Há 65 anos, no dia 23 de fevereiro de 1958, um grupo de nove rebeldes cubanos ligados ao movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, decidiu sequestrar o maior piloto do mundo, Juan Manuel Fangio, para chamar a atenção da imprensa mundial à sua causa.
Desde o 1955 o presidente/ditador de Cuba, Fulgencio Batista estava enfrentando o movimento revolucionário 26 de julho — uma guerrilha comunista que pretendia tomar o poder da mesma forma que Batista havia feito em 1952, por meio de um golpe de estado. Os guerrilheiros inicialmente se instalaram nas montanhas da Sierra Maestra, onde se envolveram em combates contra as forças de segurança de Cuba. Em um dos combates, Fidel Castro chegou a ser declarado morto por Batista.
Recuperados, os guerrilheiros se reagruparam e iniciaram uma ofensiva cada vez mais violenta com sequestros, bombas e assaltos a prédios públicos. Mesmo assim, Batista tentava manter um ar de normalidade nos grandes centros urbanos do país. E uma das ações para fazer tudo parecer tranquilo, foi a realização de um Grande Prêmio de Cuba.
A corrida, na verdade, era conveniente por outro motivo: desde que tomara a presidência, Batista tinha a intenção de transformar a capital da ilha em uma Las Vegas caribenha, onde os turistas ricaços dos EUA pudessem gastar seu dinheiro. Nos anos 1940 e 1950 Cuba era um paraíso tropical onde os americanos passavam férias e seus feriados prolongados, afinal, a ilha fica a menos de 200 km do território americano.
Para atrair esses turistas e seus dólares, Batista decidiu apoiar a organização de uma corrida de rua na famosa Avenida Malecon, de frente para o mar. O governo convidou os melhores pilotos da época para o evento e ofereceu um cachê generoso a eles. O então tetracampeão e principal estrela de sua época Juan Manuel Fangio recebeu US$ 7.000 (cerca de US$ 75.000 dólares hoje) e todas as despesas pagas para ele e três mecânicos.
O primeiro Grande Prêmio de Cuba aconteceu em fevereiro de 1957, e Fangio tinha como os concorrentes mais fortes Stirling Moss e Phil Hill. Além deles estavam também Alfonso de Portago e Harry Schell e outros pilotos de 11 países diferentes.
No público estavam os astros de Hollywood Gary Cooper e Linda Christian, atriz e namorada de Portago. Além dos famosos, houve um grande interesse do público local no evento devido a um sorteio que oferecia como primeiro prêmio um Cadillac e uma viagem para assistir o GP da Itália, em Monza.
A primeira edição do GP cubano foi um sucesso sob todos os aspectos. Fangio venceu a prova sob o olhar de milhares de espectadores alinhados pelas ruas da capital e logo se falou em repetir a prova em 1958. Mas a edição seguinte, contudo, não foi tranquila como se esperava.
Fangio foi convidado novamente para defender sua vitória, assim como Moss e todos os grandes nomes da corrida anterior. Contudo, a atmosfera da cidade havia mudado completamente. A revolução de Castro foi ganhando força e a repressão do governo aumentou.
Quando Faustino Perez, que liderou as operações clandestinas de Castro, ouviu que Fangio iria a Cuba, ele achou que uma boa ideia para chamar a atenção à causa dos revolucionários seria sequestrar a principal atração do evento, impedindo que ele participasse da corrida. Perez entrou em contato com Oscar Lucero Moya, que estava no comando das atividades em Havana, e eles começaram a arquitetar seu plano:
O sequestro de Juan Manuel Fangio.
Fangio chegou em Havana na sexta-feira, 21 de fevereiro e passou o dia seguinte preparando-se para a corrida e atendendo pacientemente os compromissos com Batista. Na noite de domingo, 23 de fevereiro, Lucero e outros nove sequestradores armaram a jogada. Eles descobriram por meio de um jornalista que Fangio estava no Hotel Lincoln. Naquela noite o bar estava cheio de pilotos e visitantes estrangeiros.
Pouco antes das 21h, Fangio saiu do elevador e juntou-se a seus amigos Alejandro de Tomaso (o piloto argentino que mais tarde fabricaria carros italianos com motores americanos), Nello Ugolini, o mecânico Guarino Bertochi, o diretor Marcelo Giambertone e o publicitário Carlos Gonzalez. Em certa ocasião, Fangio contou como foi abordado:
“Estávamos conversando quando subitamente uma pessoa com uma jaqueta de couro se aproximou. Ele tinha uma pistola automática na mão e disse a todos nós, com uma voz firme e decidida, que não deveríamos nos mover ou ele nos mataria”.
