Em 1851, um homem chamado George Townsend abriu uma fábrica de agulhas em Redditch, Worcestershire. É o mesmo lugar de onde vem o famoso molho inglês – que hoje pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo e nem sempre (ou melhor, quase nunca) é, de fato, feito na Inglaterra.
Pois aquela fábrica de agulhas, cinquenta anos depois, daria origem a uma fábrica de motocicletas que, hoje, é considerada a mais antiga do mundo ainda em atividade: a Royal Enfield. Há um pouco de licença poética aqui, pois a atual Royal Enfield só carrega o nome da empresa original. As Royal Enfield atualmente são produzidas em Chennai, na Índia, e exportadas para o mundo todo. Ainda assim, é um feito admirável – especialmente porque eles ainda fabricam motocicletas à moda antiga.
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O filho de George Townsend, que herdou o nome do pai, foi o grande responsável: foi ele que, em 1882, decidiu expandir as atividades da empresa da família fabricando peças para bicicletas – pedais, bancos, garfos, esse tipo de coisa. Daí para montar bicicletas inteiras foi questão de tempo: as primeiras começaram a ser feitas em 1886. Depois, vieram as motos.
Não foi uma transição muito suave, porém: em 1891, a empresa dos Townsend não ia bem financeiramente e quase entrou em colapso. Isto só não aconteceu porque uma fabricante de armas, a Royal Small Arms Factory, assumiu o negócio – eles estavam interessados no ferramental, com o qual seriam produzidas peças para rifles. Sua fábrica ficava em Enfield, no norte de Londres.
O primeiro veículo motorizado da Enfield foi um quadriciclo motorizado – não muito diferente de duas bicicletas montadas lado a lado com um motor DeDion no meio – que ficou pronto em 1898, mas não deu muito certo e abortou qualquer ambição de fabricar veículos de quatro rodas.
Bem mais promissoras eram as motos, que nunca deixaram de ser estudadas. A primeira delas, um protótipo com motor Minerva de 1,5 cv, era uma moto altamente experimental, com o motor montado na frente do guidão e ligado à roda traseira por uma longa cinta. Também não deu muito certo, por razões óbvias.
A primeira moto Enfield a realmente dar certo foi apresentada em 1909. Ela era equipada com um V-twin (montado, felizmente, no local tradicional) de 297 cm³, e ganhou sua versão de produção em 1910. Em 1911, contratada pelo exército real britânico para fornecer equipamentos militares, a Enfield passou a se chamar Royal Enfield, adotou o slogan “Made Like a Gun” (“Feita Como uma Arma”, em tradução litera) e passou a usar o desenho de um canhão em seu emblema.
Motos Royal Enfield de dois e quatro tempos, algumas delas com sidecars e suportes para metralhadoras, foram aproveitadas pelos ingleses durante a Primeira Guerra Mundial – o que garantiu que a empresa tivesse fundos para desenvolver mais motos após o conflito, que terminou em 1918.
As motos da Royal Enfield, inicialmente, não tinham nomes – elas eram identificadas apenas pela cilindrada do motor. Mas isto não as tornava menos marcantes: na verdade, a Royal Enfield foi responsável por algumas inovações importantes. Eles foram uma das primeiras fabricantes a colocar o tanque de combustível acima da barra superior do quadro, por exemplo – antes disto, o costume era que a peça ficasse encaixada no meio do quadro, mais próxima do motor e menos protegida no caso de um acidente.
Contudo, a Royal Enfield só conseguiu projetar-se como uma grande fabricante de motocicletas em 1931, quando foi lançada a Bullet, seu modelo de maior sucesso. O nome vinha do motor, um monocilíndrico de quatro válvulas e 350 ou 500 cm³ de deslocamento. Por sua vez, o motor foi batizado assim como referência à sua ligação com a indústria das armas.
Em 1949, a Bullet foi uma das primeiras motos do mundo a receber suspensão traseira com molas — antes, ela tinha o chassi rígido na traseira (conhecido como “rabo duro”) e o único meio de absorção de impactos eram as molas sob o banco.
Naquele mesmo ano, a Bullet começou a ser exportada para a Índia, pois governo do país queria dar motos a seus policiais e militares para facilitar o patrulhamento da fronteira. A moto da Royal Enfield parecia perfeita, e a Índia fez uma enorme encomenda. Foi questão de tempo até que uma fabricante local, a Madras Motors, procurasse a Royal Enfield com o desejo de se tornar uma divisão indiana da marca e começasse, a montar Bullets sob licença, usando componentes importados do Reino Unido. Isso aconteceu em 1955, e dois anos depois, a Madras — então rebatizada como Enfield India – comprou o ferramental britânico para produzir sozinha os componentes necessários para a fabricação das motocicletas.
