É um pouco complicado admitir tal coisa em um site sobre carros, mas em todo caso: nenhuma perda do mundo automobilístico nos últimos anos me marcou tanto quanto a morte de Neil Peart, em 7 de janeiro – ainda que a família tenha optado por esperar alguns dias para divulgar a triste notícia.
O som do Rush sempre me encantou, desde que comecei a ouvir o tal do rock and roll e, especialmente a variação progressiva, com seus tempos quebrados, suas músicas extremamente longas e suas temáticas líricas absurdamente variadas, indo de ficção e fantasia a profundas reflexões filosóficas sobre “a vida, o universo e tudo mais”. E o Rush, a meu ver, estava entre as melhores bandas do gênero. Com instrumentistas que sem dúvida estavam entre os melhores do planeta.
Neil Peart era mais que um baterista – um baterista tão bom que era chamado de “O Professor”. Ele era o letrista da banda – Geddy Lee era a voz, mas as palavras eram de Neil. E ele era bom com palavras.
Além de escrever uma porção de livros sobre suas viagens de moto, que ele começou a fazer para lidar com a perda de sua filha para um acidente de carro em 1997, e de sua primeira esposa para um câncer, dez meses depois.
O homem tinha tudo para desabar e acabar com sua própria vida. Em vez disto, ele decidiu dar um tempo e, neste tempo, descobriu no motociclismo a resposta. Viajar e conhecer novos lugares, novas pessoas, foi a forma que ele encontrou para se curar. E logo se tornou uma paixão – um hobby que o ajudou a reencontrar a vontade de viver.
Peart escrevia textos longos e detalhistas, descrevendo suas viagens e filosofando nas entrelinhas. Ele tinha uma boa visão do mundo, e sempre tentava extrair algo além do que se via na superfície, por todos os lugares por onde passava. E ele fez isto quando, pela primeira vez, decidiu viajar de moto durante uma turnê. E ele escolheu, de todos os lugares possíveis, nossa querida América do Sul. Em vez de pegar uma van ou um avião, como sempre fazia, ele pegou sua moto e, na companhia de amigo igualmente entusiasta, viajou por quatro dias pelo Brasil, Argentina e Chile.
Era outubro de 2010, durante a turnê Time Machine do Rush – uma volta ao passado, tocando músicas mais obscuras dos álbuns antigos. Peart já era um motociclista experiente e não viajaria sozinho, mas a ideia de ter um prazo curtíssimo, que não admitia atrasos ou imprevistos, assustava Rush. Mesmo que nada grave acontecesse, um simples atraso poderia custar os empregos de muita gente envolvida na turnê – um show cancelado, de uma banda grande, por causa de uma viagem de moto totalmente desnecessária, seria uma catástrofe.
Mas Peart tinha que fazer aquilo. E ele contou toda a história.
A turnê começou no Brasil, e Peart deixou São Paulo rumo à Argentina passando pela região Sul do Brasil – indo parar em Itapiranga, no extremo-oeste de Santa Catarina, depois de se perder pelo caminho. Mas foi uma surpresa inesperada e agradável, que deu a Neil a oportunidade de filosofar sobre como este tipo de surpresa pode ser boa.
Nós traduzimos, abaixo, boa parte do relato, publicado em novembro de 2010 – que, veja bem, tem quase 8.000 palavras. Nos concentramos na porção brasileira da viagem, que é a mais interessante para nós. Mas, se você entende inglês, . Peart tinha um estilo de escrita muito orgânico, mas também complexo e delicioso de ler. É uma boa chance de entender como ele enxergava as coisas.
O poder do pensamento mágico
Todos nós temos nossas próprias formas de “pensamento mágico”, por assim dizer, e o meu me trouxe a este “passe”, por assim dizer. Por mais que minhas crenças sobrenaturais não incluam deuses no céu ou “técnicas de visualização”, elas admitem, sim, as atividades igualmente irracionais de ter sonhos, ousadia e esperança. E foram estas mesmas qualidades que me fizeram acreditar que eu poderia fazer uma turnê passando por Brasil, Argentina e Chile de moto.