O homem era Lucero, e seus nove cúmplices também estavam no saguão. Fangio achou que fosse uma brincadeira, mas quando De Tomaso tentou impedir o sequestrador, ele percebeu que era sério e perguntou ao homem o que estava acontecendo. Lucero assegurou que nada de ruim lhe aconteceria e então Fangio caminhou com o sequestrador até o Plymouth preto que esperava na esquina.
Anos mais tarde, Fangio contaria que os sequestradores se desculparam por tudo e disseram que só queriam atrair a atenção do mundo para a causa deles. Ele foi levado a um esconderijo e mais tarde a outro, onde escreveu um bilhete para provar que estava vivo.
Os sequestradores rapidamente informaram as agencias de notícias que estavam com Fangio. As forças de segurança de Batista, diante de tal ultraje, montaram uma grande operação para encontrar o argentino e capturar os sequestradores.
As testemunhas do crime passaram horas vendo os livros de suspeitos, tentando identificar os responsáveis e muitos simpatizantes da causa castrista foram interrogados. Os aeroportos foram monitorados para tentar assegurar que Fangio não deixaria Cuba.
A polícia de Batista não conseguiu encontrar qualquer rastro de Fangio. Na segunda-feira de manhã, foi decidido que a corrida começaria sem ele. Naquela mesma manhã Faustino Perez chegou a Havana e falou com Fangio sobre a revolução. Ele havia encontrado com Castro no Granma (o iate dos revolucionários) e era próximo do líder. No encontro, Perez pediu a Fangio desculpas por suas ações, mas explicou que ele seria libertado tão logo a corrida fosse completada.
O campeão mundial passou o dia matando tempo e recusou a oportunidade de ouvir o evento pelo rádio. Os sequestradores também tentaram explicar seu programa revolucionário, mas Fangio declinou a discussão porque não se interessava por política.
Na Malecon a segurança havia sido reforçada, o que não impediu que o público continuasse chegando para ver a corrida. Havia o dobro de espectadores em relação ao ano anterior e mal havia espaço para se mover.
Quando o horário da largada chegou, as forças de segurança de Cuba continuavam a procurar Fangio. Finalmente, depois de uma hora e meia de atraso, Maurice Trintignant pegou o carro de Fangio foi para o grid. Logo na largada Masten Gregory assumiu a ponta, mas logo depois Moss tomou a posição.
No começo da sétima volta, o piloto cubano Armando Garcia Cifuentes perdeu o controle de sua Ferrari na curva da embaixada americana e atingiu um grupo de espectadores em uma praça. Sete pessoas morreram e cerca de 40 se feriram tentando fugir do acidente. Com apenas seis voltas completas, a corrida foi interrompida e Moss foi declarado o vencedor.
No esconderijo, os rebeldes estavam preocupados com outras coisas. Ele achavam que poderiam ser enganados se negociassem diretamente com o governo, e estavam preocupados com a possibilidade de acabar todos mortos e culpados pela morte de Fangio. No fim, Fangio sugeriu que entrassem em contato com a embaixada argentina.
Depois de negociar com o embaixador Raul Lynch, chegaram a um acordo. Fangio seria deixado próximo à casa do embaixador de forma segura para seus sequestradores cubanos. Isso também daria aos sequestradores a chance de fugir sem ser seguidos.
Perto da meia-noite o Fangio foi libertado a dois quarteirões da casa de Lynch. Arnold Rodriguez, que estava encarregado da operação disse a ele que quando a revolução acontecesse, ele seria convidado para voltar a Cuba pelo novo governo — como convidado de honra.
Fangio foi deixado junto com uma carta ao governo da Argentina, na qual os revolucionários pediam desculpas por usar o ilustre piloto para fins políticos. Na época ele contou à imprensa que havia sido tratado com cuidado e civilidade e disse que não tinha mágoas em relação aos rebeldes. “Foi mais uma aventura”, disse Fangio.
Dois meses depois do sequestro, Lucero foi denunciado por um traidor e acabou preso pela polícia secreta cubana. Ele foi torturado por várias semanas para entregar a rede de contatos e depois executado, apenas sete meses antes de Batista deixar o país e os rebeldes assumirem o poder.
O automobilismo voltou a Cuba em 1960, para um evento conhecido como Grande Prêmio da Liberdade, mas foi realizado em uma base militar fora de Havana e não atraiu muitos espectadores. Depois disso, houve a intervenção da Guerra Fria e Cuba acabou isolada como o resto do mundo que se aliou a um dos dois lados. O automobilismo parou no país.
Castro convidou Fangio para visitar Cuba, mas foi somente em 1981 que ele voltou a Havana para assinar um contrato de fornecimento de caminhões Mercedes-Benz ao governo de Castro (na foto acima). No aniversário de 80 anos de Fangio, entre as mensagens de pilotos de todo o mundo, havia uma “de seus amigos, os sequestradores”.
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