Contudo, o que parecia só um investimento extra acabou salvando o legado da Royal Enfield.
Em meados da década de 1960, fabricantes japonesas invadiram o Reino Unido com motos mais baratas, modernas e confiáveis. A Royal Enfield, até então uma potência das motocicletas no país, foi perdendo mercado até ser forçada a deixar de fabricar motos em 1967. A empresa ainda sobreviveu fabricando equipamentos de precisão para armas, mas fechou as portas em 1971. Contudo, a atividade na Índia continuou firme e forte, tendo a Bullet como principal produto.
E assim foi por mais de três décadas, até que, em 1994, a Enfield India comprou os direitos para usar o nome Royal Enfield. Foi o renascimento da lenda, possível graças a um modelo que não havia mudado nada desde 1955.
Depois da compra do nome, a Bullet foi modernizada, ganhando um aspecto mais contemporâneo (mas só um pouco) e tecnologia mais moderna, como ignição eletrônica e amortecedores a gás. Para a alegria dos fãs, porém, o modelo tradicional foi mantido, porém agora chamado “Classic”.
Graças a esta decisão, a Royal Enfield cresceu muito no setor de nicho. Ano após ano, a empresa expandia suas atuações até que, hoje, exporta motos para mais de 20 países.
Olhar para uma Classic era voltar no tempo, em todos os sentidos. Ela era bem pequena e leve — 2,18 m de comprimento e 183 kg. O motor não mudou muito ao longo das décadas: continuava sendo um monocilíndrico com pistões de 84 mm de diâmetro por 90 mm de curso e comando de válvulas no bloco, capaz de entregar 27,2 cv a 5.200 rpm e 4,21 mkgf de torque a 4.000 rpm. A diferença é que, desde 2007, o motor tem injeção eletrônica e partida elétrica.
A mudança no motor foi uma das razões para que a Royal Enfield se popularizasse nos últimos anos — a ponto de, no ano passado, a companhia inaugurar mais uma fábrica na Índia e dobrar a capacidade de produção para suprir a demanda internacional. O que inclui o Brasil.
As motos são importadas desde 2012 da Índia, e o único modelo disponível é a Classic 500, oferecida em várias cores. Cada uma das cores recebe um nome especial — Classic Green, Chrome Black, Desert Storm e traz visual exatamente igual ao que era há mais de 60 anos.
Obviamente, quem quer uma Royal Enfield não está muito preocupado com eficiência ou custo-benefício — a anglo-indiana tem estilo de sobra e um charme único, e talvez o mais próximo que se pode chegar de voltar à década de 50 e comprar uma moto.
Foi uma manobra acertada, a dos indianos. Depois do sucesso da Classic, a nova Royal Enfield anunciou em 2015 a compra de uma pequena fabricante britânica chamada Harris Performance Products. O objetivo era simples: tornar a Royal Enfield uma marca genuinamente britânica outra vez. A compra incluiu um centro de pesquisa e desenvolvimento em Leicestershire, no leste da Inglaterra. Pouco depois, a Royal revelou a dual-sport Himalayan.
Era um produto completamente diferente da Classic, sem ligação direta com o passado da Royal Enfield em si, mas ainda assim com visual clássico e uma proposta acessível, tanto para o bolso quanto para as habilidades do motociclista – incluindo um motor monocilíndrico de 411 cm³, quadro desenvolvido do zero, injeção eletrônica e ABS. Sua proposta é ser uma motocicleta multiuso, que fique à vontade na rua, nas rodovias e nas estradas de terra. Ela foi lançada na Índia em 2016 e chegou ao Brasil três anos depois, em 2019 – e tudo indica que ela terá uma vida longa na configuração atual.
A primeira Royal Enfield moderna desenvolvida na Inglaterra, por sua vez, foi a Interceptor 650, que foi anunciada em 2017, lançada em 2018 e começou a ser vendida em 2019 ao lado de sua irmã, a Continental GT 650. Ambas usam o mesmo motor de 648 cm³ e 47 cv, mas suas propostas são ligeiramente distintas: a Interceptor 650 é a sucessora direta da Classic, descontinuada no ano passado, e a Continental GT se propõe a ser uma cafe racer clássica. As três compõem a linha atual da Royal Enfield no Brasil, mas logo devem ganhar uma companheira: a Meteor 350, modelo de entrada que já está à venda na Índia desde o ano passado. Fala-se até em fábrica no Brasil – é a tradição britânica totalmente globalizada.