Assim que a turnê pela América do Sul estava na fase de planejamento, para outubro de 2010, comecei a brincar com a ideia de fazê-la de moto; então comecei a pensar alto e, dali em diante, virou uma questão de esperança. Eu sabia que não seria fácil. Meu parceiro de longa data, Brutus, faria o planejamento da rota e a logística (ao ponto de viajar comigo para o Brasil dez dias antes para fazer um “reconhecimento” antecipado); e iria percorrer o trajeto comigo. Da minha parte, eu daria a oportunidade, tocando bateria com o Rush em São Paulo, no Rio de Janeiro, Buenos Aires e Santiago (para conseguir o “dinheiro para a gasolina”), e também cederia minhas duas BMW R1200 GS, com óleo e pneus novos; alforges reforçados; espaço para ferramentas, pneus e equipamentos de primeiros socorros; e galões de gasolina reservas.
No passado, Brutus e eu já havíamos passado por uma quantidade considerável de aventuras viajando de moto, muitas vezes juntos. Sabíamos como nos preparar para uma road trip como aquela, e como improvisar para contornar vários obstáculos pelo caminho. Mas, ainda assim – também precisaríamos ter sorte. E foi aí que o pensamento mágico entrou em cena.
Seria minha primeira viagem de moto pela América do Sul, e a primeira vez em que tentei combinar “viagem de aventura” e “viagem a trabalho”. Um passeio de bicicleta pela China em 1985 me apresentou às viagens de aventura, e levou a outras jornadas em veículos de duas rodas com pedais, na Europa, na América do Sul, e em muitos países da África Ocidental. Em turnês com a banda, eu já usava bicicletas e motos como uma espécie de “veículo de fuga” havia muitos anos, mas até então eu sempre mantive a aventura e o trabalho separados, cada um em seu lugar.
À medida em que as datas na América do Sul se aproximavam, admito que fui ficando cada vez mais nervoso a respeito, definindo meus sentimentos como “antecipação e apreensão – em igual medida”. Esperança e medo, em outras palavras. Na van do aeroporto para o primeiro hotel, em Campinas, perto de São Paulo, sendo conduzido (e escoltado por seguranças armados) pela rodovia escura, eu até senti um pouco de pavor. Depois do primeiro show, em São Paulo, quando Brutus e eu começamos nossa jornada, me senti como se tivesse um nó no estômago, e levei aquela ansiedade comigo pelo caminho todo. Em muitas ocasiões eu pensei “isto não foi uma boa ideia.”
Muita gente concordaria comigo, e achavam que não era uma boa ideia desde o começo – minha esposa Carrie, por exemplo. Quando ela ficou sabendo dos meus planos de viajar de moto pela América do Sul na turnê, ela ficou horrorizada e incrédula. Minha mãe também não gostou da ideia. Meu parceiro de motociclismo nos EUA, Michael, que eu já descrevi como meu “Diretor de Segurança Local” (o que obviamente inclui a mim), tentou me desencorajar. O empresário Ray e meus colegas de banda Alex e Geddy provavelmente também tinham suas ressalvas, mas foram sábios o bastante para não se manifestar (eles sabem que eu posso ser absurdamente teimoso, talvez especialmente quando estou preso a uma ideia ruim). Agentes e promotores e membros da road crew ficariam temerosos por seu ganha-pão.
Mas o que eu podia fazer?
Sério. Asim que vi o itinerário, quatro dias de folga entre os shows no Brasil e Buenos Aires; e uma vez que Brutus já havia feito um mapeamento preliminar e determinado que poderia dar tempo, tive a impressão de não ter escolha. Era o exemplo perfeito do tipo de decisão que parece óbvia para mim: eu tenho quatro dias entre os shows na América do Sul; qual é a forma mais excelente de gastar estes quatro dias?
Ora, andar de moto por lá, claro.
Como se fosse fácil.
Eu cedi aos meus entes queridos (e a meu próprio desejo egoísta de sobreviver), prometendo que não andaria de moto em nenhuma das grandes cidades, ou para os enormes estádios de futebol onde iria tocar. Pelo jeito Brutus e eu tínhamos mais o que temer nestes lugares – ladrões, bandidos e sequestradores (nossa!) – então iríamos nos aprontar em algum lugar a pelo menos uma hora de distância, entrando e saindo das cidades de van, acompanhados por Michael.
