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Car Culture

Qual o conceito de carro esportivo, afinal?

Certo… na primeira parte desta série a gente viu que o conceito de “esportivo” para um carro acabou abrangente e relativo. Muita coisa que hoje é criticada por parte do público por, supostamente, não ser um legítimo esportivo, seria uma unanimidade se tivesse sido lançado com a mesma receita, mas na época das atuais unanimidades.

Eu ainda provoquei o público, perguntando se uma picape ou um SUV não podem ser esportivos legítimos — a ironia é que eles podem. E eles podem porque há um precedente que serve de referência para que eles sejam considerados esportivos.

Qual a receita de um “esportivo de verdade”?

O que causa confusão nesta discussão é a condição dos próprios carros atualmente. Não por que um Kwid pode ser mais rápido que um Willys Interlagos, mas por causa dos tipos de carro que existiam na época, como eles eram vistos e utilizados, e como os termos foram adaptados aos novos tipos e usos de carros que surgiram ao longo dos anos.

 

Trajes e carros

Você certamente já ouviu a expressão “traje esporte”. Essa expressão tem sua origem no “sportswear”, um estilo de traje que era, basicamente, o que se usava para praticar esportes no início do século XX. A partir dos anos 1920 e 1930, os estilistas americanos propuseram que esse tipo de traje fosse usado também para situações mais informais do dia-a-dia, em nome da praticidade e conforto.

Só que a evolução tecnológica da indústria têxtil levou os trajes para a prática esportiva para um outro caminho — especialmente à medida em que as modalidades esportivas se profissionalizavam (acredite: houve um tempo em que o esporte era 100% amador). Isso deu origem às roupas esportivas modernas, quase sempre feitas de tecidos sintéticos, tramados para eliminar o suor com mais eficiência e trazer mais conforto aos esportistas.

Tenistas e sua roupa esportiva nos anos 1920

Mas aí o jovem adulto nascido em 2005 recebe um convite para um evento, no qual consta que o traje recomendado é o “traje esporte fino” ou “sport chic”. Uma camiseta de poliéster, com uma calça de poliamida e um tênis de corrida formam um traje esportivo, não? Afinal, são roupas designadas para a prática de esportes.

Mas… por uma questão de tradição, o código de vestimenta manteve a terminologia clássica. Um traje esportivo é a versão moderna do tipo de roupas que se usava para praticar esportes quando esta terminologia surgiu.

Com os carros é a mesma coisa. Para muita gente, os mais jovens especialmente, os carros esportivos são aqueles que passam dos 300 km/h, que levam só duas pessoas, que têm só duas portas, chassi e carroceria baixa. Carros próximos dos carros de corrida mais avançados. Só que… o nome “carro esporte” surgiu em outra época. E por uma questão cultural, continuamos chamando de “carro esporte” os carros com características semelhantes aos daqueles primeiros “carros esporte”. É a mesmíssima coisa: o passado como referência para orientar o presente.

Um dos primeiros esportivos, ao menos considerando os carros projetados com esta finalidade, foi o Tatra Rennzweier. Ele tinha dois lugares, com o motorista posicionado mais alto que o co-piloto/mecânico, era despido de qualquer coisa que não servisse para seu próprio funcionamento/operação, e tinha centro de gravidade mais baixo. Ele estabeleceu a receita básica de todo esportivo: frugalidade, CG baixo e, claro, um motor possante. No caso, era um motor Benz de 9hp capaz de levá-lo aos 80 km/h.

Henry Ford também estava lá: seu famoso Sweepstakes foi criado especificamente para uma corrida contra Alexander Winton nos arredores de Detroit em meados de 1901. Enquanto o Winton Bullet era um carro relativamente comum, o Ford Sweepstakes era baixo, leve e potente — ainda que o piloto (o próprio Henry Ford, no caso) ficasse em posição elevada. Os dois são considerados os primeiros esportivos americanos.

A essência do carro esporte, contudo, está em um modelo lançado no mesmo ano da corrida americana, porém na Alemanha. Era o Mercedes 35 HP, o primeiro modelo Daimler batizado com o nome Mercedes, uma homenagem à filha do idealizador/comprador/distribuidor do carro, Emil Jellinek.

