini-frente pela peça nova adquirida, substituição do radiador e fluído, troca e pintura da parte inferior do para-choque, recarga do gás do ar-condicionado e checagem da integridade da carroceria. Deste custo, cerca de $700 foram relativos ao trabalho de troca da mini-frente. Inicialmente eu pretendia fazer isto em casa, já que nos automóveis Ford essa peça é parafusada à carroceria e pode ser retirada sem necessidade de remoção de pontos de solda.
Pelo que notei, a Kia usa um sistema parecido, o que facilita sua manutenção/substituição. Porém, lembre-se que era em janeiro/fevereiro e a temperatura nesta época tem mínimas e máximas entre -20°C e -10°C. Não havia garagem aquecida na residência onde eu morava na época e entre esperar uma temperatura razoável ou pagar pra trocar, preferi a última opção. A carga do gás é necessária porque todo carro que é leiloado tem o gás do AC removido por segurança. E a checagem de integridade da carroceria é um procedimento padrão para todos os veículos declarados ‘salvados’, antes de serem reintegrados à sociedade. Só ela custa $200. Esta inspeção checa a conformidade do serviço executado e também faz aferição dimensional do chassis, para garantir que o mesmo está conforme as especificações do fabricante. Antes de iniciar o conserto, são necessárias quatro fotos, uma de cada lado, para anexar ao documento de integridade.
Em seguida levei o carro para fazer a inspeção anual. Todos os carros precisam desta para renovar o registro/licenciamento pelos próximos 12 meses. Esta inspeção é tabelada, custa $55 e pode ser feita em diversos pontos espalhados pela cidade dentre oficinas mecânicas, auto centers e profissionais autônomos certificados. A inspeção checa a condição geral do veículo: mecânica, elétrica, suspensão, equipamentos de segurança, pneus, etc, mas não são verificadas emissões.
Nesta inspeção o carro foi reprovado por três motivos: buchas da bandeja de suspensão estouradas no lado do motorista, uma bieleta com folga e um pneu com bolha. Em relação aos dois primeiros itens, optei pelo reparo no próprio local. O pneu, porém, me deu um trabalho a mais. Embora estivessem quase novos, com 9/32 de profundidade da banda de rolagem (esse modelo Michelin Defender XT tem 10/32 quando novo), o mecânico queria que eu trocasse os quatro pneus para aprovar o carro na inspeção, alegando razões de segurança.
Após muito bate boca, chegamos a um meio termo e troquei os dois do mesmo eixo, e trouxe o que estava em boas condições pra casa. Saldo das faturas: $440 pelos pneus montados, mais troca de óleo sintético e filtro. Outros $495 pela inspeção anual obrigatória, troca da bandeja de suspensão, bieleta, alinhamento e mão de obra. Essa brincadeira ficou cara, mas finalmente o carro estava apto a ser registrado. Todos os veículos recuperados recebem a denominação REBUILT em seu documento. Como comparação, um automóvel sem sinistro é listado como NORMAL.
Em resumo, para registrar o carro salvado você precisa ter em mãos a nota fiscal de compra, um certificado de checagem de integridade da carroceria e uma nova inspeção anual. Simples, né? Tendo em mãos esses documentos, você faz o registro e o seguro do carro, que é obrigatório. Um adendo: mencionei antes que a seguradora é provincial e única. Então não tem pra onde correr: o prêmio base para uma carteira com pontuação (mérito) 0 é em torno de $1700 anuais. Cada ano sem infração/acionamento da seguradora aumenta seu mérito em um ponto e gera desconto no prêmio. Se seu carro vale menos que isso, você pagará mais pelo seguro do que o valor do carro. Ah, mas aqui não tem IPVA.
Primeira viagem
Três semanas após finalizar as vistorias e documentação era feriado de sexta-feira de Páscoa. Uma ótima desculpa para colocar o carro na estrada. Por coincidência, vi que uma banda que gosto estava em turnê pelos Estados Unidos. Coincidiu de o show em Madison, Wisconsin, ser em um sábado. Apenas 1100 km separando minha vontade de vê-los. Comprei o ingresso na quarta-feira, reservei hostel e na sexta pela manhã estava a caminho. Pelo hostel ficar na parte central da cidade, perto de muitos locais interessantes, estacionei o carro na sexta e não o utilizei até o momento da volta (se você assistiu “Making a Murderer” no Netflix já viu esses locais).
Nem preciso comentar o quão bom é dirigir em estradas americanas: você consegue manter o controle de cruzeiro ativo por centenas de quilômetros e ultrapassa/reduz apenas clicando, esquecendo os pedais. Como não queria correr risco de ser multado por excesso de velocidade, me mantive dentro da velocidade determinada. Entretanto, a maioria dos americanos roda um pouco acima da velocidade limite (o melhor seria eu seguir a velocidade do fluxo), e acabei sendo ultrapassado por quase todos, inclusive muitos caminhões.
