Por Rodrigo Almeida, Project Cars #76
No último relato, enquanto a Puma GTS 1978 seguia parada por quase cinco anos, mencionei o quanto me habituei a subir serras todos os finais de semana. Primeiro com o XR, depois com o Si e 500 SportAir, curvas, altitude, frio e café expresso se tornaram minha religião.
A distância entre a cidade onde vivia e a serra nunca me desencorajou. Eram três horas de subida e três horas de descida, meu ritual e terapia semanal. Aguardava ansioso pelo momento de ouvir a reverberação dos “pops ‘n’ bangs” nos túneis de plátano. Me tornei um caçador de curvas perfeitas. Havia mapeado e batizado cada trecho sinuoso de todas as estradas vicinais em serras próximas capazes de justificar tanto investimento em suspensão. Desenhei no mapa a rota dos sonhos conectando as melhores curvas da serra gaúcha com as mais convidativas da catarinense. Deixei um jogo de Potenzas na Rota Romântica, cruzando os Campos de Cima até Lauro Muller, descendo a inigualável Serra do Rio do Rastro e retornando pela magnífica Rota do Sol durante a roadtrip perfeita.
Com a aproximação da Copa do mundo, obras de trânsito se espalharam por todos os lados. A empresa onde trabalhava ficava exatamente na metade do caminho entre minha casa e o meu templo de curvas. O cotidiano se resumia em sobreviver ao inferno astral dos engarrafamentos de três horas em cada sentido. Na época, somente voltava a respirar paz e tranquilidade ao virar a chave e ouvir o click da bomba nos sábados de manhã.
Em nossos retornos após essas extraordinárias subidas de montanha, cruzava com o escritório exatamente ali, na metade do caminho. Minha esposa ponderou sobre a incongruência de dirigir no sentido contrário, me afastando de onde deveria estar. Além do mais, pesava o argumento de trazer a GTS de volta. Um conversível, praticamente concebido para aquele habitat de curvas, subidas e descidas com cabelos ao vento, não combinaria com todo o sofrimento que havia entre aqui e ali. Não fazia sentido.
Assim como ocorreu com a compra da GTS, do XR, do Si, decidimos muito rápido: “Vamos vender tudo! Vamos construir uma casa na serra!” Ao invés de esperar ansiosamente pelo fim de semana para riscar minhas curvas prediletas com borracha, o faria absolutamente todos os dias, inclusive a caminho do trabalho! O plano era óbvio: precisávamos tanto espaço para a Puma quanto para nós mesmos. Caso eu precisasse trabalhar de casa, que fosse entre os carros. Iríamos dividir a casa em duas, para nós e para os carros. Foi o legítimo momento “me belisca pois não posso acreditar”.
Anuncia apartamento, reduz preço, rejeita proposta, reduz preço novamente, vende apartamento, procura terreno, compra terreno, escolhe arquiteto, agenda entrevista, compartilha idéias, cria conta no Pinterest, discute aqui, discute ali e começavam a sair os planos e rabiscos:
Tomei as medidas, fiz download do SketchUp e comecei a explorar possibilidades. Gira, corta, mede, testa, ajusta e finalmente defini o potencial da coisa toda:
Nascia ali o Projeto Covil Puma.
A temporária casa nova
Tão rápido quanto a idéia veio, já havíamos nos mudado de cidade e passamos a viver de aluguel para organizar capital, as contas e tirar o projeto do papel. Correndo o risco de soar cliché, uma mudança pode ser um divisor de águas. Eu não mais esperava um final de semana para me divertir. O fazia todos os dias, o tempo todo, sem parar.
Trabalhar passou a ter um novo significado, acordava empolgado pelo muito aguardado momento de descer um curto trecho de serra dirigindo até o escritório. Incontáveis foram as vezes que passava pela minha cidade e dirigia um pouco mais simplesmente porque queria. Me tornei um monge à prova de estresse. Hoje em dia é extremamente raro e improvável que alguma inconveniência afete meu humor.
Nos últimos anos, nos poucos momentos em que algum problema se tornou suficientemente sério para tomar minha atenção, bastou um passeio soviético para me concentrar somente no momento e regressar de cabeça limpa, com minha capacidade de tomada de decisões lógicas e racionais completamente restabelecida. Por enquanto, impulsividade tem me servindo muito bem.
