Por mais que o nome de Ferdinand Porsche provavelmente seja mais associado aos carros esportivos, a verdade é que o Professor não pensava apenas em automóveis de alto desempenho. Nascido em 1875, o Dr. Porsche acompanhou a gênese do automóvel e até deu sua contribuição, ainda que cedo demais, para os carros elétricos do futuro – foi o Lohner-Porsche Elektromobil, de 1901, que lançou a ideia de usar motores elétricos individuais instalados diretamente nas rodas, os hub motors.
Ferdinand Porsche buscava inovação e via muita importância em projetos desenvolvidos para as massas, e era natural que, em 1934, ele tenha aceitado ser o designer e engenheiro responsável pelo automóvel idealizado por Adolf Hitler.
O briefing dizia que o veículo deveria ser robusto, levar quatro pessoas com relativo conforto e acessível, e todos sabemos qual foi o resultado: o Volkswagen – literalmente “carro do povo” em alemão – que deu origem à fabricante de mesmo nome e tornou-se, de fato, um dos automóveis mais populares do planeta.
A fábrica da VW começou a ser levantada em 1938 mas, com o início da Segunda Guerra Mundial no ano seguinte, a chegada do Volkswagen Typ 1 (seu nome oficial) acabou adiada para 1945, quando os primeiros 1.745 exemplares foram fabricados em Wolfsburg, então controlada pelos vitoriosos britânicos.
A noção de que Ferdinand Porsche também trabalhou no desenvolvimento de um trator, apelidado Volksschlepper (“Trator do Povo”, como você deve ter deduzido), paralelamente ao Volswagen Type 1, é bem difundida. Mas há informações conflitantes a respeito dos detalhes: certas fontes dizem que o Dr. Porsche construiu três protótipos ainda em 1934, enquanto outras dizem que o projeto sequer saiu do papel.
O que é tido como fato, porém, é que Porsche já estudava a ideia de utilizar um motor a diesel em seu trator. Ele também desenvolveu um sistema de acoplamento hidráulico para ligar o motor e a transmissão, pois acreditava que os trabalhadores rurais não conseguiriam operar corretamente um pedal de embreagem para engatar as marchas. Caso os protótipos tenham sido mesmo construídos, é bastante provável que utilizassem motores a gasolina.
Também é sabido que após a Segunda Guerra, os Aliados aplicaram diversas restrições à Alemanha, cuja indústria e economia tiveram de começar do zero em 1946. Uma destas restrições era bem específica, e dizia que apenas companhias alemãs que já estivessem fabricando máquinas agrícolas poderiam continuar a produção a partir dali.
O “quando” não é exatamente claro, mas é fato que, em algum momento no final da década de 1940, a Porsche concluiu o desenvolvimento de uma família de motores a diesel quatro cilindros, com potência que variava entre 14 cv e 55 cv, cilindros e cabeçotes intercambiáveis e arrefecimento a ar. Como a própria Porsche estava impedida fabricar tratores, foi firmado um acordo com a Allgaier GmbH, que em 1947 começou a fabricar tratores com mecânica Porsche. Eles eram assim:
É provável que você tenha estranhado, pois os tratores da Porsche são conhecidos por seu design bem resolvido, com uma carenagem de alumínio arredondada cobrindo o motor e os demais componentes da transmissão – uma caixa manual de cinco marchas (mais ré) com o já citado acoplamento hidráulico.
De fato, por considerar o desenho de seu trator “rústico” demais, a Allgaier encomendou algo mais refinado à Porsche em 1949. E foi assim que, em 1950, a Allgaier começou a produzir os primeiros tratores Porsche com o visual que conhecemos hoje.
Havia apenas duas cores disponíveis: verde com rodas vermelhas para o mercado alemão (acima), e laranja com rodas vermelhas para mercados internacionais (abaixo). Os tratores tinham o conjunto de motor e câmbio como componente estrutural, eixo do tipo portal na traseira e braços oscilantes na dianteira.
