O BMW Série 8 do Marco Centa foi chamado de “oito projetos em um” pois suas ideias sempre acabavam mudando em relação ao esboço original. Imagino que todos também passamos por isso antes de colocar a mão na graxa. Comigo não foi diferente. A minha primeira inspiração foram os Porsche 550 e o meu primeiro projeto foi consequência do meu upgrade de pneus e meu primeiro track day.
Existe uma linha tênue entre insistir em manutenção preventiva (para não dizer reativa) de um antigo e parar tudo para iniciar uma minuciosa restauração total. Inicialmente, o GTS foi usada por um ano sob sol e chuva, em estrada livre e engarrafamentos, empurrada pelo solequinho e platinado.
Meus upgrades de pneus contribuíram significativamente para o aumento de manutenção. Na primeira volta com os Toyo pude atestar o grip monstruoso. Minhas escorregadas sobre os antigos Pirelli traseiros não eram mais possíveis. O GTS não escapava mais em absolutamente nenhum tipo de curva. A busca pelo limite perdido começava a soar perigosa. Não era mais uma brincadeira divertida, era tensa.
Levei o GTS para meu batismo em track days, o 1º Track Day de Guaporé. A atmosfera daquele track day era diferente das que encontro nos track days que participo hoje. As pessoas mais se preocupavam em ajudar uns aos outros do que competir agressivamente por tempos e egos. Na pista, infelizmente, o GTS não foi tão bem. Nas longas curvas abertas de Guaporé, dessa vez em local apropriado e com segurança, busquei os limites do Puma. O pé ia cada vez mais ao fundo e nada de a traseira escapar. Admito que queria ser fotografado andando de lado com um rastro de fumaça perseguindo meus Toyos.
No seco, o grip era infinito. Não tinha mais medo. A cerca de 140 km/h resolvi esterçar forte mirando o lado interno da curva na esperança de soltar os pneus traseiros. Um barulho estranho no motor me seguiu e as luzes do painel começaram a piscar. Pisei na embreagem, acelerei forte para injetar mais combustível no carburador e tudo se normalizou. Nas curvas seguintes, quando abusava dos pneus submetendo a GTS a acelerações laterais muito altas o problema se repetia. Acabou ali o TD. Não haveria como encontrar o limite dos pneus naquela manhã.
O problema era simples. A aderência era tanta que a aceleração lateral se encarregava de manter o combustível preso na lateral do tanque e longe do alcance do pescador posicionado ao centro. A alimentação 1978 não era compatível com pneus 2008. O motor apagava por falta de combustível. No fundo, eu já sabia que qualquer solução para esse problema não seria resolvida com peças de cinquenta reais que vinha comprando para realizar manutenções rotineiras.
Ao estacionar o carro também percebi que as portas fechadas estavam desalinhadas. Dias depois levei em uma oficina para colocá-las no lugar e ouvi que é normal desalinhamento em carros ‘velhos’. Mais uns dias brincando em rotatórias e um motorista em um carro próximo me alertou para a porta aberta. Fui verificar e constatei que estavam fechadas, mas externamente desalinhadas outra vez.
Diagnóstico: a força G à qual o carro vinha sendo submetido estava empenando o chassis e consequentemente a fibra. Pontos de trinca na pintura surgiram. As portas não alinhavam mais. Descobrimos que a rigidez à torção da carroceria conversível é pífia em relação às GTE fechadas. O teto e a coluna fazem toda a diferença. Se continuasse a colocar os Toyo à prova não só seria necessário aumentar a rigidez torcional reforçando a amarração do chassis como também precisaria remover a carroceria inteira para fazê-lo. As entranhas expostas nos dariam acesso a tudo.
Independentemente do que havia na minha carteira naquele momento, o correto era abandonar o band-aid e refazer tudo a partir do zero. Se é o correto, que assim seja. Começamos a desmontar tudo e eu só viria a dirigir a GTS novamente em 2013.
Projetando no papel
Quando procurei por Pumas deparei com réplicas Chamonix de 550 e Envemo de 356. Inicialmente eu acreditava que não existiam diferenças técnicas entre os Puma e réplicas Porsche nacionais baseadas em mecânica VW a ar. O preconceito por réplicas e kit-cars pesou e esqueci os Porsches embora preferisse o design alemão em relação ao felino nacional.
Quando mergulhei no mar de informações Puma para iniciar a restauração me surpreendi ao descobrir a história de uma grande montadora brasileira aparentemente mais respeitada no exterior que no Brasil. Percebi que eu mesmo cultivava certo preconceito com as marcas nacionais e que lá fora especialistas consideravam o projeto tão bom quanto os primeiros Porsches.
