Você provavelmente nunca ouviu falar de Loris Bicocchi, mas sem dúvida conhece e até admira o trabalho deste piloto italiano que completou 65 anos em janeiro. Loris é um dos mais prolíficos test-drivers dos últimos 30 anos.
Desde que saiu da Lamborghini, onde começou como aprendiz nos anos 1970, Loris ingressou na Bugatti em 1989 e desenvolveu o EB110 GT, o EB110 SS e o EB112. A fabricante fechou em 1994 e Loris mudou-se para Montecarlo, onde trabalhou como piloto para a Monaco Racing Team, desenvolvendo e pilotando o EB110 SS GT1 na IMSA, nas 24 Horas de Daytona, nas 24 Horas de Le Mans (“onde destruímos o carro na classificação”, como ele próprio lembra em seu site) e nas 6 Horas de Suzuka.
Ainda nos anos 1990 Loris encontrou Jochen Dauer e juntou-se a ele para desenvolver a lendária versão de rua do Porsche 962. O trabalho na Dauer o levou a conhecer o sultão do Brunei, que adquiriu cinco exemplares do 962 e contratou os serviços de Lori para cuidar de seus Lamborghini e Bugatti.
No final da década, após encerrar seu trabalho na Dauer, Lori foi chamado por ninguém menos que Horacio Pagani, que estava desenvolvendo o Zonda e precisava de um test-driver. Zonda feito, Lori foi para a Koenigsegg em 2002, antes de ser chamado pela Bugatti para o desenvolvimento do Veyron em 2003. Em 2004 ele voltou para a Koenigsegg onde desenvolveu o CCX.
Sim, Loris desenvolveu simplesmente três dos maiores supercarros deste início de século — e ainda arranjou um tempo para o desenvolvimento do KTM X-Bow em 2007 e 2008. Imagine a quantidade de histórias que ele tem para contar. Uma delas é como ele descobriu que o Bugatti Veyron era seguro o bastante para rodar em velocidades nunca vistas.
Durante o desenvolvimento do Bugatti Veyron, um pneu estourado resultou em um acidente fortíssimo a quase 400 km/h. Em um carro que ainda não havia passado por testes de impacto, e estava ainda em sua fase de desenvolvimento do powertrain. Imagine o que é bater um carro a uma velocidade que praticamente nenhum outro veículo terrestre jamais chegara até então.
Não precisa imaginar. Em entrevista ao canal Drive Experience, do italiano Davide Cironi, Loris contou como bateu um protótipo do Veyron a 400 km/h e saiu inteiro para rir de tudo no fim das contas:
Foi um dos primeiros testes que fizemos em Nardò com o Veyron. Estava lá para trabalhar com os engenheiros de powertrain porque naqueles primeiros anos o carro era somente uma base para o powertrain. Tudo girava em torno do motor e câmbio, todos os técnicos vieram dos departamentos de motor e câmbio. Era claro que a opinião geral era de que o carro era apenas um acessório.
Então nos preparamos para esta grande tarefa, na qual 90% dos técnicos da Bugatti estavam concentrados no motor.
Foi em Nardo, acho que em 2002 ou 2003, por aí.
Reservamos a pista, partimos domingo cedo pela manhã e começamos a fazer os testes de alta velocidade para ver como funcionavam os trocadores de calor — radiadores de óleo e água. Normal.
Uma vez na pista comecei a ganhar velocidade e eles me perguntaram: “Dá para fazer uma volta com o pé embaixo?”
Em velocidade máxima?
Nardo é equilibrada até 240 km/h. A partir daí você começa a virar o volante, virar, virar, e a 360 km/h você já tem 0,3 G 0,35 G. É um valor significativo.
Quando você mantém isso por 12 km… não é muito saudável, não é algo que os pneus podem lidar, porque você tem transferência de carga de dentro para fora devido à rolagem da carroceria, um ângulo de deriva significativo, então a temperatura aumenta.
Apesar disso fiz o que me pediram e mantive o pé embaixo. Depois da volta eles conferiram os parâmetros e perguntaram: “Dá pra fazer duas voltas? Porque vimos a temperaturas ainda estavam subindo”.
Eu disse: “Duas voltas é muito. Mas podemos tentar, vamos fazer duas voltas de pé embaixo.”
No final da segunda volta, o que já é loucura, a 390, 398 km/h — porque Nardò tem algumas ondulações, às vezes os giros sobem ou descem 100 rpm. Mas estávamos a 395, 390, 398, algo em torno disso.
De repente, do nada, ouvi um barulho de raspagem e um BAM! em uma fração de segundo. Não vi mais nada depois disso.
Pouco depois do quilômetro-zero (em Nardò estávamos fazendo o sentido horário) o pneu dianteiro direito estourou, e junto levou o para-lamas. Ao se levantar ele trouxe junto o capô, o qual naturalmente quebrou e estraçalhou o para-brisa, que afundou para dentro do cockpit.
Fiquei com uma cortina na minha frente, feita pelo para lama, que era bege, eu lembro até hoje, o capô preto e o vidro quebrado em milhares de pedaços. Eu estava 395, 398, na melhor das hipóteses 390 km/h. Não via nada.
Quando o pneu estourou eu estava a um metro do guardrail, porque quanto mais perto, menos você precisa esterçar o volante, uma vez que a inclinação da pista fica mais alta. Mas por ficar perto demais da extremidade, em uma fração de segundo bati no guardrail. O primeiro impacto fez o pneu traseiro estourar também. Ele ficou lá no chão, vi a banda de rodagem depois.
A suspensão quebrou porque bateu forte. Quem viu disse, mais tarde, que a roda tremulava como uma bandeira.
