O ano é 1992. Três moleques de oito anos, no caminho de volta da escola para casa, cruzam o caminho da coordenadora do ensino fundamental em um Fiat City vermelho. A pedagoga, que por acaso era nossa vizinha, notou os três estudantes caminhando sob o sol do meio-dia em novembro e, com dó dos meninos, parou o carro e ofereceu carona.
Três moleques em um Fiat City que já tinha dois ocupantes. Onde você acha que o trio torrado de sol voltou para casa?
É claro que foi na caçamba. E em pé, agarrados à barra de proteção do teto, curtindo o vento na cara e tirando onda. A cena é inimaginável nestes tempos mais sensatos, mas ela aconteceu de verdade — eu estava lá.
Dois anos depois, meu avô trocou sua Kombi standard 1970 por uma Pampa L 1993 novinha. Era um carro mais adequado para as entregas da loja, que havia deixado de vender alimentos e bebidas para se tornar uma casa de materiais de construção. A Pampa L, caso você não saiba, era homologada com três lugares porque tinha banco inteiriço e três cintos, mas assim mesmo eu preferia viajar na caçamba — afinal, é o lugar mais legal quando se tem 10 anos de idade.
Nessa mesma época a Fiat atualizou a Fiorino Pick-Up com um visual mais moderno, com faróis de milha no santantônio, adesivos com cores vibrantes e eu, que já gostava do Uno Turbo, comecei a olhar para as picapes com outros olhos. A Fiat City era apenas uma picape velhinha, a Pampa era o carro de trabalho, mas a Fiorino LX parecia o carro perfeito para dirigir na praia.
E foi assim que comecei a pegar gosto pelas picapes compactas. Eu já gostava das picapes médias, afinal, Marty McFly tinha uma Toyota incrível, mas as picapes compactas pareciam mais realistas, mais próximas dos carros comuns da época — lembre-se que os SUV ainda eram uma realidade distante.
Mais velho, já motorista, cogitei comprar uma Courier, mas o Ka XR era mais atraente. Além disso, aquela Pampa de 1994 acabou se tornando minha ferramenta de trabalho por alguns meses — era uma Pampa 1.8 a álcool, o mesmo conjunto do Gol GTS, mas sem o peso do Gol GTS…
No fim das contas eu nunca tive uma picape compacta, mas até hoje torço o pescoço quando cruzo com a Strada Sporting amarela que circula aqui perto de casa. Além disso, já pensei diversas vezes em ter uma Montana de primeira geração, aquela baseada no Corsa, com um motor 2.0 ou 2.2 16v. Seria minha mini-Holden Ute.
O que me leva ao ponto desta história toda (antes que ele se transforma em um livro de memórias…): tanto as picapes compactas brasileiras quanto as Utes são admiradas e desejadas no mundo todo. Experimente mostrar uma Saveiro para os americanos e as memórias do Ranchero e El Camino virão à tona. De certa forma, estas picapes se tornaram símbolos da cultura automobilística do Brasil e da Austrália. Afinal, elas são criações locais, certo?
Errado.
É comum creditar aos australianos a criação das Utes — você conhece a história: a esposa de um fazendeiro enviou uma carta à Ford perguntando por que eles não faziam um carro que pudesse ser usado para ir à missa aos domingos e ao mercado de porcos na segunda-feira. A Ford achou uma boa ideia e lançou o Coupe Utility, que era baseado no Ford A e usava o teto da versão de cinco janelas para criar a cabine separada do compartimento de carga que, por sua vez, era integrado à carroceria, diferentemente dos caminhões da época. Estava criada a primeira picape compacta da história.
Acontece que as Utes australianas não foram exatamente as primeiras picapes compactas da história. Não se você considerar as picapes baseadas em carros de passeio. Quase 10 anos antes, nos EUA, a Chevrolet e a Overland já fabricavam um tipo de picape chamado “roadster utility”, que se diferenciava dos coupés utility da Austrália apenas pelo teto conversível. Não eram picapes de cabine fechada como as Utes, mas eram derivadas de carros de passeio, tinham caçamba integrada à carroceria, e a cabine era separada por um painel atrás do banco e pelo teto conversível.
Apesar de terem sido criadas nos EUA, as picapes leves logo foram deixadas de lado em favor das picapes convencionais. Foi somente na Austrália que elas fizeram sucesso a partir da criação da Ute da Ford em 1934 e foi de lá que elas se espalharam para o mundo.
E isso nos traz ao Brasil. Desde a criação da indústria automobilística nacional no final de 1956 até o lançamento da Fiat 147 Pick-Up (a precursora da City) em 1978 só tivemos picapes médias e grandes como a C-10, C-14, C-15, F100, F-150, Chevrolet Brasil, F-75 etc. O lançamento da pequena picape Fiat deu início ao segmento no país, que se consolidou a partir de 1982 com o lançamento da Ford Pampa e Volkswagen Saveiro, seguidas pela Chevrolet Chevy 500 em 1983.
A pequena Fiat, contudo, foi uma pioneira brasileira, mas como a Ute australiana ela não criou um novo tipo de carro. Picapes diminutas como ela já existiam desde os anos 1950 — na América do Sul, inclusive.
Foi aqui ao lado, na Argentina e no Chile, que a Citroën vendia o 2CV Citroneta, uma versão do “guarda-chuva sobre rodas” com uma caçamba aberta no lugar do porta-malas. Não cabia muito mais que algumas latas de tinta, ou um saco de fertilizante, mas pelo jeito era suficiente para os nossos vizinhos, que a tiveram durante 26 anos, entre 1953 e 1979.
Na Europa, que sempre preferiu as “panel vans” às picapes, havia a Isetta Autocarro, que era uma versão do pequeno Isetta vendida na Itália e na Espanha, porém com a caçamba destacada da cabine como um caminhão em miniatura. Na Alemanha havia uma variação baseada no Isetta conversível que, em vez do teto retrátil, tinha uma enorme bandeja servindo de caçamba.
E se o Isetta nem o 2CV te convencem como picape, considere também o Austin A35 Coupé Utility de 1956, que era basicamente um A35 Deilvery Van sem a porção traseira do teto que fazia dele uma van.
Além da Europa e da Argentina/Chile, quem também produz pequenas picapes desde muito antes do Brasil são os japoneses (e poderia ser diferente?). Em 1960 a Toyota lançou uma versão utilitária do Corona, em 1961 a Subaru lançou o Sambar pick-up, que era baseado no 360, e dois anos mais tarde, a Honda lançou a T360, uma picape kei que se tornou seu primeiro carro.
Embora não fosse oficialmente derivada de um modelo de passeio, ela usava a plataforma mecânica desenvolvida para o conceito S360, um roadster que deveria ser o primeiro carro da Honda, mas acabou nunca produzido.
Agora… da mesma forma que a Ute não foi criada na Austrália mas se tornou um símbolo da cultura automobilística daquele país — mesmo que não haja nenhuma Ute em produção desde 2017 — nenhum outro país tem tantas picapes pequenas em circulação como o Brasil, ou uma picape pequena entre seus dez modelos mais vendidos como a atual Fiat Strada, que vende mais que modelos de entrada como o Mobi e o Kwid.
E ainda que elas não sejam um símbolo nacional como as Utes na Austrália, elas certamente ainda tem sua legião de fãs e, sem dúvida, marcaram época. Para os carros e para as pessoas.