Tudo daria certo, desde que nada desse errado. Era um ato de fé – e pensamento mágico: sonhos, ousadia, esperança…
Conforme eu mencionei, Brutus já passamos por muitas aventuras de moto juntos – para o norte do Canadá, pelo México, e até da Europa para o norte da África, indo até a borda do Saara. E, em cada uma dessas jornadas, aconteceu algo inesperado – um problema mecânico, tempo ruim, um acidente – para nos atrasar por um dia ou dois, e mudar nossos planos. Quando uma viagem de aventura é interrompida desse jeito, você só para, resolve o qeu tem que resolver, e faz novos planos de acordo.
Mas a gente não teria flexibilidade para nada assim desta vez.
Quanto às “viagens a trabalho”, eu já ando de moto entre os shows há 14 anos – centenas de shows e dezenas de milhars de quilômetros – e nunca me atrasei nem para uma passagem de som, quanto mais para um show. Entretanto, desta vez eu não teria uma “equipe de apoio” em um ônibus com trailer nos arredores (seguindo pelas interestaduais enquanto eu explorava as rotas alternativas). Sem moto reserva, sem o BMW Roadside Assistance, sem concessionárias estrategicamente posicionadas, sem nenhum tipo de socorro “fácil” como se tem nos EUA e na Europa. Estaríamos praticamente sozinhos.
Eu escrevi para Brutus logo no começo de tudo, quando ele estava pesquisando e planejando cuidadosamente a nossa jornada (em um processo que durou cerca de seis meses), “você sabe que vamos andar bastante de moto nesta nossa pequena aventura, e NADA pode dar errado.”
Ele não precisava que eu o lembrasse, claro, mas talvez fosse outra forma de pensamento mágico, deixando bem claro – um amuleto para afastar o mau-olhado.
Mas a gente mesmo um “anjo da guarda” olhando por nós. Michael instalou rastreadores por satélite nas nossas motos e, enquanto viajava de avião, com a banda e a equipe, ele poderia olhar no computador e acompanhar nossas “migalhas” (é como eles chamam os rastros eletrônicos que a gente deixava, um destes termos curiosos e lúdicos que às vezes surgem do jargão tecnológico – uma contradição que me fascina pelo menos desde 1980, quando escrevi a letra da nossa canção “Vital Signs” neste estilo).
Era meio estranho sentir que você estava sendo vigiado desse jeito (pelo menos uma vez por dia eu olhava para o céu, de punho em riste, e xingava Michael com palavrões), mas também era reconfortante. Se qualquer problema nos pegasse pelo caminho, iríamos mesmo querer toda ajuda que pudéssemos conseguir, o quanto antes.
No primeiro dia, navegando pelo trânsito, senti como se estivéssemos andando de pônei por uma enorme manada de carros, com os caminhões feito elefantes se erguendo acima de nós, e enxames de pequenas motos, como mosquitos, pululando por toda parte.
De Campinas ao Rio de Janeiro, e de volta a São Paulo, viajamos principalmente por rodovias de quatro faixas e retas intermináveis, porque tínhamos um caminho longo pela frente. Como Brutus havia me avisado, os número de caminhões superava o de carros em uma proporção de mais ou menos dez para um, mas os motoristas pareciam bons, e conseguimos ultrapassá-los facilmente nestas estradas. Contudo, havia muitas cabines de pedágio (quinze delas em apenas um dia de viagem) e, ao negociar com eles, Brutus e eu seguíamos o mesmo ritual que Michael e eu fazíamos nos EUA: Brutus parava na janela, e eu ficava à direita dele (dica de viagem: evite a faixa de óleo no meio, onde os carros e caminhões respingaram, especialmente em dias chuvosos). Enquanto Brutus pagava o pedágio, o atendente levantava a cancela e me dava o sinal para passar, e depois fazia o mesmo para Brutus – e assim ele tinha tempo para pegar o troco e o recibo, colocar as luvas e ligar a moto.
Longe das rodovias com pedágios, as coisas eram bem mais animadas e pitorescas, claro. Aqui vemos Brutus na estrada que levava a Petrópolis, uma bonita cidade colonial aninhada na Mata Atlântica ao norte do Rio de Janeiro.
Talvez de forma típica, as coisas começaram a ficar interessantes de verdade quando a gente se perdia – no Sul do Brasil, no segundo dia da nossa odisseia de quatro dias até Buenos Aires. De volta a Campinas, antes de partirmos, Michael e Brutus passaram muitas horas (e beberam muitas caipirinhas, o drink nacional do Brasil) brigando com nossos aparelhos de GPS.
