O estudo das características de originalidade Puma não é simples. Comecei com a internet, mas infelizmente no mundo Puma não há muitos restauradores preocupados com a herança da marca. Na época, eu ainda não acessava o blog do Felipe Nicoliello, a principal referência em originalidade Puma no Brasil. Descartada a internet, comecei a usar fotos de época para capturar detalhes pelo olho. Identificar medidas exatas a partir de fotografias antigas é um trabalho hercúleo. Finalmente, cedi e comecei a participar de encontros de antigos onde Pumas placa preta aparecem vez ou outra. Fotografei absolutamente tudo. Havia detalhes que necessitariam reconstrução tais como maçanetas de Alfa no lugar das originais do 1978.
Nesses encontros conheci a turma do antigomobilismo gaúcho. O embrião da hoje profissional Copa Classic surgia em provas esporádicas quando ainda era possível competir com carros muito próximos do original. Era possível andar na pista com interior montado, preparação leve, rodas e pneus de rua e sem santo-antônio. O mesmo grupo começava a organizar provas de Subida de Montanha para clássicos, uma das mais elegantes modalidades de automobilismo em minha opinião. Além das Subidas noturnas que surgiam, descobri o Classic Car Club do RS, instituição antiga que promove campeonatos de Rally para clássicos. Entre etapas internacionais, eles promovem os anuais Rally da Serra e Rally da Meia-Noite.
Esses eventos sensacionais no coração do RS são muito semelhantes aos realizados nas edições modernas da Mille Miglia na Itália. Com uma rápida passada pelas fotos do evento gaúcho pude ter certeza que esses ralis eram de fato as competições de “gentlemen drivers” que eu acreditava ser exclusividade do velho mundo. O projeto evoluía e com a GTS desmontada refazendo chassis, linhas de freio e câmbio. O objetivo agora era readequar a Puma-Porsche para as competições de clássicos.
O processo foi lento e caro. Enquanto o dinheiro evaporava, amigos e familiares agora me viam como “o cara do Puma”. Raramente entendiam minha devoção. Quantas vezes não ouvi que com o dinheiro gasto poderia comprar um carro normal para montar um turbão ou um médio sofisticado? Após um tempo desisti das discussões com quem busca em seus automóveis eletrônicos e sensores enquanto eu exigia meus test-drives em serras e curvas. Sentia-me vivendo em um mundo a parte. Se não entendessem o apelo aos meus olhos de um AX ou Swift GTi, não seria de Puma que iríamos conversar.
O entusiasta automotivo percebe por através de parafusos, engrenagens e polias uma orquestra em que partes mecânicas individualmente inúteis interagem coesas com precisão incomparável a quase todos outros fenômenos ao nosso redor. Quantos de nós nunca observamos absortos com curiosidade hipnótica o esquema explodido de uma peça complexa?
Somos forçados a aceitar produtos cujo fim é puramente comercial e, consequentemente, aceitação em mercado supera por uma margem avassaladora antigas preocupações, tais como prazer ao dirigir e diversão. A Puma, decididamente, não nasceu como um desses produtos.
Herança do esporte a motor
Durante a década de 60 o automobilismo brasileiro era coisa séria. Para conquistar preferência dos consumidores, as principais fabricantes nacionais competiam por tempos em pista em vez de quantidade de porta-copos. As corridas eram dominadas principalmente pelos Willys amarelinhos com o sensacional Interlagos (Renault Alpine 110 brasileiro), pela Fábrica Nacional de Motores e suas Alfas nacionais, pelos Simca e claro pela DKW-VEMAG que representava no Brasil as argolas germânicas da Auto Union.
Embora as Decas e Vemaguetes dois-tempos possuam seu charme inegável, a chegada dos Alpines europeus desequilibrou todas as competições a favor da Willys. Em 62 o Interlagos Berlineta pilotado por nomes como Wilson Fittipaldi e Bird Clemente, destruiu tudo que enfrentou. Após muita surra a Simca respondia a agressão importando três Simca-Abarth para andar em 64 e 65 enquanto a FNM trazia Alfas envenenadas.
O mago dos dois-tempos de fumacinha azul, Jorge Lettry, precisava construir um carro competitivo para a DKW-Vemag. A fim de enfrentar os Alpine decidiu-se projetar do zero um protótipo com a ajuda do italiano Rino Malzoni. A construção do carro envolveu o gênio do design Anísio Campos que seria também responsável por desenhos Dacon-Porsche, Puma e de quase todos os fora-de-série nacionais anteriores à abertura das importações. Lettry se encarregaria de sua bruxaria na mecânica DKW. O resultado seria o temível DKW-Malzoni, primeira ameaça séria à hegemonia dos amarelinhos da Willys. Em 65 o protótipo reconstruído em fibra finíssima seria renomeado de Malzoni GT e logo mais se tornaria o Puma DKW.