De casa alugada nova (ou melhor dizendo, acampamento) a decepção e apreensão com o Si havia finalmente me forçado a usar cada vez mais a GTS no estado em que estava. A revisão mecânica estava completa. De chassis à buchas e parafusos, passando por mangueiras, vedações e tubulações, tudo era novo.
A carroceria ainda brilhava recém saída da pintura com seu reluzente cinza atlas, aquele mesmo comprado de Porsche, disponível para Santana. O novo interior totalmente restaurado em courvim não era tão bonito quanto o original forrado em couro, porém chamava atenção. O serviço de estofaria e capota era muito ruim pois acabou sendo executado sob pressão conforme relato anterior. O motor seguia intocado, com carburação simples de solequinho, baixa compressão e ponto desajustado.
Ao menos o carro estava de volta. Haviam sido longos anos até passear de conversível novamente. Em meus primeiros dias com o carro, já andava para cima e para baixo com minha esposa matando as saudades:
A suspensão já estava com um setup que ainda hoje, pede melhorias. Foram instalados o sistema de catracas dianteiras e facão regulável na traseira em especificações PUMAKIT. Os amortecedores foram desenvolvidos sob medida pela Impacto Amortecedores Especiais. Eram 20% mais curtos e 20% mais rígidos. Após tanto tempo afastado do carro, não notei qualquer desconforto em relação à rigidez proporcionada pela engenharia da Impacto. Por outro lado, o curso bastante reduzido me condicionava a regular facões traseiros e catracas dianteiras bastante próximos ao chão. O carro andava baixo, muito baixo:
Os pneus calçando as rodas originais talas 6 e 7 permaneciam àqueles mesmos Toyos importados cinco anos antes, nas medidas 195/60/14 e 205/70/14 . Após tanto tempo passado com pouco uso, estavam ressecados e exigiam cuidados redobrados em curvas e frenagens. O ajuste de suspensão resultava em uma dianteira levemente caída e traseira erguida quando estacionado. Em acelerações o torque e peso do motor traseiro, aliado à dianteira peso-pena, nivelavam perfeitamente a carroceria. Característica icônica do sistema de suspensão VW á ar no Brasil, essa configuração de suspensão resultava em cambagem excessivamente positiva.
Meu pai era o padrinho espiritual do projeto. Nunca me permitiu desistir do carro quando parado por anos na oficina anterior. Merecia dirigir e dar uma volta na cidade nova. Naquele dia, parecia uma criança, empolgava-se exibindo suas habilidades inúteis como a troca de marchas no tempo. Ria sozinho, infantil quase, com a diversão do passeio. Estava tão absorto ou talvez desacostumado que esqueceu a altura do vão livre. Baixo como estava, o carro exigia cuidados com obstáculos mais altos. A parte inferior do papo chocou-se com violência contra um quebra-molas.
Desci e percebi que a fibra novinha e recém pintada havia sido completamente danificada. Uma rachadura surgiu ao longo de toda extensão inferior dianteira da carroceria. Levantei, ri, e despreocupado menti que havíamos tido sorte e não houve absolutamente risco algum. Vi um suspiro sincero de alívio e a volta da tranquilidade que permitiu àquela tarde o encerramento que merecia.
A GTS, fora do estaleiro onde dormiu nos anos anteriores, também precisaria de uma casa temporária enquanto seu covil era projetado. Nessa época, aluguei um box um pouco afastado de casa. A distância até a garagem alugada, a falta de confiança no motor de então e talvez o costume com a modernidade dos carros atuais me desanimavam a usar o conversível no dia-a-dia.
Sem dúvida nenhuma era chegada a hora de encerrar aquela relação de amor e ódio com o Honda e iniciar mais outro capítulo da saga ‘Puma Killers’. Que opções haviam capazes de me trazer tanta diversão na serra quanto o Si fazia, sem perda de potência, com mais conforto, com mais flexibilidade no uso diário e sem risco de canibalização financeira do projeto Puma?
Puma Killer no.5
O Jetta TSi é forte, sem dúvida alguma. Quando a turbina encheu, fechei o negócio na hora. O problema do Jetta, foi comprá-lo na serra. Isso me deu a oportunidade de descer até uma concessionária VW com pé embaixo. Pude testá-lo nas curvas onde o Si tanto me empolgou. Provavelmente não foram necessários mais que um par delas para perceber que um TSi não é um Si. A carroceria mergulhava em frenagens, erguia-se diante do encher da turbina e rolava perigosamente quando o Jetta era provocado. Infelizmente, como veio ao mundo, o VW não é um Touge car. Para adequar aquele conjunto ao meu estilo de direção, seria necessário investir. Provavelmente por falta de juízo, surgia mais um Project Car somado ao Project Puma, ao Project House e ao Project Baby (afinal, o 500 SportAir é tratado como se filho fosse).