Uma curiosidade é que boa parte dos caminhoneiros não gosta de sair da faixa da direita, e mesmo que você – mais lento – fique também deste lado, eles colam e te forçam a sair da frente (ultrapassar pela direita não é infração). Nenhum susto na ida e na volta, com uma ‘boa’ média de 8,3 l/100 km (~12 km/l) – estamos falando de um carro de 1.865 kg nesta versão AWD. Já na parte final da viagem, precisei de 1h40m para passar pela alfândega da fronteira EUA/Canadá (feriado prolongado, sabe como é, né?) e o consumo final fechou em 8,8 l/100 km (~11,4 km/l).
Modificações/manutenções
Uma coisa que me incomodava era o console central imitando madeira. Nenhuma outra parte do carro tinha aquele padrão e ainda datava o interior. Optei por fazer um acabamento ‘black piano’. Comprei os materiais necessários (lixas, primer, tinta e verniz) e após lixar as peças por uns bons dias e refazer a pintura pelo menos duas vezes, cheguei a um resultado aceitável. No Sandero fiz a mesma coisa e todos gostaram, inclusive a Renault, que adotou a parte central nessa cor em algum momento da primeira geração do ‘pandeiro’. Em um final de semana também removi o para-choque traseiro, que estava com a parte inferior desencaixada e também com alguns arranhões. Comprei uma daquelas canetas de retoque para corrigir os pontos mais críticos.
Os freios começaram a dar sinal de cansaço depois de algum tempo. No frio, o choque térmico facilita o empenamento dos discos e em algum momento ele aconteceu, pois a direção vibrava durante as frenagens. Embora com pouco desgaste, a ferrugem decorrente do sal utilizado para derreter a neve também tomava conta dos discos. Resolvi substituir todos os discos e pastilhas de uma vez. O preço foi aproximadamente $70/disco +$70 por par de pastilhas. Troquei um flexível também. Custo total de aproximadamente $500, incluindo a mão-de-obra DIY. Como comparação, cotei esse serviço em um auto-center e me passaram um orçamento de mais de $1300. Este foi o último gasto que tive com o carro, duas semanas antes de vendê-lo.
Aurora boreal
Antes de me despedir do carro, nada como levÁ-lo para acompanhar um dos espetáculos mais bonitos da natureza, a Aurora Boreal. Dependendo da intensidade do fenômeno, este fica visível até dentro da cidade. Porém, o melhor é procurar um local sem influência das luzes urbanas e atravessar a noite admirando a dança do céu.
Infelizmente só tenho uma câmera digital amadora e não consigo registrar o momento com a beleza que ele se mostra. Atualmente apenas admiro o efeito e nem tento mais registrar nada. Fica apenas na memória.
Hora da despedida
Lembram do câmbio CVT? O mesmo que dá consumo para um V6 próximo de alguns motores quatro cilindros (GM que o diga) também é o Calcanhar de Aquiles do carro. O Freestyle foi o primeiro automóvel Ford a ter um câmbio continuamente variável. Por uma falha de projeto (existe até uma ação civil contra a Ford nos EUA por causa de problemas neste câmbio) muitos tiveram quebras dentro da garantia e continuam dando problemas até hoje. A Ford nunca deu muita bola para os consumidores e nem providenciou kits de reparo para sanar o problema.
Basicamente, se seu câmbio desse problema ou ele seria trocado pelo fabricante em garantia, ou você arcaria com a compra de um câmbio novo. Esse tipo de problema em um veículo depreciado pela idade significa um custo de reparação inviável. Deu problema? Vende o carro por quilo. Apesar de muitos exemplares de Freestyles terem mais 300.000 km sem nenhum sinal de quebra iminente, isso me incomodava. Vai que acontece amanhã?
Então numa sexta-feira acordei e decidi vender o carro. Ao final do mesmo dia já agendei alguns interessados e o primeiro que apareceu confirmou a compra – depositando o valor na minha conta momentos depois. Sábado pela manhã ele já estava com o novo dono.
A finalização da venda é bastante simples: você preenche os dados de transferência, que está no verso do documento de licenciamento e também preenche uma ‘Bill of sale’, que é encontrada online e pode ser impressa em casa. Nenhuma necessidade de reconhecer assinatura, comunicar DETRAN, etc. Você retira suas placas e o novo dono coloca as dele, se tiver. Senão, ele se dirige ao local mais próximo para fazer o registro/seguro em seu nome e adquirir uma placa.
Depois de tanta coisa, vendi o carro pelo preço que pedi (e de mercado), porém com prejuízo. Mas aceitei aquilo como o custo do aprendizado. Fiz uma análise crítica, pensei no que poderia ter sido diferente, onde dava pra economizar sem comprometer e se compensava passar por tudo isso novamente. Pensei umas duas semanas e aceitei correr o risco mais uma vez. E é disso que vou falar no próximo post, sobre a compra do Malibu 2008 recuperado de furto. Até logo!
Por Fernando Saccon, Project Cars #341