Quem ressuscitou o carro elétrico? Venho pensando nisso desde que iniciei a série sobre os desafios que o carro elétrico terá que superar nos próximos 10 anos para que possa substituir plenamente os carros movidos pela combustão interna.
De onde veio, afinal, a ideia de desenterrar do passado os carros elétricos e tentar fazê-los funcionar plenamente mais uma vez? Teria sido a tecnologia de baterias, que passou por uma revolução incrível nos últimos 30 anos? Foram os próprios fabricantes, motivados pela realidade da baixa qualidade do ar nas metrópoles modernas? A demanda do público?
Em cinco minutos eu percebi que não sabia responder esta pergunta: por que a solução é elétrica? Por que a solução não são filtros mais eficientes ou combustíveis com saldo zero, como o etanol? Ou mesmo a impressionante célula de hidrogênio, que também viabiliza o carro elétrico? Por que tem que ser um carro movido a pilha?
É uma resposta que parece fácil de se encontrar. Na verdade, ela é quase evidente: o carro elétrico movido a baterias já existe desde o século 19. Como temos o problema das mudanças climáticas, a meta de redução de emissões, a missão de limpar o ar nas grandes cidades e reduzir problemas respiratórios, usar carros que não soltam fumaça de combustão pareceu a solução mais prática.
Os motores elétricos e as baterias já estavam por aí — eles sempre foram usados em ônibus, caminhões urbanos, bondes e carros de serviço —, então bastou juntar tudo isso com tecnologias mais avançadas e colocar em um carro. Na verdade isso já havia acontecido nos anos 1970, quando a OPEP decidiu manipular o preço do petróleo e fez o preço da gasolina disparar. Na época, o objetivo era outro: reduzir a dependência do petróleo — o mesmo tipo de decisão que resultou no carro a álcool brasileiro.
Nos EUA, as preocupações com a qualidade do ar, especificamente na Califórnia, já haviam resultado em carros elétricos conceituais, que materializavam uma visão para o futuro. Estas sim foram adaptações do powertrain elétrico que já existia em outros tipos de veículos.
Mas a ideia do carro elétrico como resposta para as questões ambientais contemporâneas, estas que temos hoje, não começou ali. Tudo começou nos anos 1970, quando a preocupação sobre o consumo e dependência de petróleo foi superada pela preocupação com a qualidade do ar.
O nascimento da sustentabilidade
Foi no final dos anos 1970 que os estudos sobre uma provável catástrofe climática começaram a ganhar visibilidade, mas um deles se destacou sobre todos os outros por não ser meramente alarmista, mas porque também trazia dados, projeções e propostas de ação para o futuro.
Era e supervisionado por Simon David Freeman, um engenheiro que fez carreira nos serviços públicos de energia elétrica e proteção ambiental dos EUA. O estudo versa sobre as questões ambientais, como a atividade econômica afeta a qualidade do ar e o uso de recursos energéticos e propõe ações para contornarmos estas questões no futuro.
Foi nele que surgiu conceito de economia sustentável — sob o nome “Zero Energy Growth”, ou “crescimento zero de energia” —, que propõe um modelo econômico que visa a redução do consumo de energia e sua manutenção em níveis reduzidos, trazendo simulações e propostas para evitar o risco de estagnação econômica, uma vez que o uso de energia está intimamente ligado ao desenvolvimento da economia.
A ideia de substituir a matriz energética do transporte aparece em uma projeção para os anos 1980 e para o ano 2000 na página 21, na qual a nota de rodapé diz o seguinte:
“Se metade do tráfego urbano e metade do tráfego ferroviário estiverem eletrificados no ano 2000, 6 quatrilhões de Btu de demanda direta de combustível para o transporte seriam substituídos por 2,1 quatrilhões de Btu de eletricidade, com a demanda total de combustíveis permanecendo essencialmente inalterada.”