Emil Jellinek era um magnata austro-húngaro que, entre outras coisas, distribuía os carros e motores da Daimler na Riviera Francesa, onde vivia. Ele também corria com alguns destes carros, mas todos eram adaptações de modelos de passeio (chamados touring cars), entre eles o Daimler Phoenix (esse aí abaixo).

Com o Phoenix, Jellinek venceu todas as corridas, mas ainda não era suficiente para ele. Era preciso ter algo mais rápido e mais ágil e mesmo não sendo engenheiro sabia que isso era possível. Além disso, vencendo as provas ele mostrou à DMG que as corridas eram uma boa forma de propaganda para os carros.

Foi por isso que no ano seguinte, em 1900, Jellinek convenceu Maybach e o filho de Gotlieb Daimler, Paul (que ocupou o lugar do pai gravemente doente) a inscrever um Phoenix mais potente na prova de subida de montanha de Nice-La Turbie. Eles também decidiram que o piloto naquela corrida seria Wilhelm Bauer, um operário da DMG que também foi seu primeiro “piloto de testes”.

Nessa corrida que eles descobriram que o carro era muito pesado para competições — e foi da pior forma possível: na primeira curva, Bauer perdeu o controle do carro e tombou contra uma rocha e morreu no dia seguinte no hospital. Jellinek não aliviou o discurso e afirmou que a culpa pelo acidente não fora de Bauer, e sim do projeto do Phoenix.

A DMG decidiu se retirar das competições, mas Jellinek insistiu que elas eram necessárias para vender carros. Ele reforçou a questão do projeto do carro e graças à sua experiência nas corridas percebeu algumas características dinâmicas instintivamente.

Jellinek notou que carros curtos e com motores potentes são naturalmente instáveis e acreditava que se o carro fosse alongado, ganhasse bitolas mais largas e motor instalado em posição mais baixa e centralizada, ele seria mais estável e poderia ir mais rápido. Por coincidência, Paul Daimler e Maybach haviam estudado soluções semelhantes, mas a DMG ainda estava convencida de que voltar às corridas seria um tiro no pé devido à publicidade negativa causada pela morte de Bauer.

Jellinek por sua vez estava convicto que voltar a correr era a decisão certa, e fez uma proposta irrecusável. Ele ofereceu 500.000 marcos de ouro (algo como 3 milhões de euros em 2023) para que a DMG desenvolvesse um carro novo. Em troca ele compraria 36 unidades do modelo. Havia apenas três condições: ele precisaria ter as especificações ditadas por Jellinek, (entre-eixos mais longo, bitolas mais largas, motor de 35 cv, centro de gravidade mais baixo e ignição elétrica), ele seria vendido exclusivamente por Jellinek, e ele seria batizado com o nome de sua filha Mercedes.

A DMG pensou muito a respeito da proposta, mas diante das incertezas econômicas da época, eles toparam todas as exigências de Jellinek. Assim nasceu não apenas o primeiro Mercedes da história, mas também o primeiro esportivo produzido em série.

Note que ele tem a receita que até hoje é seguida por todo carro de turismo que acaba transformado em esportivo, ou simplesmente dos carros que nascem esportivos.

 

Uma grande viagem

Só que este é apenas o começo da história. Depois do Mercedes 35hp e do Simplex, sua evolução, surgiram diversos fabricantes e modelos de esportivos, como os Alfa Romeo, Talbot-Lago, Bugatti, MG, Austin Healey, sempre seguindo a mesma receita elaborada por Emil Jellinek nos anos 1900.

Com a evolução tecnológica, de novo, estes conceitos passaram a ser implementados em carros mais sofisticados que os velhos esportivos. Os carros passaram a ter cabines fechadas já nos anos 1910, e elas se tornaram um padrão nos anos 1920. Depois, os novos materiais e técnicas de construção tornaram os carros mais confortáveis e aerodinâmicos — lembre-se que foi nos anos 1930 que surgiu a construção em monobloco e os primeiros modelos “desenhados pelo vento”.

Um carro esporte ainda era coisa para gente rica como Emil Jellinek, mas nem toda gente rica queria um carro esporte para dirigir rápido por aí. Então, entre o fim dos anos 1920 e o início dos anos 1930, a indústria começou a adotar as características esportivas nestes modelos mais sofisticados, criando o que conhecemos como “grã-turismo”, ou GT.

