“O lixo de um homem é o tesouro de outro”, diz o famoso provérbio que, segundo algumas fontes, é francês. Não se sabe quem foi que disse isso, exatamente, mas é verdade – o que para você não vale nada, pode ser imensamente precioso para outra pessoa. E o mesmo vale para carros-conceito e fabricantes de automóveis.
Não entendeu a relação? Eu explico: todos os anos as fabricantes de automóveis apresentam dezenas de novos carros-conceito. Alguns adiantam carros que virão a ser produzidos em breve – outros, porém, não têm o mesmo final feliz e são simplesmente descartados. Mas, de vez em quando, um conceito rejeitado por uma fabricante é aproveitado por outra. Quer ver só?
Outro dia, rolando pelas postagens de certa rede social, topei com uma foto curiosa de um conceito projetado pela Italdesign Giugiaro sob encomenda da Fiat, e apresentado no distante ano de 1983. O conceito em questão, fiquei sabendo mais tarde, foi uma das várias propostas de estilo para o Fiat Tipo – o original, lançado na Europa em 1988 e no Brasil em 1993.
O que aconteceu foi o seguinte: em 1983, já com a intenção de substituir o Fiat Ritmo, a Fiat pediu, a alguns estúdios de design diferentes, propostas para seu novo hatchback. Além da Italdesign, que andava muito próxima da Fiat graças ao Uno (que foi lançado na Europa naquele mesmo ano), o I.DE.A Institute e o próprio Centro Stile Fiat também elaboraram suas propostas.
Só aí já temos uma história interessante. Na época, a direção da Fiat deu um briefing bastante direto: o carro precisava seguir a identidade visual do Uno, porém com maiores proporções. E foi assim que o Centro Stile Fiat desenvolveu um conceito muito próximo do Uno. Talvez até próximo demais – e um tanto desproporcional, na verdade. Capô baixo demais, lanternas muito “grudadas” no para-choque traseiro e teto demasiadamente alto comprometiam bastante o estilo do veículo.
Já o conceito desenvolvido por Giorgetto Giugiaro era bem mais harmônico. A proximidade com o estilo do Uno foi conservada, com capô mais alto, lanternas traseiras menores e em posição mais elevada, e uma linha de cintura igualmente mais alta que ajudava a tornar o desenho do carro mais robusto e bem proporcionado.
Por fim, o desenho do I.DE.A Institute, que acabou sendo o escolhido, era praticamente igual ao que veio a se tornar o Fiat Tipo – foram modificados apenas alguns detalhes na grade e nas lanternas.
O conceito do Centro Stile Fiat – que me perdoem os envolvidos – não era lá mesmo aquelas coisas, e foi descartado imediatamente. Já o estilo proposto pela I.DE.A e assinado por Ercole Spada era mesmo interessantíssimo, com proporções mais horizontais e uma criativa terceira janela inclinada nas coluna “C”. Não foi preciso pensar muito, e o resto é história.
Mas e a proposta da Giugiaro? Não era de se jogar fora – e não foi jogada fora mesmo.
De Fiat a Yugo
Para quem não lembra, já faz tempo que a Fiat globaliza seus projetos. Em 1970, por exemplo, o Fiat 124 foi parar no Leste Europeu pelas mãos da AutoVAZ, que criou o Lada Riva (ou 2105, ou Laika) com base nele. O Fiat 126 foi fabricado na Polônia e tornou-se um dos carros mais vendidos daquele país, praticamente dando início à indústria automobilística polonesa. E, na antiga Iugoslávia – mais especificamente, na região que hoje é a Sérvia – a Zastava produzia carros da Fiat sob licença desde os anos 1960.
No resto do mundo, a Zastava ficou mais conhecida por causa do Yugo, carro popular lançado em 1980 e feito com base no Fiat 127 (da mesma forma que o nosso Fiat 147). Ele só foi possível porque a Zastava já mantinha relações com a Fiat, e fez fama como “o pior carro do mundo” quando começou a ser exportado para os Estados Unidos e Europa.
Embora a fama não fosse totalmente injustificada – mesmo os ex-funcionários da Zastava envolvidos com o projeto na época relatam que o controle de qualidade, no mínimo, não era dos melhores – o Yugo foi um carro importante para a economia local naquele período, e ficou 28 anos em produção (de 1980 a 2008). Tanto que, no final da década de 1980, Yugo deixou de ser apenas o nome do modelo e passou a ser uma marca, com direito a outros carros no portfólio.