Depois de todo este trabalho online, e várias ligações longas para a fabricante, os aparelhos funcionaram direito ao longo dos 515 km entre São Paulo e Petrópolis, e depois mais 885 km (foi um dia longo) para o Sul em direção a outra cidade grande, Curitiba. Mas, pouco depois de sair de lá, eles começaram a “vagar”. Algo semelhante aconteceu com Brutus e eu alguns anos antes, na Polônia e na antiga Alemanha Oriental, e o defeito era o mesmo: a linha roxa da nossa rota não atualizava na tela – ficava exatamente na estrada onde estávamos, ou perto o bastante para que conseguíssemos navegar por ela. Desta vez percebemos que só estávamos andando por outra área mal-mapeada, e que os nossos GPS eventualmente nos levariam ao caminho certo (pensamento mágico, outra vez).
Sabíamos que o caminho geral era sentido oeste-sudoeste, em direção ao Rio Uruguai. Só havia uma ponte naquela parte do país, que atravessaríamos e continuaríamos pela fronteira da Argentina. Enquanto seguíamos nosso caminho, olhávamos de vez em quando para a linha roxa na telinha, ou colocávamos na função “bússola” para ver se ainda estávamos indo na direção certa. Chegamos à conclusão de que não daria para errar tanto.
Até aquele ponto. Saindo de uma cidadezinha, a via pavimentada deu lugar a uma estrada de terra que acompanhava o rio marrom-esverdeado à nossa esquerda. Era tarde, já havíamos percorrido mais de 600 km, e as sombras estavam começando a ficar maiores à medida em que o sol ia descansar. Ainda não havia ponte nenhuma à vista – e nenhuma cama à vista, para nós. Claro, tínhamos mapas de papel, mas eles eram inúteis – porque não havia cidades, ou placas, nada para dar referência, e ninguém para perguntar. A melhor ideia que tivemos foi seguir rumo norte, onde a rodovia deveria estar, e seguir de lá. O nó no meu estômago estava ficando mais apertado e eu disse a mim mesmo, mais ou menos com estas palavras, “estamos fornicados”.
Mesmo depois de achar nosso caminho até o asfalto, estávamos confusos, achando que ainda tínhamos de seguir mais longe a oeste, acompanhando o rio. Então fomos por este caminho, passando por uma deliciosa pista sinuosa de mão dupla ao longo de uma cordilheira com vista para vales verdes, bosques e fazendas, passando por um ou outro caminhão. Ainda não havíamos nos dado conta de que estávamos totalmente perdidos, e para nós era apenas um passeio agradável em um fim de tarde. De tempos em tempos o Uruguai aparecia ao longe – e ao sul, exatamente onde deveria estar. E sim, as linhas roxas dos nossos GPS patetas continuavam nos assegurando que estávamos indo na direção certa. (Idiotas – eles e nós. Eles também mostravam que estávamos andando pelo meio do rio – o ícone de uma motocicleta em uma trilha azul – o que talvez devesse ter nos avisado de que a maquininha estava completamente perdida. Michael nos diria mais tarde que, enquanto olhava nossas migalhas errantes, queria poder gritar lá de cima para nós: “Sim, vocês estão mesmo perdidos!”)
Enquanto entrávamos em uma pequena cidade chamada Itapiranga, o asfalto de repente sumiu e deu lugar a uma estrada de terra novamente, com as árvores escurecendo o caminho à frente, e então paramos e abrimos o mapa outra vez. Agora sabíamos exatamente onde estávamos, e pudemos ver o quanto estávamos perdidos. A gente havia passado direto pela curva em direção à ponte algumas horas antes, e agora estávamos no ponto mais extremo do Brasil, com o rio ao Sul e, imediatamente a oeste de nós, a fronteira com a Argentina. Nenhuma estrada atravessava aquela fronteira, ou aquele rio – e eu sabia exatamente o que deveríamos fazer.
“Vamos parar aqui”, eu disse, apontando para a estrada que ia até Itapiranga. “É uma cidade bonita, deve ter um hotel.”
“É”, disse Brutus. “E aí amanhã…”
Eu o corto na hora. “Fornique-se amanhã, vamos cuidar de hoje primeiro.”