Ou seja: segundo as projeções baseadas nos dados obtidos em 1973, mesmo com o crescimento da frota até o ano 2000, se 50% dos carros fossem elétricos (que era a única tecnologia dominada que não era baseada na combustão interna), o consumo de combustíveis seria o mesmo de 1973 devido à geração e eficiência dos motores elétricos.
E essa projeção, aparentemente, embasou a recomendação do estudo sobre incentivos a automóveis mais eficientes pelo encarecimento dos veículos menos eficientes — ele aparece, na página 485, sob o capítulo “Comentários do Conselho Consultivo”:
“Para conter a taxa de crescimento do uso de energia na próxima década em 2% ou menos, o Projeto recomenda políticas públicas que ainda permitirão ao consumidor liberdade de escolha. Carros com baixa quilometragem ainda podem ser comprados, mas novas taxas de impostos encorajariam a maioria de nós a comprar veículos eficientes.”
Ainda nos anos 1970, Simon David Freeman foi nomeado presidente da Tennessee Valley Authority, a companhia elétrica da região do vale do Rio Tennessee, pelo presidente americano Jimmy Carter. Ali, Freeman teve um papel ativo na divulgação da tecnologia de veículos elétricos, visando promover uma corrida com modelos experimentais entre os atores Paul Newman e Robert Redford — pense neles como Leonardo di Caprio e Brad Pitt atualmente, em termos de celebridade e carisma. A ideia foi engavetada quando Freeman se deu conta de que iria promover uma tecnologia que não estava disponível comercialmente e, por isso, não teria incentivos e apoiadores.
Depois do seu período na Tennessee Valley Authority, Freeman continuou atuando como conselheiro de recursos energéticos para diversos órgãos públicos americanos — como os departamentos de energia de Los Angeles e Nova York, além da administração de portos de Los Angeles —, sempre adotando a política de conservação de energia em vez de crescimento, como o estudo da Ford Foundation havia proposto.
Freeman foi fundamental para a disseminação do conceito Zero Energy Growth entre as autoridades de energia dos EUA. Como consequência, seu trabalho também influenciou os órgãos de proteção ambiental, como a própria Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA), onde trabalhava quando supervisionou o estudo da Ford Foundation.
Possibilidade, a mãe da necessidade
Sabe por que o Concorde morreu? Não foi por causa do custo de operação ou por causa das normas de ruído ou mesmo sobre as restrições de voo continental. O Concorde morreu porque não era mais necessário.
Antes da invenção do Concorde era natural que as viagens de negócios da América até a Europa durassem entre oito e 14 horas. Ninguém esperava que o diretor executivo estabelecido em Nova York estivesse em Paris em menos de 24 horas. Mas quando o Concorde apareceu, ele poderia acordar em Nova York, tomar um café da tarde em Paris e voltar para o jantar em Nova York. Então veio a necessidade de se estar do outro lado do Atlântico no mesmo dia. Não eram turistas os principais passageiros do Concorde, mas os executivos.
Então surgiu a revolução tecnológica que estamos vivendo. Emails, ligações de áudio pela internet, vídeo-conferências, certificações digitais, sistemas integrados globalmente. Por que alguém precisaria estar presencialmente do outro lado do Atlântico em três horas, se agora aquela reunião ou assinatura poderia ser resolvida em 40 minutos em uma sala com uma rede privada e tecnologia de segurança de ponta?
Ao mesmo tempo, deixou de ser razoável aguardar mais de um período do horário comercial por uma resposta sem que um prazo maior seja informado ou negociado. Quando alguém não responde o email pela manhã, espera-se receber o retorno à tarde. E assim criamos nossas necessidades: se é possível e benéfico, eu quero.
O carro elétrico moderno — e sua necessidade — surgiu dessa forma: alguém mostrou que era possível, e então alguém passou a querer e a precisar dele.
Quem começou isso foi a GM, em 1987. Naquele ano aconteceu a primeira edição do World Solar Challenge, o “Desafio Solar Mundial”, aquela famosa corrida de carros ultra-eficientes movidos por energia solar, que cruza a Austrália de Norte a Sul a cada dois anos. A GM foi uma das fabricantes que decidiu participar da corrida e, sendo a gigante que é, venceu esta edição inaugural.