Em 1966 na mais emblemática das Mil Milhas de Interlagos, a Vemag enfrentaria inimigos poderosos. Além dos Simca-Abarth e Willys Interlagos conduzidos pela equipe que incluía Bird Clemente, a Dacon trazia o Karmann-Guia/Porsche azul de José Carlos Pace. Camilo Cristófaro, o Lobo do Canindé, trazia a invicta Carretera 18. Não seria fácil para a “Puma”.
Nas mãos dos moleques Emerson Fittipaldi e Jan Balder, o motor 1.0 das DKW levou os três carros da equipe às três primeiras posições. Faltando quatro voltas para bandeirada, o Malzoni de Fittipaldi/Balder perde um dos cilindros. Chefe dos mecânicos, Miguel Crispim, sinalizou para Jan parar mas o piloto o ignorou. Conta-se que Emmo chorava inconsolável como um bebê quando percebeu a velocidade de aproximação da Carretera 18 com mecânica Corvette. A três voltas do fim, Balder não teve escolha senão parar o Malzoni. Jan escabelava-se enquanto aguardava Crispim substituir as três velas tomando choque de todo lado.
Com o tempo perdido a Carretera de Camilo já havia tomado a ponta e o recém-consertado cilindro morria novamente. O risco não era mais perder a liderança e sim ser ultrapassado por absolutamente todo o grid nessa prova competitiva em que o pelotão seguia embolado. Os mecânicos da Dacon perceberam a vulnerabilidade e ordenaram pé embaixo no KG de Wilsinho. Os irmãos Fitti estiveram a metros um do outro dividindo curvas juntos.
Na última quase reviravolta do dia o mecânico da equipe Lobo sinalizava para a Carretera com um funil. O V8 foi obrigado a parar para abastecimento enquanto o DKW se aproximava enfermo e bi-cilíndrico, mas com gana de vitória. Nos boxes todos temiam que o motor de Corvette não desse partida. Quando os oito canecos rugiram restava aos nossos ídolos Jan Balder e Emerson Fittipaldi chorar decepcionados.
Inconformados com o resultado Jan, Emo, Lettry e Crispim foram à revendedora Vemag Comercial MM, sede da equipe, na manhã seguinte. Crispim percebeu o problema óbvio e ligou um condensador reserva junto às bobinas, trabalho de 30 segundos, quando o DKW voltou a trabalhar limpo e sem falhas.
Logo em seguida a Vemag seria adquirida pela VW e o sucessor do Malzoni, quase campeão das Mil Milhas de 66, sairia de cena. A Puma DKW, cuja inspiração Anísio buscou na Ferrari 275 GTB, daria lugar ao GT, o primeiro Puma VW. A nova empresa viria ser chamada de Puma Veículos e da Lambo Miura Anísio traria as linhas para o novo esportivo. Novamente o GT seria preparado por Lettry e fabricado na linha artesanal sob comando de Crispim. A primeira concessionária não poderia ser outra: Comercial MM. O QG da Vemag Competições venderia ao consumidor comum um produto cujo diferencial não seriam porta-copos e descansa-braços, mas sim o respaldo daqueles que ajudaram a criar o automobilismo brasileiro.
Um tributo ao legado da Puma
Ainda hoje ouço o “põe um AP ou o boxer do STi”. Preferia ter tido a oportunidade de buscar a GTS zero-m na MM e receber as chaves das mãos do Miguel. Aproveitaria para perguntar ao Jorge Lettry como preparar meu boxer com as receitas do kit Puma por ele escrito. Não pude nascer na época áurea em que os motores de Lettry representavam a Puma em Rallys internacionais. Enquanto pesquisava pela história da Puma e muitos outros contos da fábrica, meu carro seguia desmontado no início de 2008 aguardando por definições de projeto. Aos 78 anos de idade em 16 de maio do mesmo ano morria Jorge Lettry e assim se inviabilizava meu sonho de encontrá-lo para perguntar se “dois Solecão 40 casam com p2” conforme ele se referia com intimidade a cada item de seu kit.
Enquanto lá fora a imprensa deslumbrada com as GTE preparadas com o kit Puma chamavam-nas de ‘Brazilian Corvette,’ eu iniciei o projeto tentando construir um Porsche por preconceito ao trabalho de maestros nacionais, por desconhecimento do nome desses grandes e por ser influenciado pelos que sempre perguntam “por que não um 550?”
Era hora de rever o projeto. Das referências Porsche permanecia o cinza atlas. Todo o resto seria agora inspirado em preparações de época, no kit Puma e na visão do time da velha Vemag Competições. Comprei a GTS por capricho, mas agora eu havia virado Pumeiro que se importa sim com a cor do friso. Na próxima, retorno com o kit Puma para homenagear os antigos da MM que se divertiam acertando solecão com meio parafuso avançado para ver labaredas clareando os túneis escuros da noite paulistana. Eram máquinas quentes. Até lá!
Por Rodrigo Almeida, Project Cars #76