Por Rodrigo Almeida, Project Cars #76
Há cinco anos eu começava a contar aqui a saga da reconstrução de uma Puma GTS 1978. A restauração começava em 2009, exatamente uma década atrás. Naquele ano, o carro seguia parado no estaleiro do Dinaci, um senhor de quase setenta anos, responsável pela restauração do felino 1978. A ele, devo muito. O restaurador teve paciência de sobra pois cederia o teto que abrigou o carro por mais quatro anos.
Nesse período eu já havia decidido redirecionar a “Puma-Porsche” para um projeto “Puma-Rallye”, fortemente influenciado pelo famoso catálogo de preparação da fábrica, o PUMAKIT. O Puma Kit era um dos vários grandes legados de Jorge Lettry, o grande nome por trás dos motores da Divisão Puma de Competições. Lettry havia falecido um ano antes, em 2008, tornando sua influência ainda mais emocional à época.
As recomendações do Kit começaram a ser desenvolvidas em 1970. A Divisão de Competição testava diferentes ajustes e combinações de peças com seus clientes pilotos. Algumas davam certo, várias davam errado. As bem sucedidas receitas de ‘veneno’, como se referiam às preparações na época, acabaram sumarizadas em um folheto. O kit incluía recomendações de combinações de camisas, comandos, carburadores, caixas de câmbio e muito mais:
O Puma Kit popularizou-se. Tornou-se quase uma grife paralela à própria marca Puma. Era comum encontrarmos Fuscas, Brasílias, SP2 e demais modelos VW Aircooled que orgulhavam seus donos quando recebiam o badge “PUMAKIT EQUIPPED” comumente instalados na capela de refrigeração:
O departamento comercial da Puma investiu pesado para garantir que o Puma Kit alcançasse um público maior usando grandes publicações nacionais como canal de divulgação. Um exemplo é essa propaganda de componentes PUMAKIT na Revista Quatro-Rodas:
O sucesso era tanto que não demorou para proprietários de Fuscas tornarem-se clientes mais numerosos que os próprios donos de veículos Puma. Era para esse recém descoberto nicho de uma clientela interessada em ‘motores envenenados’ que toda uma estrutura comercial foi desenvolvida ao redor do preparador Jorge Lettry. O resultado era a publicação de valiosos manuais que eu mesmo usaria quando em busca do meu sistema ideal de alimentação:
Puma Special Editions
Foi usando esse catálogo que, em 1974, a fábrica começou a montar versões especiais de automóveis destinados à nichos de mercado bastante específicos. As principais edições de automóveis especiais foram Pumas de exportação enviados ao mercado europeu com motores 1600 desenvolvendo 80hp, Pumas Rallye destinadas à provas amadoras de automobilismo equipadas com motores 1800 atingindo cerca de 90hp e finalmente o raríssimo Puma Espartano.
A série Espartana era, por assim dizer, bruta. Não havia nada senão o que a fizesse virar tempo em pista. O que era supérfluo saiu. A atenção a detalhes era tanta que a fibra da carroceira passou por remoção de material com objetivo de reduzir ainda mais peso do conjunto. Outros detalhes interessantes diferenciam as espartanas das demais como redesenho da tampa do motor e vigia traseiro reduzido com objetivo de facilitar o acesso frequente a carburadores. Vale notar que o acesso aos carburadores da minha GTS 78 é extremamente complicado. Assim é a tampa traseira de uma espartana:
Algumas espartanas traziam tanques de combustível desenvolvidos para provas de longa duração. O capô dianteiro era alto e o bocal de abastecimento era externo. Os bancos eram concha e haviam opções de motores 2000cc, 2100cc e até mesmo 2200cc dependendo do regulamento da prova de cada cliente. O resultado estético final era nada menos que espetacular:
Obviamente nenhuma espartana conversível existiu. Óbvio pois a carroceria conversível não possui a mesma rigidez torcional de uma GTE, coupé. Como mencionei anteriormente, descobri esse problema em meu primeiro Trackday. Minhas portas desalinharam e a fibra trincou em vários pontos. Essa complicada característica da minha configuração de carroceria não teria sido uma surpresa houvesse eu comprado a Revista Quatro Rodas em Dezembro de 1979, 30 anos antes de batizar minha GTS no Autódromo de Guaporé:
Foi esse empecilho estrutural que me motivou a combinar a vocação civil de uma GTS com algumas melhorias PUMAKIT implementadas nas espartanas. Felizmente, a Puma identificou a mesma necessidade e lançou na época um meio-termo, outra versão especial mais na direção do projeto que eu buscava.