Houvesse eu mantido o Jetta original, a GTS estaria muito mais avançada do que está hoje. As várias pequenas “correções do projeto VW”, como eu as chamava, drenavam dinheiro. Foram necessários pneus Yokohama Advan, molas Eibach Pro-Kit, bieletas australianas whiteline, batentes de amortecedores ECS, buchas de bandejas em PU, urethane buffers da TTC, amortecedores Bilstein B6, conexão direta do downpipe com abafador final além de discos slotados de 345mm com pinças maiores e pastilhas metálicas para recuperar a segurança em uso soviético como a proporcionada pelo Si.
Não foram modificações executadas de uma única só vez. Cada melhoria significava ajuste de orçamento. Entretanto, na medida que a dirigibilidade do carro foi se encaixando com o que eu buscava, ia finalmente me encontrando com o Jetta. O conforto torna-o muito mais versátil que o Si. Me tornei menos paranóico e viajei para todo lado. Foram viagens longas, curtas, frequentes, estive o tempo todo na estrada. Soma-se aos passeios com o VW a nova realidade que exigia descer a serra todos os dias para trabalhar.
Passei a rodar 60.000 quilômetros por ano e em pouco tempo atingi os 150.000 quiômetros no odômetro. O carro está prazeroso, com a potência que preciso, atende quase todos os meus ‘checks’. Quase. Com tanta estrada e uso hardcore, a troca de pneus grudentos e as manutenções são frequentes. Nunca outro carro me exigiu tanto dinheiro em manutenção preventiva – e corretiva. A mecânica VW TSI é maravilhosa (na Europa), mas cobra caro. Nada, absolutamente nada nesse carro é barato.
Tirando projetos do papel
Tamanho gasto e dedicação ao Jetta impactaram a execução dos outros projetos. Após organização forçada, foi possível iniciar a obra e ver as coisas se movendo enquanto a GTS seguia parada em sua nova garagem, novamente intocada.
Na medida em que a obra se arrastava por anos, usava a GTS esporadicamente. Evitava rodar muito ou ir longe. Após algum tempo de uso, o motor aquecia. Quando quente, era impossível dar partida. Essa pequena inconveniência limitava o uso descompromissado do carro. Usava a Puma em sábados ou domingos eventuais para passear até alguma cafeteria. Entre um expresso e outro a temperatura do bloco reduzia e era possível voltar para casa.
A alavanca Scat Drag Fast é renomada. Na GTS porém apresentava problemas. A segunda marcha exigia encaixe extremamente preciso e com muita violência. Não entrava suave e, pior, em caso de pressão à esquerda ameaçava engatar a ré mesmo sem acionamento do anel de segurança. Ouvia arranhões o tempo todo e assustava os que percebiam a luz de ré acionando em um carro já em movimento.
A Scat estava exigindo cuidado para não quebrar o câmbio. Os cintos de segurança de Rally quatro pontos escorregavam pelas laterais dos ombros e as alças caíam juntas aos braços. O formato dos bancos Procar modelo Porsche 911 não oferece suporte horizontal para esse tipo de cinto. Seria necessário a substituição por bancos concha ou instalação de harness fixados à carroceria atrás dos assentos.
O ritual dos passeios com o carro eram pouco práticos. Envolviam dirigir até a garagem alugada, alimentar o carburador completamente seco devido ao tempo parado e tomar cuidado para não afogá-lo. A falta de ponto causava alguns estouros inconvenientes no escapamento e minha esposa voltava para casa cheirando a óleo e gasolina.
Não seria possível fazer um motor como sonhava naquele momento, mas alguma melhora era mais que necessária. Lembrei do kit de dupla carburação Solex 40 de Opala comprando em anos anteriores. Faltava apenas encontrar quem soubesse montá-lo. No próximo capítulo me aproximo do momento atual do carro e introduzo a melhor fase dessa restauração que já dura 10 anos: a Puma Metal Garage, onde começou-se a construir a mecânica que por tanto tempo sonhei. Até lá!
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