E o primeiro deles foi justamente o carro projetado por Giorgetto Giugiaro para ser o Tipo. Sim, o projeto rejeitado na Itália foi aproveitado na Iugoslávia – era o Yugo Florida, como lembrou o leitor e Flatouter Caio Reinhardt.
Não é difícil perceber a semelhança nas formas e proporções, especialmente quando se observa as portas, a coluna “C” e as lanternas traseiras. É praticamente o mesmo carro, embora a face dianteira tenha sido modficada para perder a identidade visual típica da Fiat.
O Yugo Florida tinha esse nome justamente para celebrar o fato de o irmão menor ser vendido nos Estados Unidos. Mas, ironicamente, ele não foi visitar a América – ficou relegado ao mercado local, onde também foi fabricado até 2008. No resto do mundo, porém, ele é praticamente desconhecido.
A razão pela qual o visual criado por Giugiaro para o Tipo ter ido parar em um hatchback Iugoslavo nunca foi totalmente esclarecida. Dizem que a Fiat rejeitou sua proposta em retaliação ao fato de Giugiaro ter ido trabalhar com a Volkswagen, criando o desenho do primeiro Passat e do Golf Mk1 – e o fato de a fabricante ter optado pelo trabalho de um concorrente deve ter deixado Giorgetto ainda mais furioso. Pode ser que a Zastava tenha recebido o projeto “de presente” da Fiat, mas também existe a possibilidade de o próprio Giugiaro ter procurado a fabricante iugoslava. É provável que os fatos como ocorreram nunca venham à tona.
O que é sabido, porém, é que o próprio Fiat Uno também passou por uma proposta semelhante – originalmente, ele era um conceito da Lancia, e só depois morfou-se no Uno que todos nós conhecemos e (alguns de nós) amamos. E que, coincidentemente, também é assinado por Giugiaro.
Como um protótipo da Lancia se transformou no Fiat Uno: a história que você não conhecia
Ousado demais para um Lamborghini
Mas um conterrâneo, contemporâneo e rival de Giugiaro também teve alguns projetos rejeitados e reaproveitados logo em seguida. Falo de Marcello Gandini, mais conhecido por seus anos de Bertone, pelo desenho do Miura (que alguns até acreditam ter sido criado por Giugiaro e “usurpado” por Gandini), e por ajudar a inventar os esportivos em forma de cunha.
O primeiro caso até tem a ver com um assunto recente – o Cizeta V16T, cujo criador, Claudio Zampolli, faleceu no início de julho. Talvez a história até esteja recente na sua memória, graças à matéria do Marco Antônio Oliveira, mas vale relembrar.
O Cizeta V16T foi criado com a engenharia de Zampolli, os investimentos do compositor Giorgio Moroder, e o estilo de Marcello Gandini. Mas esta última parte só foi possível porque Gandini havia acabado de passar por uma rejeição.
Depois de assinar o Miura e seu sucessor, o Countach, era óbvio que Gandini também seria escalado para criar aquele que viria a ser o Diablo.
O projetista ficou famoso pela ousadia de seus carros, e com o Diablo não seria diferente. Gandini fez diversos esboços e, quando chegou no resultado desejado, foi até Sant’Agata Bolognese para mostrar suas ideias.
A Lamborghini não gostou muito – o que foi uma surpresa para Gandini, porque a marca também nunca foi famosa pela discrição. Só que, pelo visto, o designer pesou a mão na ousadia: suas linhas foram consideradas extravagantes demais.
Irritado com o “chute no traseiro” após tantos anos de bons serviços prestados, Gandini saiu de lá – e gosto de pensar que ele foi direto para a porta de Claudio Zampolli, que estava mesmo procurando alguém para criar o estilo de seu supercarro de 16 cilindros. E foi assim que o Cizeta V16T ganhou sua dianteira com quatro faróis escamoteáveis, dois de cada lado, empilhados na vertical. E as entradas de ar nas laterais, que remetiam à Ferrari Testarossa (e talvez por isso tenham sido vetadas pela Lamborghini).
Ou seja: se você acha que o Cizeta V16T tem um quê de Diablo, não é à toa. Até porque a produção ficou quase toda a cargo de ex-funcionários da Lamborghini…
O Reliant que virou Volvo que virou Citroën
Marcello Gandini também fornece o terceiro causo que relato aqui – e que, na verdade, aconteceu antes.