Entre 1972 e 1973 a Puma precisou produzir uma quantidade mínima de ‘Espartanos’ de rua, homologados como automóveis civis para competir em provas de rally na Europa. A versão conhecida como Puma-Rallye não possuía os mesmos adereços ‘hardcore’ do espartano de pista tais como capô traseiro alongado, entradas de ar laterais e tanques de 80 litros. Por outro lado, também incorporava elementos de alta-performance como cárter seco, radiador de óleo externo e motor 1800cc em um conjunto com interior e acabamentos originais. Foi justamente um desses raríssimos modelos que o Flatout divulgou aqui na sessão Achados meio Perdidos:
Embora meu projeto seja muito semelhante ao de outro Project Car já finalizado no Flatout, difere-se pela carroceria problemática. Nesse momento, meu chassis estava finalizado, linhas de freio eram novas, amortecedores Impacto estavam montados e a carroceria havia sido finalizada na cor Cinza Atlas.
GTS Rallye Edition
Inúmeros detalhes de acabamento chegavam todos os dias. Frisos, pestanas, vidros e emblemas que custavam mais do que a própria restauração mecânica propriamente dita. Ainda restava amarrar a carroceira da GTS, restaurar painel, capota, rodas, pneus, maçanetas, espelhos, iluminação, parachoques, estofaria em geral e montar um caríssimo motor digno de uma Puma GTS Rallye baseado em componentes PUMAKIT.
De olho nas provas de rally de clássicos que ocorriam no RS, assim como recém iniciadas competições amadoras de subida de montanha noturnas, pensei em melhorar um sistema de iluminação. Naquele momento, acreditava que a silhueta característica Puma mudava radicalmente com a adoção dos famosos Milhas Cibié externos. Além do mais, faróis cibié originais custam o mesmo que uma joia até os dias de hoje:
Uma opção alternativa foi a adoção de faróis modernos com lâmpada de milha embutida. As lâmpadas principais são halógenas, ultra amarelas, desenvolvidas com temperatura indicada para perfurar neblina pesada, características em subidas de montanha no inverno.
Mesmo que nada original, o milha embutido deveria ser eventualmente substituído por Xenon 3000k de Rally com único propósito de vencer a forte ‘serração’ gaúcha em dias de provas noturnas. Nunca cheguei a instalar o Xenon. A casa dos faróis não era grande o suficiente para abrigar os modelos modernos. A fibra precisou ser trabalhada para alojá-los. Os parachoques, enferrujados, foram para uma metalúrgica especializada em banho de ácido.
Infelizmente as peças estavam tão comprometidas que ao serem removidas do tanque, pouco havia sobrado. Na época, os parachoques eram tão caros que precisei economizar um ano para comprar novos fabricados em São Paulo. O resultado da carroceria Cinza-Atlas com parachoques novos, rodas restauradas, chassis renovado, amortecedores impacto e faróis modernos com lâmpadas super-amarelas em 2013 seria esse:
O painel foi completamente desmontado e enviado para um ‘restaurador de painéis Puma’. Indicado pelo clube local, o restaurador era supostamente especializado em painéis idênticos ao meu. O custo do re-estofamento do painel em couro era absurdo. Lembro que a cifra atingia o valor de um Fusca em mal estado.
A opção por courvim era significativamente inferior em preço. Coisa de 80% inferior e, portanto, minha decisão foi instantânea pela segunda opção que viria a me trazer um profundo arrependimento alguns anos depois. Como nem tudo seria perdido, os aros dos instrumentos do painel foram cromados e a iluminação original substituída por Leds. Foram alguns dos pequenos detalhes que mesmo distantanciando o carro da originalidade ainda me orgulham pelo excelente resultado final:
Os botões do painel, igualmente caríssimos, foram garimpados e restaurados um a um. Certos botões como o do esguicho de água chegaram a exigir um ano completo de buscas.
O restante do interior e capota ficaria a cargo de outro profissional, indicado pelo meu mecânico. Esse estofador exigia pagamento adiantado me forçando a cometer um grande erro que ao menos serviria como ensinamento. Durante dois anos não executou o trabalho contratado. Desapareceu com o dinheiro e posteriormente seria localizado e ‘persuadido’ a cumprir com o acordo de cavalheiro firmado sem qualquer tipo de contrato.
Entretanto, não se enganem. Caso estejam acompanhando, entre a desmontagem e as fotos acima foram necessários quatro anos. Enquanto não havia interior, iluminação, painel ou motor, o dinheiro que um engenheiro em início de carreira podia investir em um projeto com essa dimensão desaparecia. Os compromissos por outro lado seguiam. Ainda precisava trabalhar. A GTS havia sido meu primeiro e único carro. Embora exótica, meu meio de locomoção. Fatos que não impediam o mundo de girar. Uma decisão difícil precisava ser tomada. Enquanto a restauração não era concluída, precisava novamente de um carro. O projeto sofreria seriamente com esse ‘pequeno’ grande desvio. Era chegado o momento do meu primeiro substituto Puma, um Ford KA XR que viria a exigir divisão do meu orçamento mantendo a GTS ainda mais tempo em estaleiros.
No próximo capítulo volto para contar como dirigia o pequeno Ford enquanto buscava bancos, espelhos, borrachas, emblemas, descanso de braços, maçanetas e manivelas de vidros, laterais de porta, som, para-sóis e um volante novo. Afinal, não foi tão simples assim manter um antigo 1978 como primeiro e único carro. Até lá!