Enquanto sigo na frente pela rua principal, avisto uma placa, escrita com uma fonte gótica, “Hotel Mauá”. Para uma cidade de 13.000 pessoas, bem “no fim da linha” em vários sentidos, o hotel era ótimo – pequeno, austero, e escrupulosamente limpo, muito parecido com o que se vê na zona rural da Áustria, digamos, e com um estacionamento coberto e seguro para as motos.
Notei que havia alguns restaurantes na cidade, também, e seguimos em direção a um lugar aberto e casual, parecido com o se vê em uma cidadezinha italiana. Os alto-falantes tocavam uma música contagiante que misturava ritmos brasileiros e africanos, e eu peço ao nosso garçom para escrever os nomes dos artistas – dando a ele meu caderno e fazendo ele entender que eu queria conhecer a “música”. Uma noite subtropical, um bom hotel, jantar ao ar livre, música interessante – tudo estava indo bem até ali.
Enquanto eu fui para a calçada na frente do restaurante para falar com Carrie no meu celular (que milagrosamente funcionou perfeitamente naquele canto remoto do Brasil), Brutus estava falando em um português todo quebrado com alguns moradores locais. Ele soube que havia uma balsa em Itapiranga e, que de manhã poderíamos atravessar a principal barreira sem ter que fazer todo o caminho de volta. De lá poderíamos tentar nos localizar (à moda antiga, usando o mapa) para o local da travessia da fronteira, San Borja.
Na sacada do nosso hotel, Brutus e eu fizemos uma natureza morta com todos os nossos “dispositivos portáteis” (ainda daria um excelente nome para uma turnê, como eu já disse antes): celular, telefone por satélite, Nextel, rastreador por satélite, GPS idiota, mapa e câmera. (Para dar “verossimilhança”, incluímos também um copo de whisky e um maço de cigarros Red Apple, outros importantes dispositivos portáteis).
Em contraste com toda aquela demonstração de tecnologia, Brutus ficou acordado até tarde lidando com os mapas, copiando nomes de cidades, distâncias e (quando possível) números de rodovias em folhas de papel, para colocar nos porta-mapas. (É o tipo de GPS que eu chamo de “Get a Pen, Stupid.”) (Nota do tradutor: “pegue uma caneta, seu idiota.”)
Acordei com o nascer do sol, e como já haviamos feito em tantos outros dias de longas viagens, comemos pão e tomamos café no hotel, carregamos as motos e seguimos rumo à balsa. Ela era só um pequeno barco aberto, mas em questão de minutos havia nos transportado por toda a largura do rio, brilhando em azul sobre o marrom-esverdeado daquela manhã ensolarada, e nós nos nos vimos imediatamente… perdidos de novo.
Não havia nada lá, só algumas casinhas e duas quadras de ruas apertadas, poeira, terra e pedras (não cascalho – pedras). Logo recorremos à forma mais primitiva de GPS que existe – achar uma pessoa e dizer o nome da vila que estávamos tentando encontrar (“Gaucha Vista?”, nesse caso) repetidamente, apontando para a estrada com cara de ponto de interrogação. Basicamente, com cara de idiota.
O único lado negativo deste método é que você precisa de pessoas para perguntar, e elas eram escassas naquela estradinha de terra, indiscernível das trilhas e caminhos que levavam a direções diferentes. Frequentemente fazíamos paradas para considerar outras escolhas – e olhar para nossas bússolas de GPS (os idiotas, como eu já os chamava rotineiramente, enquanto Brutus zombava do seu o chamando de “a bússola de mil dólares). Não havia placas, lógico – nenhuma – e, como já mencionei a respeito de tais estradas sem placas na África ou no México, mesmo se você estiver no caminho certo, não tem como saber.
Havia certa ansiedade naquele dia, também, já que a gente realmente precisava chegar à fronteira, em San Borja, o mais cedo possível. O promotor do show havia instruído um agente a nos encontrar lá e nos ajudar com as “formalidades”, e precisávamos estar lá ao meio-dia. E ainda tínhamos um longo caminho até Buenos Aires nos próximos dois dias.
Mas logo descobrimos uma verdade importante sobre o Brasil – várias verdades, aliás. Claro, estávamos perdidos em uma estrada ruim em um área rural isolada, mas Michael e eu já havíamos nos pego nesta mesmíssima situação muitas vezes nos EUA. E, de igual a antes, assim que Brutus e eu conseguimos nos desvencilhar das trilhas gastas daquele lugarzinho rural, acabamos em uma estrada de duas faixas com asfalto bom, pouco trânsito, e uma bela paisagem do interior.