Em 1977, Marcello Gandini foi contratado pela britânica Reliant – mais famosa por seus carros de três rodas, como o Robin – para criar o estilo do conceito FW11. Que, por sua vez, era uma encomenda da fabricante turca Otosan.
O visual seria apenas a cereja do bolo, porque os atrativos estavam sob a carroceria: o FW11 teria alguns recursos verdadeiramente inovadores para a época – como vidros elétricos em todas as portas, elementos de fibra de vidro na estrutura e na carroceria, e outras coisas que a Otosan acabou achando caras demais.
O FW11 foi, então, cancelado sem cerimônia. Para que o trabalho de Gandini não fosse desperdiçado, a Reliant até construiu um protótipo estático e o revelou em 1980 no Salão de Birmingham. O carro, rebatizado Scimitar SE 7, passou quase despercebido.
Gandini não gostou muito, mas pelo menos a Reliant foi bacana com ele e devolveu-lhe a propriedade intelectual sobre o projeto.
Logo em seguida, a Volvo procurou o estúdio Bertone para encomendar um novo conceito. As instruções, supostamente, eram simples: o estúdio deveria criar “algo delicioso” usando como base o conservador Volvo 343, um hatchback com vigia traseiro inclinado que não se afastava muito de outros contemporâneos.
A Bertone, nada boba, escalou Gandini – que viu aquela como a oportunidade perfeita para continuar o que havia começado com o Reliant FW11. Nasceu, então, o Volvo Tundra.
Qualquer semelhança com o FW11 não era mera coincidência, afinal os dois foram criados por Gandini, e tudo indica que o Tundra era uma evolução do FW11. O perfil dos dois carros era praticamente o mesmo, assim como o recorte retilíneo das caixas de roda e o posicionamento das setas dianteiras. Só que o Tundra era mais conceitual, com apenas duas portas, janelas laterais traseiras com contorno irregular e conectadas diretamente ao vigia e uma lanterna traseira totalmente diferente, que imitava uma peça única e era instalada em posição mais alta. Por dentro havia mais linhas retas e um painel digital que, em retrospecto, pode ser considerado bastante influente na estética geral oitentista. E a porção frontal abrigava um par de faróis escamoteáveis que, desligados, desapareciam.
A Volvo queria “algo delicioso”, não é? Mas os suecos não curtiram muito a ideia. O Volvo Tundra recebeu um ensaio fotográfico típico da época, bastante… conceitual, e foi exposto no Salão de Genebra de 1979.
Tudo indica, porém, que foi apenas em respeito ao trabalho de Gandini, porque de todo modo a Volvo decidiu que daria ao 343 um facelift bem mais conservador.
Gandini se abateu e queimou todos os papéis? Nada disso – ele provavelmente arquivou com todo o carinho possível e esperou a hora certa de ver o projeto nas ruas.
A hora certa veio logo: em algum momento de 1980, foi a Citroën quem procurou o estúdio Bertone para criar um design ousado e inovador. Novamente, Gandini foi escalado – e, pela terceira vez, tentou fazer o projeto virar realidade.
Ter o cliente certo faz a diferença – o mesmo estilo rejeitado pelos britânicos, turcos e suecos foi o que deixou os franceses impressionados. Recém-incorporada ao grupo PSA ao lado da Peugeot, a Citroën precisava mesmo de um estilo marcante, que exalasse novidade, e o projeto de Gandini era exatamente o que eles buscavam.
Alguns ajustes foram feitos, e o resultado foi o Citroën BX – que, sinceramente, aproveitou muito bem os elementos de estilo imaginados por Gandini, como as caixas de roda “quadradas”, as portas sem colunas e o caimento quase fastback da tampa do porta-malas. Apenas a dianteira foi redesenhada, escondendo-se a grade no para-choque para deixar o visual da região mais limpo e futurista.
O Citroën BX foi lançado em 1982, cinco anos depois que Gandini fez o primeiro esboço do Reliant FW11. Foi um final feliz para uma história que tinha tudo para ser uma verdadeira frustração. Feito sobre a plataforma do Peugeot 405, porém equipado com a engenhosa suspensão hidropneumática da Citroën e dotado de diversos paineis plásticos na carroceria, o BX combinava muito mais com o estilo ousado de Gandini do que qualquer Volvo ou Reliant. E ele fabricado por 12 anos – só saiu de linha em 1994, substituído pelo Citroën Xantia.