Além disso acho que bati meu capacete, porque vi alguns riscos nele. Acho que bateu na janela. Não sei se fui eu ou se foi o impacto do carro, mas ela quebrou ou eu a quebrei e a pressão no cockpit me causou uma lesão (diz apontando para o ouvido). Um excesso de pressão no habitáculo, como andar a 400 km/h em um avião e você abre os vidros do nada. Algo assim. Naquele momento fiquei assustado por não conseguir ver nada.
Estou rápido, vou tentar frear”, o curso do pedal estava longo, não tinha freios. Os flexíveis do freio provavelmente arrebentaram, não sei se na frente ou na traseira, ou ambos.
Percebi que a única coisa que poderia me dar um pouco de direção e frenagem era encostar no guardrail.
Eu sabia que Nardò tinha um guardrail longo e linear, então tentei me aproximar dele. Só que estava rápido demais, ou reagi muito bruscamente para quem tinha só um pneu, então bati, desci um pouco e depois me aproximei de novo, encostei na lâmina e comecei a arrastar o carro no guardrail para desacelerar e para evitar cair novamente, o que poderia me fazer bater no muro interno, aquele que divide a pista da faixa de serviço. Isso me assusstou porque há o risco de capotar o carro, mas no fim deu certo.
Também recebi a conta do Nardò Technical Center, dizendo que eu tinha danificado 1.800 metros de guardrail. A Bugatti riu de tudo e assumiu a conta.
Quando senti a velocidade diminuir, disse: “Ok. Vou afastar do guard rail e assim que pude saí correndo porque havia muitos cabos no cockpit ligados ao motor, muitos computadores para analisar as infeormações do motor. Havia um buraco enorme por onde os cabos passavam e, talvez, por causa do aumento da prepssão causado pela janela quebrada, começou a entrar fumaça no carro.
Logo ali ficava o radiador de óleo. Os conversores catalíticos estavam a 150ºC e por sorte o óleo não é como gasolina, que explode. Mas o óleo do motor e do câmbio começaram a pegar fogo nos catalisadores. Senti a fumaça entrando no carro, depois percebi que meu macacao estava encharcado de óleo, não sei de onde veio.
Virei à direita, deixei o carro descer e então (talvez ainda não tivesse parado) comecei a tentar a abrir a porta para sair enquanto tirava os cintos de seis pontos. Só que a porta não abriu porque ela “soldou” enquanto riscava o guard rail. Na época os veyron tinham carroceria de alumínio, então imaginei o metal se torcendo e fundindo. A vontade de sair te torna mais forte, então comecei a bater e chutar a porta até que ela se abriu. Então saí e depois não lembro de mais nada.
O lado positivo é que o monocoque aguentou, provando que a estrutura do carro era realmente incrível. Não culpo os pneus porque o som que ouvi antes me fez pensar que talvez houvesse uma chapa de metal mal-afixada ou que não resistiu à pressão. Porque foi uma das primeiras vezes que chegamos aos 400 km/h, e como geralmente abríamos um buraco no para-lamas para ajustar a direção mais rapidamente e o fechávamos com uma lâmina e alguns pinos. a pressão do ar provavelmente moveu a lâmina e cortou o pneu, porque os outros pneus ainda estavam novos.
Nao acho que devo culpar o carro, ele se comportou muito bem, os pneus restantes estavam novos. Acho que talvez a mudança destes pinos foi subestimada, não sei.
Para a bugatti foi a prova de que você poderia bater àquela velocidade e o monocoque resistiria. Não havia fissura, nada. A carroceria a suspensão, as partes externas estavam danificadas, mas a estrutura segurou muito bem.
Para mim, não sei se foi a experiência, o sangue-frio, sorte ou simplesmente a vontade de ir ao restaurante comer peixe à noite, mas estou vivo. Na verdade, nem fui ao restaurante comer peixe porque me seguraram no hospital em observação — ouvido, pancadas, e tudo mais.
Hoje gosto de contar esta história. Deu tudo certo e é algo que se precisa levar em consideração quando se tem este trabalho.
O fato de não perder a cabeça quando o para-brisa afundou em cima de mim, o barulho fortíssimo, a cortina negra a 400 km/h, não é algo que acontece todo dia. Mas era natural reagir se eu quisesse voltar ao hotel naquela noite. Manter o sangue frio porque quando você faz estes testes você sempre precisa pensar “o que eu faço se…”
É algo que precisa acontecer ao piloto de testes, não ao cliente. é por isso que fazemos nosso trabalho. Tudo saiu bem naquele dia e estamos rindo disso. Mas é isso, é mais uma curiosidade sobre meu trabalho, nosso trabalho como piloto de testes.”
O caso contado por Loris é interessante não apenas pelo relato incrível (que infelizmente não foi registrado em imagens ou vídeo, dado que eram testes de pré-produção), mas também para compreender um pouco do processo de desenvolvimento do carro.
Veja só: em um único acidente — que felizmente terminou bem para o piloto — eles conseguiram descobrir que os pneus toleravam velocidades superiores a 400 km/h, e que o monocoque do Veyron era rígido o suficiente para proteger os ocupantes fora de uma situação controlada.
Além disso, quando se fala em lucros e custos dos fabricantes, nunca se fala dos custos de desenvolvimento e dos riscos envolvidos. Loris saiu intacto, mas o protótipo precisou ser reconstruído. Um Bugatti reconstruído antes mesmo de ter sua produção iniciada é algo insanamente caro, pois não há economia de escala, tampouco outras unidades para diluir os custos.
Pior ainda: na época não havia nem receita para bancar o desenvolvimento, dado que a Bugatti ainda não tinha nenhum carro. Pode apostar que alguns milhares de dólares do preço final do Veyron serviram para custear este teste de Loris.