Acredite: isso é um Alfa Romeo 6C GT

Os Grand Tourers foram batizados com inspiração no tradicional “Grand Tour”, um tipo de viagem ao redor da Europa, normalmente com destino à Itália, feita pelos jovens adultos das classes altas da própria Europa e da América do Sul. Era uma espécie de rito de passagem para a vida adulta – o jovem saía para conhecer o mundo. No início, estas viagens eram feitas em navios e carruagens, mas com o advento da locomotiva e sua rápida evolução, elas passaram a ser feitas sobre trilhos. Você pode ver isso em clássicos da cultura popular como “Morte Sobre o Nilo”, “Assassinato no Expresso Oriente” ou mesmo em “A Volta ao Mundo em 80 Dias”.

O surgimento do carro ainda não foi suficiente para que as grand tour fossem feitas ao volante — afinal, as rodovias e estradas só se tornaram o que conhecemos hoje a partir dos anos 1920. Nos anos 1950, contudo, com a prosperidade econômica da Europa e dos EUA após a Guerra, a ideia de se comprar um carro para fazer longas viagens à moda antiga se tornou atraente.

E como você faz um carro destes? Eu gosto da definição do editor da revista Classic Cars, Sam Dawson: “um carro capaz de cruzar um continente em alta velocidade, sem perder o conforto e, ainda assim, envolver o motorista se ele assim desejar”.

A ideia é que o motor seja capaz de “andar nos limites mais elevados de velocidade, sem inconvenientes, nem perda de potência útil”, que o espaço interno seja “suficiente para ao menos dois ocupantes com sua bagagem e ainda ter espaço disponível”, o projeto do carro “deve ser, por fora e por dentro, voltado ao controle total do motorista”, e a suspensão e acerto de chassi devem fornecer um comportamento dinâmico adequado em todo tipo de estrada durante as viagens”.

Note que ele mantém alguns elementos da receita básica dos esportivos primitivos, como o motor potente e o envolvimento do motorista com o carro — aqui por meio do acerto dinâmico e controles voltados ao motorista. Era o melhor dos dois mundos: você tinha o desempenho dos carros de corrida, sem abrir mão do conforto dos carros de passeio convencionais.

 

Então, qual a receita?

Notou que o carro esporte original evoluiu para o GT, muito por causa da evolução tecnológica, mas também por causa das mudanças sócio-culturais? Pois bem, voltemos aos trajes esportivos. O que era considerado esportivo, acabou se transformando no atual “esporte fino”, e o novo esportivo se tornou o “casual” — sim, calça de sarja, camisa polo e tênis, por exemplo.

A mudança nos carros foi semelhante, embora inversa: enquanto as roupas ficaram mais simples, os carros ficaram mais confortáveis, possantes e tecnológicos. Um carro dito popular hoje, tem mais equipamentos que um Mercedes-Benz Classe S de 1979. Também surgiram mais categorias de automóveis.

Enquanto nos anos 1900 só havia utilitários e carros de turismo — e aí o carro esporte se diferenciava de todos, porque não era um utilitário, nem um carro usado para as tarefas cotidianas ou familiares — nos anos 2020 praticamente todos os nichos já foram explorados pela indústria.

A definição de esportivo se tornou naturalmente mais flexível, como foi nos anos 1950, quando um carro de luxo virou esportivo porque foi desenvolvido com inspiração nas “grand tour”. Como nos anos 1960, quando sedãs familiares ganharam motores mais potentes para atrair o público jovem, dando origem aos muscle cars. Nos anos 1970, quando carros de rua, sem a menor pretensão de ir para as pistas, ganharam motores centrais-traseiros.

Volte ao surgimento do carro esporte, idealizado por Jellinek: um carro com seu acerto dinâmico voltado à maior velocidade e controle do carro, com motor mais potente para tentar superar seus pares. Note que todo o restante que hoje os guardiões do “Código Técnico dos Esportivos”, como freios mais capazes, suspensão mais firme etc, são consequências/demandas destes pontos centrais.

Se esse conceito de Jellinek será aplicado a um cupê, um SUV, uma picape ou um hatchback de cinco lugares, pouco importa. Se ele combina estas características, ele vai ter o tempero esportivo — que é aquilo que realmente importa nesses carros: o que você sente ao volante deles e o que você consegue fazer com eles, não o que você lê na ficha técnica ou o que você vai falar sobre eles.