Um detalhe revelador: ao longo daquela estrada de terra, perto do rio, eu vi um homem conduzindo um arado com dois bois. E mesmo assim, uma hora depois, no trecho asfaltado, passamos por fazendas enormes, e eu vi muitos tratores John Deere grandes e modernos, e colhedeiras verdes brilhantes com lâminas de dois metros. A agricultura de subsistência pode até ser a realidade econômica nessas áreas isoladas mas, naquela mesma região, aqueles cantinhos da Idade do Ferro coexistiam com mecanização em larga escala e urbanização ao longo das vias principais e cidades, tudo muito contemporâneo. Brutus e eu vimos áreas subdesenvolvidas no Brasil e, mais tarde, na Argentina também, mas com certeza não dá para dizer que os países são subdesenvolvidos – bem o contrário, na verdade.
A maioria das histórias sobre viagens de moto pela América do Sul que eu li se concentram em atravessar o continente – caras que fazem maratonas viajando pela Rodovia Pan-Americana do Alasca à Terra do Fogo, por exemplo. Mas eu logo me dei conta de que se certamente eu poderia dar um belo passeio por dentro da América do Sul. Aquelas estradinhas vermelhas, como aparecem nos mapas do Guia Quatro Rodas, eram o segredo. E, diferentemente de São Paulo e do Rio de Janeiro, as cidades e vilas menores eram totalmente civilizadas e hospitaleiras.
Minha definição resumida para aquilo que algumas pessoas chamam de “Terceiro Mundo” é: “qualquer lugar onde o ar seja infestado pelo lixo humano.” (o leitor pode traduzir isto como achar melhor). Tal definição necessariamente inclui boa parte da China, a África abaixo do Saara, e mesmo partes do sul da Europa – cidadezinhas do interior da Itália e da Grécia, por exemplo. (Não quero dizer que não adoro alguns desses lugares – eu adoro. Isto só quero dizer que eles fedem.)
Na América Latina, parece que só as cidades maiores se encaixam nesta rubrica rançosa – São Paulo, Rio, Cidade do México –, e só porque elas são tão atraentes para gente jovem e esperançosa. Adeptos do pensamento mágico. Eles sonham, eles ousam, eles têm esperança.
No fim dos anos 1990, eu visitei a Cidade do México com certa frequência, e soube que todos os dias 1.000 pessoas novas se mudam para lá – deixando suas vilas e cidadezinhas e procurando um futuro melhor, levando nada além de braços fortes e esperança. Mil pessoas por dia – como uma cidade consegue lidar com um fluxo tão grande? Demonstrando compaixão, a Cidade do México tentou – eles levaram eletricidade e água encanada para suas favelas cada vez maiores (em vez de queimá-las, como o governo dos EUA fez na década de 1930). Mas nunca seria o suficiente.
Em uma megalópole tão confusa, expandindo-se diariamente além de qualquer possibilidade de infraestrutura igualitária, sempre haverá mau cheiro – e mau comportamento: crime. Por um lado, as cidades não tês suporte para fornecer a “infraestrutura” necessária para seus novos cidadãos, e enquanto isso a própria falta de raízes e o desamparo os afasta do senso de comunidade – de lar – que, em outra situação, controlaria, ou ao menos moderaria, seu comportamento.
No fim das contas, é basicamente a receita perfeita para o desastre – cozido em seus próprios líquidos fedorentos.
Uma cidade pequena como Itapiranga não aparece nos guias de turismo. Mesmo na vasta e aparentemente inclusiva Internet, o máximo de informação que eu encontrei foi que “Itapiranga é a cidade mais ao oeste no estado brasileiro de Santa Catarina”. Ainda assim, era um lugar limpo, bonito e amigável, com acomodações e alimentação totalmente adequados aos visitantes. E Itapiranga tem estradas muito boas para andar de moto, também.
Antes de qualquer coisa, parece um milagre o fato de termos encontrado Itapiranga exatamente na hora em que aquele dia longo e desgastante estava acabando. Não tínhamos mais para onde ir – e lá estava ela.
Mágico.