Animado com o sucesso do seu carro elétrico (carros solares são elétricos, caso você não saiba; apenas a captação de energia é solar), o então presidente da GM na época, Roger Smith, perguntou à equipe se seria possível fazer um carro elétrico que fosse comercialmente viável. A ideia é que ele fosse uma alternativa para ir e voltar do trabalho — o que os americanos chamam de “daily commute” —, contanto que sua rotina não tivesse uma distância maior que 120 milhas por dia.
A equipe da GM tinha um engenheiro eletrônico chamado Alan Cocconi, que desenvolveu em seu laboratório-garagem um sistema de era capaz de controlar a frequência do sinal elétrico enviado das baterias para o motor elétrico, permitindo que a entrega de energia fosse sempre suficiente para a demanda de potência do carro.
Pense como o mapa de injeção e ignição, mas em vez de fluxo de combustível e disparo da centelha, estamos falando apenas de frequência de sinal elétrico. Na prática, era um amplificador de três canais que permitiu que o carro elétrico funcionasse como um carro de combustão interna em termos de controle de aceleração. Esse é o componente-chave do carro elétrico moderno, conhecido simplesmente como “controlador”. Foi ele que diferenciou o carro elétrico moderno de todos os elétricos do passado.
Com o controlador de Cocconi, a GM conseguiu fazer um carro elétrico funcional e o levou ao Salão de Los Angeles de 1990. Seu nome era GM Impact e ele era descrito pela equipe da GM como “um carro parecido com o Corvette, de dois lugares, estiloso e com grande potencial comercial”. O problema é que o carro era uma aposta ousada de Roger Smith, tanto que ele sequer sabia se havia demanda para um carro elétrico — o executivo de marketing John R. Dabels foi encarregado de descobrir tudo o que era necessário para vender um carro elétrico ao grande público.
Nessa missão de despertar o interesse pelo carro elétrico, muita gente ficou empolgada com a possibilidade de se ter um carro que é reabastecido na tomada da garagem e que não faz barulho e que é super rápido e moderno. Entre os entusiasmados estava o California Air Resources Board, o conselho de recursos do ar da Califórnia, conhecido pelo acrônimo-trocadilho CARB. O mesmo órgão que criou a primeira legislação de controle de emissões para os carros do ocidente em 1968 — um processo que culminou na primeira morte do muscle car e na invasão dos carros euro-asiáticos aos EUA nos anos 1970.
Àquela altura o CARB já estava atuava sob o conceito de conservação de energia, de economia sustentável. E se a toda-poderosa GM havia feito um carro elétrico e pensava em colocá-lo no mercado em breve, significava que o carro elétrico proposto no estudo da Ford Foundation finalmente era possível. Ao menos sob os olhos dos burocratas do CARB.
O resultado foi que, antes mesmo de a GM colocar o Impact no mercado, sem mesmo saber se havia demanda pelos elétricos, sem mesmo saber se havia viabilidade técnica e comercial para os carros elétricos, o CARB pressionou os legisladores da Califórnia para aprovar uma lei que obrigava os fabricantes a vender carros elétricos na Califórnia.
A lei, aprovada em 1990 (!) se chamava “Zero Emission Vehicle mandate”, e previa que em 1998 2% dos carros vendidos na Califórnia deveriam ter emissão zero, subindo para 5% em 2001 e 10% em 2003. Se o carro elétrico é possível, ele pode ser necessário.
A GM seguiu em frente com seu plano de colocar o GM Impact no mercado e, em 1996, o lançou como EV-1, vendido somente no modelo de leasing, no qual os clientes teriam de devolver o carro ao final do contrato. Segundo os executivos da GM, foram investidos mais de US$ 2 bilhões entre o desenvolvimento do carro, criação da infra-estrutura de recarga e marketing. Deste orçamento, US$ 1,25 bilhão eram incentivos do governo federal, concedidos devido à novidade tecnológica.