Eram tratores de qualidade, robustos e confiáveis. Fizeram sucesso, o que logo exigiu um aumento na capacidade de produção. Cerca de 40.000 exemplares foram produzidos pela Allgaier até o ano de 1955.
Àquela altura, algumas coisas haviam mudado. Em 1954 a Porsche firmou um acordo com outra empresa alemã, a Mannesmann AG, para abrir uma nova empresa chamada Porsche-Diesel Motorenbau GmbH – que, oficialmente, era uma subsidiária que pertencia totalmente à Mannesmann e de Porsche só tinha o nome.
Na prática o que a Porsche fez foi vender o projeto de seu trator à nova companhia, e é bem provável que também recebesse parte dos lucros.
Foi aberta uma nova fábrica na cidade de Friedrichshafen, onde ficava uma antiga fábrica de dirigíveis. Com ferramental de última geração, e os tratores começaram a ser feitos lá. Embora fossem praticamente idênticos aos produzidos pela Allgaier em construção e mecânica, eles agora eram pintados de vermelho.
A linha foi dividida de acordo com o número de cilindros e a potência de cada motor. Os tratores com motor monocilíndrico e potência entre 12 cv e 15 cv eram os Porsche-Diesel Junior, e tinham velocidade máxima entre 16,5 km/h e 19,9 km/h. O deslocamento era de 0,8 litro em qualquer caso.
Os tratores com motor de dois cilindros e potência entre 16 cv e 30 cv eram os Porsche-Diesel Standard, com deslocamento que variava entre 1,3 litro e 1,8 litro. A velocidade máxima era sempre de 20 km/h, mas havia a opção por uma caixa de oito marchas para a frente e duas à ré.
A versão três-cilindros se chamava Porsche-Diesel Super. Nesse caso, o deslocamento variava entre 2,4 e 2,6 litros e a potência, entre 25 cv e 40 cv.
Por fim havia o Porsche-Diesel Master, que tinha motor de quatro cilindros de 3,3 litros e 44 cv ou 3,5 litros e 45 cv. A velocidade máxima era de 26 km/h ou 27 km/h, e o câmbio podia ter cinco, sete ou oito marchas, e mais duas marchas à ré em qualquer um dos casos.
A Porsche-Diesel Motorenbau produziu tratores em Friedrichshafen entre 1956 e 1963, com aproximadamente 120.000 unidades fabricadas e vendidas para os Estados Unidos – destas, cerca de 1.000 foram vendidas para os Estados Unidos, especialmente na região da Costa Leste, até a fronteira com o Canadá (que ficou com alguns dos exemplares para si).
Também existem alguns exemplares no Brasil – na verdade, o mercado brasileiro recebeu uma série especial de tratores Porsche feita exclusivamente para cá: o Coffee Train P312, feito sobre o modelo Super P312 – que tinha um três-cilindros de 3,5 litros e 25 cv. O que ele tinha de especial era uma carenagem de alumínio que cobria não apenas os componentes mecânicos, mas também o corpo do operador até o pescoço, os pneus, as rodas e quaisquer outras protuberâncias da carenagem original.
É de se pensar até que se trata de um aparato aerodinâmico para conseguir mais velocidade máxima, mas na verdade o intuito é completamente diferente: os cerca de 300 exemplares fabricados tinham destino certo: as plantações de café no interior do Brasil, e a carenagem arredondada com superfícies lisas era desenhada para evitar qualquer dano aos delicados frutos.
Pouco depois de fechar um acordo com a Renault para distribuir seus tratores globalmente, a Porsche encerrou seu acordo com a Mannesmann e a fabricação de todos os tratores foi encerrada em junho de 1963. Coincidência ou não, foi em abril daquele mesmo ano, no Salão de Frankfurt, que a Porsche apresentou ao mundo o 911. Talvez fosse uma questão de foco. Talvez a Porsche tenha percebido que simplesmente não precisaria mais vender tratores para sobreviver.