As semelhanças entre a Puma e Porsches iniciais se encerram quando os alemães evoluem com projetos mais sofisticados de 356, 550 e posteriormente com o lançamento do 911. As melhorias de projeto incluíam otimização de escapamento, refrigeração, cabeçote, carburação, aumento de cilindrada e principalmente de suspensão. Enquanto na Alemanha Porsches e o VW Kafer recebiam suspensão traseira com braços arrastados, as Pumas com chassis Karmann Ghia e também o modelo seguinte com o chassis superior da Brasilia seguiam com eixo de torção.
Embora a intenção não tenha sido em nenhum momento construir um tributo ao Little Bastard, quanto mais estudei a mecânica Porsche à ar mais obcecado me tornei pela marca. Ainda coloco Porsche indiscutivelmente no topo do pedestal e na época cheguei a me arrepender por ter optado por uma Puma e não por uma réplica 550. Estudei as diferenças entre Pumas e Porsches uma a uma e meu primeiro projeto passou a ser adotar em minha GTS todos os componentes que transformaram os últimos 356 C 1965 e os 912 1965 a 1969 em automóveis consideravelmente superiores aos primeiros Spyder 550.
Copiando os aircooled quatro cilindros Porsche que rendiam 95 cv eu precisava de um novo comando de válvulas, escapamento, capela de refrigeração Porsche, retrabalho de cabeçotes, dupla carburação italiana Solex 40, discos de freios nas quatro rodas, suspensão ajustável dianteira e suspensão independente traseira.
Apesar de não encontrar motores de 356 e 912 por aí dando sopa, a lista de compras é muito mais simples do que parece. Os comandos de válvulas possuíam ângulos semelhantes de Kombi modernas ou ao famoso aftermarket Engle W110. No Brasil se encontra com facilidade uma cópia do Engle fabricada pela Federal Morgul.
A carburação dupla Solex 40 foi oferecida pela própria Puma nos famosos catálogos do Kit Puma mas encontrá-los hoje é praticamente impossível. A mesma carburação também já foi utilizada no Brasil nos Opala quatro-cilindros na versão Solex 40 DEIS, enquanto o ideal para VW a ar seria a versão EIS. Sempre consultando o experiente e conhecido preparador do meio, Chico Biela, descobri que é possível tampar entradas de ar existentes na versão de Opala e usá-la em VW a ar sem problemas. Comprei a dupla 40 de Opala em estado tenebroso e percebi que reformar carburadores é tão caro quanto montar injeção.
A dupla Solex 40 de Opala traz um porém, os carburadores não possuem lado (não há esquerdo, nem direito), são idênticos. Também com o Chico aprendi como fazer a engenhosa instalação com um dos braços de acionamento conectado ao outro de cabeça para baixo. Para facilitar ainda mais minha vida, a Sportsystem do preparador Sandro Bruno vende os acionadores prontos com a modificação para dupla 40. Também encontrei lá os coletores para essa carburação já que os vendidos no Kit Puma também desapareceram do mercado.
A Sportsystem também vende kit de refrigeração Porsche, discos traseiros e as “catracas” do Kit Puma de regulagem da altura da suspensão dianteiro. Desses comprei somente o último e preferi aguardar montar tudo e testar antes de alterar a refrigeração e instalar discos atrás. Para acompanhar as novas catracas pedi um jogo de amortecedores mais curtos e com 20% mais de carga feitos sob medida pela Impacto Amortecedores Especiais. A suspensão traseira independente (IRS) dos Porsches a ar desembarcou no Brasil na esquecida Variant II. Como meu mecânico possuía a sucata de uma dando sopa, estudaríamos cortar ambos os chassis e soldar toda a estrutura traseira da Variant no GTS.
Para fechar o pacote Porsche eu negociei bastante até importar através da Porsche Stuttgart a tinta dos 911 chamada Porsche Atlas Grey Metallic. Fiquei extremamente surpreso quando chegaram e descobri que a tinta possui código quase idêntico ao Cinza Atlas Metálico usado pela VW no Brasil em modelos como Santana.
Enquanto desmontávamos tudo e aguardávamos as encomendas restava pesquisar por itens de originalidade e acabamento com a comunidade de Pumeiros. Descobrir se determinado friso era cromado ou preto fosco se tornou mais trabalhoso que pensar em adaptações. O resultado dessas investigações me influenciou diretamente na redução de referências Porsche e no direcionamento em um segundo momento para o projeto Puma-Rally. Antes de pensar em Rally, no entanto, as entranhas expostas revelariam muitas outras dores de cabeça e mais dúvidas que certezas. Mas isso fica para o próximo post. Até lá!
Por Rodrigo Almeida, Project Cars #76