Foi justamente o EV-1 que consolidou o carro elétrico como uma solução para a questão ambiental. A demanda pelo carro e toda a sua campanha promocional foi baseada no fato de ele ser “ecologicamente correto”. As pessoas gostavam dele porque ele era rápido, era moderno e, acima de tudo, não fazia barulho nem soltava fumaça. O público do EV-1, portanto, foi formado inicialmente por ambientalistas, pessoas que viram no carro uma forma de continuar sua rotina normalmente sem prejudicar a qualidade do ar.
O problema é que o EV-1 era um programa experimental, ainda que fosse comercial. A GM achou que poderia fazer muito dinheiro saindo na frente nessa corrida dos elétricos, mas ao longo do processo percebeu que o negócio talvez fosse inviável.
Paralelamente ao projeto EV-1, a GM e as demais fabricantes — àquela altura todas com veículos elétricos, como mandava a legislação de 1990 — começaram a investir nas pesquisas com células de hidrogênio, apostando nesta tecnologia como uma substituta limpa para os carros de combustão interna. Com o ano 2001 se aproximando e a baixa demanda por carros elétricos, os fabricantes começaram a pressionar o legislativo californiano a extinguir a lei.
Alguns legisladores acharam que era bravata das fabricantes, e pressionaram para que os prazos fossem mantidos, em uma troca de desafios de ambas as partes. No fim das contas, a lei foi derrubada.
Em 2003, depois de lançar uma “segunda geração” do EV-1 e atualizá-lo com as promissoras baterias de níquel-hidreto metálico (NiMH; as mesmas usadas até hoje pelos híbridos e elétricos), os prazos dos contratos de leasing se encerraram e a GM achou melhor recolher os carros sem deixar um sucessor.
Os motivos nunca foram esclarecidos — o que levou a uma teoria conspiratória sobre a GM ter matado o carro elétrico por pressão das petrolíferas e sujeitos ocultos, que é explorada no documentário “Quem Matou o Carro Elétrico?”, de 2006.
Analisando a história em 2022, com o devido distanciamento temporal para esfriar o calor da discussão, parece pouco provável que a GM tivesse se auto-sabotado, matando um projeto com potencial de viabilidade e uma suposta demanda comercial. Especialmente por que, dois anos depois do documentário, em 2008, a GM se viu em uma situação de quase-falência, tendo de ser socorrida pelo governo americano. Apesar da demanda, é possível que ele fosse inviável devido ao custo de reposição de baterias.
A GM também se recusou a vender os carros aos clientes após o encerramento do contrato de leasing, o que alimentou a teoria conspiratória, mas é muito provável que eles só estivessem evitando futuros problemas legais e, principalmente, impedindo que o carro caísse nas mãos da concorrência.
Naquele mesmo ano de 2003, quando os carros foram recolhidos e sucateados — alguns foram enviados a museus e universidades sem motor. Elon Musk, mais tarde, diria que iniciou a Tesla para atender esta aparente demanda por veículos elétricos.
Cinco anos depois do fim do EV1, em 2008, a questão climática foi novamente colocada em pauta com o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, agora não mais preocupada com o uso de recursos energéticos e qualidade do ar e a saúde pública, mas abordando o impacto que a economia não-sustentável estava causando no planeta como um todo.
O documentário teve um grande impacto no público, e colocou a pauta ambientalista na discussão pública e a enraizou na cultura global. Com isso o público passou a pressionar seus representantes políticos e as agências de proteção ambiental e legisladores de todo o mundo passaram a discutir regras mais rígidas sobre as emissões do transporte.
Foi quando o carro elétrico ganhou sua terceira chance. Com vendas em alta e investimentos bilionários da indústria no desenvolvimento destes carros, eles serão a única alternativa disponível a partir de 2035 nos EUA e na União Europeia, enquanto outros países discutem prazos semelhantes para forçar a substituição dos veículos emissores de gases — como proposto há 50 anos pelo estudo “A Time to Change”.
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