Ainda hoje (08) falamos sobre Dirk Auer, o cara que se pendura em carros e motos para atingir velocidades absurdas sobre patins. Isto nos lembrou de outro cara — um ciclista francês que também contava com a força de um veículo para correr em um veículo não motorizado. Seu nome era Jean Claude Rude, e ele acabou entrando para a história mesmo sem alcançar seu objetivo: o recorde mundial de velocidade.
Em 1979, Jean Claude Rude decidiu que se tornaria o ciclista mais rápido do mundo no chamado motor-paced record, que leva em conta a velocidade alcançada pelo ciclista pedalando atrás de um veículo motorizado — normalmente são motos, mas carros também são usados às vezes. A ideia é que o veículo à frente forme um “cone de ar” — uma área com menos arrasto aerodinâmico logo atrás de si, para que o ciclista enfrente menos resistência do ar e, consequentemente, consiga pedalar mais rápido.
José Meiffret pedalando atrás de um Mercedes-Benz 300SL Gullwing
No trecho fechado de uma Autobahn alemã, o também francês José Meiffret atingiu os 204,7 km/h pedalando atrás de um Mercedes-Benz 300SL em 1962 — era esta a velocidade a ser superada por Rude. Para tal, ele estabeleceu a meta de 240 km/h — e ele sabia exatamente quem procurar para fornecer-lhe um veículo capaz de alcançar tal número: a Porsche.
A razão exata para que Jean Claude tenha procurado a Porsche é desconhecida, mas é fato que eles tinham um dos carros mais velozes do mundo disponível: o Porsche 935, bólido que competia no Grupo 5 da FIA.
O Porsche 935 começou a correr em 1976 e, seguindo as regras do Grupo 5, era um 911 com diversas modificações — o regulamento permitia bitolas e para-lamas mais largos, asas maiores e, no caso dos Porsche, até mesmo a adoção de arrefecimento líquido, que veio em 1978 com o 935 “Moby Dick” (famoso por seu nariz chato). O motor do 935 era um boxer de seis cilindros e 2,85 litros que, turbinado, rendia entre 560 e 800 cv. Como os motores com indução forçada tinham seu deslocamento multiplicado por 1,4, o 935 se encaixou na categoria acima de 4 litros, que tinha um peso mínimo de 970 kg.
Esta volta em Le Mans com Romain Dumas ao volante em 2012 dá uma ideia de como o Porsche 935 era extremo
Um carro tão potente e tão leve, sob o comando de nomes como Jacky Ickx e Jochen Mass, só podia ser bem sucedido nas pistas: entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80 o 935 venceu as 24 Horas de Le Mans em 1979, os 1.000 Km de Nürburgring entre 1977 e 1979, além de ficar com o título do campeonato de carros esporte da FIA entre 1976 e 1981. Ele só não continuou vencendo porque foi banido a partir de 1982.
Como a Porsche estava em seu auge no automobilismo, talvez os executivos da marca tenham achado que ajudar um ciclista a quebrar um recorde de velocidade fosse bom para promover a equipe de fábrica. E o carro escolhido, claro, foi o 935.
Para transformá-lo em um pace car adequado para a tarefa, os engenheiros da Porsche projetaram uma nova asa traseira que, na verdade, mais estava para uma extensão do teto, cujo desenho cortava o ar e o tirava do caminho do ciclista. Com menos resistência do ar, Jean Claude Rude poderia atingir velocidades muito maiores.
Além de ceder o carro, a Porsche também permitiu que a tentativa de quebrar o recorde fosse realizada na pista de testes da VW em Wolfsburg — a famosa Ehra-Lessien e sua reta de 9 km, tão longa que, se você ficar em pé em uma das extremidades, não vai conseguir enxergar a outra por causa da curvatura da Terra. Nesta mesma reta foram realizadas as medições da velocidade máxima do Bugatti Veyron — incluindo as famosas filmagens nas quais James May, do Top Gear, prova que seu apelido de “Capitão Lerdo” não é tão justificado assim.
O piloto do carro seria Henri Pescarolo, que teria a dura missão de controlar um carro com dinâmica bastante desequilibrada graças às alterações na aerodinâmica. Pescarolo era ex-piloto de Fórmula 1 — carreira que iniciou em 1965 pela Lotus, mas foi interrompida por um grave acidente em 1969 que deixou queimaduras graves em seu rosto — e o motivaram a deixar crescer a barba, que tornou-se sua marca registrada. Mas ele ficou famoso mesmo por faturar as 24 Horas de Le Mans quatro vezes como piloto (entre 1972 e 1974, e 1984), e fundou em 2000 a equipe Pescarolo Sport, que até o ano passado competiu no circuito de endurance mundial.
A trajetória do Porsche 935 precisava ser a mais estável possível e Jean Claude precisava ficar dentro do vácuo, e Rude precisava ficar colado ao carro para não ser atingido pelo ar em alta velocidade à sua frente e dos lados, ou a força do impacto o derrubaria. Também era preciso se preocupar com o turbo lag considerável produzido pelo motor do 935 — além de dificultar uma aceleração suave, o lag gerava backfire. A solução encontrada foi reposicionar as saídas de escape para as laterais do carro.
Jean Claude Rude e Henri Pescarolo, 1979
Não se sabe exatamente a data em que a medição foi realizada — ou seria. O que se sabe é que, naquele dia, tudo parecia correr bem: a bicicleta, que tinha uma coroa gigante para aumentar a eficiência das pedaladas, foi posicionada atrás do Porsche e ambos começaram a se mover. Só que, ao chegar aos 160 km/h, o pneu traseiro da bicicleta estourou.
Por sorte, Rude conseguiu retomar o controle da bicicleta e, sem cair, foi freando até parar completamente. Desapontado, porém não derrotado, o ciclista encomendou pneus mais resistentes à Michelin. A partir daí, há algumas versões do que aconteceu: algumas fontes dizem que um segundo teste nunca foi realizado, enquanto outras dizem que foi, sim, mas Rude não teria conseguido superar o recorde anterior de seu conterrâneo — algo que só foi feito 16 anos depois, quando o ciclista holandês Fred Rompelberg pedalou a 268 km/h atrás de um dragster nas planícies de sal de Bonneville.
Anos depois, ainda às voltas com o efeito da resistência do ar sobre um ser humano em movimento, Jean Claude Rude decidiu fazer um experimento — dizem que para saber o que aconteceria caso ele chegasse ao fim do vácuo gerado pelo Porsche 935. Para isto, ele teria decidido pedalar ao lado de uma ferrovia para sentir o ar deslocado por um trem em alta velocidade. Ele acabou atropelado pelo trem, não resistiu aos ferimentos e morreu.
Talvez por isso seu nome não esteja em um verbete da Wikipedia ou nos registros de recordes de velocidade de bicicleta. Ao menos ele foi imortalizado em uma bela miniatura.