Histórias de terror, casos de horror e lendas mórbidas em geral são coisas que não se vê com muita frequência quando o assunto são carros. Há o clássico “Christine – O Carro Assassino” de Stephen King, o estranhíssimo “O Carro, a Máquina do Diabo”, a história do Black Volga que contei recentemente por aqui… mas não existem muito mais exemplos.
O que existem, porém, pode ser até mais interessante – ao menos para quem curte esse tipo de coisa. Já ouviu falar na estrada real que é literalmente construída sobre uma coleção gigantesca de cadáveres humanos? Sim, ela existe. E mostra que a realidade, por vezes, pode ser mais estranha, sombria e perturbadora que a ficção.
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Espero que as letras em itálico tenham passado o recado: o local existe mesmo, e se chama (bem, você leu o título) R504 Kolyma Highway.
O nome completo da rodovia é Федеральная автомобильная дорога «Колыма» (pronuncia-se Federal’naya avtomobil’naya doroga “Kolyma”) – algo como “Rodovia Federal para Automóveis ‘Kolyma'”. Ela fica na região chamada de Extremo Leste Russo, no norte da Ásia, como parte da rota M56. Ela está marcada em vermelho no mapa abaixo. Note como o trecho de 2.031 km fica bem a leste do gigantesco país. É uma área de menos densidade populacional – segundo o último censo, realizado em 2018, a maior parte das mais de 180 milhões de pessoas que moram na Rússia fica concentrada a oeste, onde ficam as áreas mais urbanizadas do país, ao sul do Mar Cáspio e próximo à fronteira com o Cazaquistão – a chamada “Rússia Europeia”.
Quanto mais se adentra em território russo, passando pela Sibéria e chegando ao Extremo Leste, menos se encontra gente. Existem alguns bolsões populacionais espalhados ao sul, mas nada que se compare ao oeste, onde a população é composta por comunidades nativas menores e mais isoladas, e a paisagem é dominada por densas florestas de pinus e outras árvores de copa densa na temporada quente. No inverno, transforma-se em um deserto de neve.
Assim, longe das belas construções de Moscou ou das academias de balé de São Petersburgo, fica uma Rússia muito mais árida, intimidadora e carregada de história. E, no meio dessa história, fica a R504 Kolyma – a estrada feita de ossos.
A via liga as cidades de Magadan e Yakutsk – uma das mais frias do planeta. Para se ter ideia, foi em Yakutsk que se registrou a mais baixa temperatura no mundo, excluindo-se a Antártida: -67°C. As casas são feitas de concreto empilhado sobre uma camada de gelo permanente, e a R504 Kolyma é a única via de acesso terrestre naquela região – ao ponto de os residentes locais a chamarem apenas de Trassa (A Estrada) ou, no máximo, Kolyma Trassa. Quem precisa dar nomes aos bois quando só há um boi?
Mesmo que não fosse por sua história sinistra, a estrada seria intimidadora. Asfalto é algo que ela nunca viu; sinais de trânsito são escassos e gastos, quase ilegíveis; e há muitos trechos de chão batido e lama. As poucas áreas pavimentadas usam cascalho solto – quando chove, a estrada fica praticamente intransitável para carros de passeio normais. Mesmo os valentes Lada. É preciso algo mais especializado, como os indestrutíveis UAZ-452, furgões com tração 4×4 cujo projeto data dos anos 1950.
A esta altura você deve estar se perguntando sobre os ossos e cadáveres sob a estrada. Não, não é uma lenda – a R504 Kolyma realmente foi construída sobre os corpos de pessoas mortas.
A construção começou em 1932, sob o governo de Josef Stalin, e ficou a cargo da Dalstroy (Дальстро́й), uma organização criada com o objetivo de construir estradas no Extremo Leste da Rússia para ter acesso a minas de ouro na região. A força de trabalho utilizada foram os campos de concentração do regime stalinista – os Gulag e Sevvostlag. A obra durou mais de vinte anos: ficou pronta apenas em 1953.
Ao longo de duas décadas, em condições de trabalho extremamente precárias, algo entre 250.000 e 1 milhão de pessoas deram, literalmente, suas vidas à construção da R504 Kolyma, trabalhando até morrer. Os corpos eram enterrados na beira da pista ou mesmo sob ela – não por princípios, mas por conveniência: era muito mais prático, rápido e útil utilizar a própria obra do que cavar valas especificamente para dar fim aos cadáveres. Por lá, costuma-se dizer que cada metro quadrado de rodovia foi construído ao custo de uma vida. De tempos em tempos, ossadas ainda são encontradas por lá, expostas pelos fortes ventos que sopram sob o solo ou pelo derretimento da neve.
Hoje em dia, a estrada é tratada pelos moradores locais como um memorial, mas também pode ser vista como um gigangesco cemitério. E, considerando as condições adversas que naturalmente ocorrem no Extremo Leste da Rússia – onde o frio chega perto dos -70°C na época mais gelada do ano e animais selvagens (como ursos) vivem soltos, quase sem interferência humana, a atmosfera é pesada, lúgubre e melancólica.
Ainda assim, o local é relativamente popular entre aventureiros. Após a queda da União Soviética, em dezembro de 1991, a estrada foi parcialmente renovada – os trechos mais inóspitos foram abandonados e um desvio mais ao norte foi construído. Foi o que bastou para que pessoas de todos os lugares do mundo, sedentas por aventura, embarcassem no desafio de atravessar a Estrada dos Ossos usando veículos preparados, entre picapes, jipes e motocicletas. Incrivelmente, percorrê-la no inverno pode ser mais tranquilo – em vez de atravessar as águas geladas dos rios que cortam a rodovia, pode-se simplesmente passar por sobre o gelo. Mas, ainda assim, a falta de comunicação com a civilização, as condições precárias da estrada e o frio são fatores de altíssimo risco.