Não sei se você notou ultimamente que a Volkswagen deixou a família Gol meio de lado enquanto investe fortemente na linha Polo. Enquanto o Gol, o Voyage e a Saveiro foram simplificados, o Polo está prestes a ganhar um facelift (ele e o Virtus) além de uma nova versão de entrada que deixa mais do que claro que ele está assumindo o lugar que um dia foi do Gol.
Segundo rumores de longa data, o Gol foi um projeto nascido a fórceps, que só chegou à linha de produção e às ruas pelo esforço mútuo da Volkswagen brasileira. A Alemanha queria o Polo por aqui.
No fim, o Gol venceu e o Polo só chegou ao Brasil em 1997. E foi somente em sua sexta geração que ele se tornou mais relevante que o Gol no mercado Brasileiro. Mas o curioso mesmo é que, diferentemente da Ford, que fez um Escort Mk1 em cima do Renault 12 para fazer o Corcel, a Volkswagen não improvisou um Polo sobre a plataforma local BX.
Em vez disso, ela buscou inspiração em um modelo bem mais atraente e com uma proposta totalmente diferente do Gol: o Scirocco.
O Scirocco tinha uma função bastante específica na Europa dos anos 1970: mostrar que a VW fazia carros esportivos que fossem capazes também de chamar a atenção nas ruas e atrair gente para as concessionárias – quem não comprasse um Scirocco, talvez saísse da loja com um Golf ou Polo ou Passat.
Afinal, muita gente quer um hatch de duas portas com dois lugares decorativos atrás e motor turbinado, mas nem todo mundo pode abrir mão de duas portas a mais e um banco traseiro de verdade.
Em outras palavras, o Scirocco era um halo car propriamente dito: para um cara solteiro ou, no máximo, um casal sem filhos, o hatch/cupê podia ser o único carro e oferecer praticidade para o dia-a-dia, espaço para a bagagem e todas as qualidades de um hot hatch.
Era uma função que, no passado, havia sido desempenhada pelo VW Karmann Ghia, o cupê de motor traseiro que era feito sobre a base mecânica derivada do Fusca. Até hoje ele é um dos carros mais bonitos fabricados pela Volkswagen e, para a maioria dos compradores, essa beleza compensava a pouca disposição para acelerar — o boxer alemão jamais foi famoso por sua potência, mesmo nas configurações mais apimentadas.
Mesmo assim o Karmann Ghia vendeu bem por alguns anos – especialmente a primeira geração, fabricada na Europa entre 1955 e 1961 e trazida para o Brasil em 1962. Na Europa, a segunda geração sobreviveu até 1974, com motor de 1,7 litro parecidíssimo com o do nosso VW SP2 e design exclusivo para a Europa, com proporções mais avantajadas e foco maior no conforto. Só que o mundo automotivo já havia mudado bastante.
Vamos lá, 1973: para começar, o Fusca – o cara que deu origem a todos os outros Volks a ar – já era um clássico, se considerarmos que já tinha seus 36 anos de fabricação e estava para sair de linha (na Europa, claro).
Desde 1968 após a morte do presidente da Volkswagen Heinz Nordhoff, a filosofia da marca se afastava aos poucos dos boxer arrefecidos a ar na traseira, alinhando-se com o restante do mundo ao flertar com os motores dianteiros de arrefecimento líquido.
Giorgetto Giugiaro foi o designer que deu cara aos novos modelos naquela que foi a primeira grande empreitada de , em Milão. Linhas simples, retas, harmônicas, simpáticas.
Era assim o Passat, com seu elegante teto fastback, e parecia um bom caminho. O Golf, sucessor do Fusca, veio um ano depois, em 1974.
O próprio Giugiaro estava empolgado com tanto trabalho, e apresentou no estande da Audi no Salão de Frankfurt de 1973 o conceito Asso di Picche (“ás de espadas” em português), que usava como base o plataforma do Audi 80 (o pai do Passat), e trazia um perfil mais baixo, com dianteira em forma de cunha e área envidraçada com ares de cockpit.
As laterais eram abauladas, lembrando um pouco os superesportivos da época, e o interior trazia as experimentações com mostradores digitais e formas futuristas típicas dos anos 70.
O Asso di Picche não foi pensado para as ruas, mas acabou chegando lá. Paralelamente ao Passat e ao Golf Mk1, a VW planejava também um sucessor para o Karmann Ghia – e, aproveitando que tudo estava mudando dentro da Volks, o pessoal lá dentro decidiu que o carro também teria motor dianteiro transversal e tração dianteira, como o Golf.
Os dois carros foram, então, desenvolvidos em paralelo, compartilhando plataforma e mecânica, porém com carrocerias distintas.
Giorgetto Giugiaro foi o encarregado de criar as formas do carro, claro. E, como chefe da equipe de design, resolveu inspirar-se em seu próprio trabalho, retrabalhando as linhas do conceito para ganhar as ruas. O resultado foi o Scirocco.
O nome do carro, seguindo um dos padrões de nomenclatura da Volks nos anos 70, era inspirado em um vento: o siroco, que se origina no norte da África e sopra para o norte, em direção ao Mar Mediterrâneo. É um vento muito rápido, capaz de chegar aos 100 km/h, e as formas aerodinâmicas de sua carroceria devem ter sido a inspiração para o nome do Scirocco.
Com o Golf, o Scirocco só compartilhava o entre-eixos de 2,4 metros. No mais, era 18 cm mais longo, 1 cm mais largo e 8 cm mais baixo, e tinha o vidro traseiro bem mais inclinado. Com isso, não cabia muita gente lá atrás (alguém lembrou do Gol quadrado?), mas as formas arrojadas compensavam.
Além disso, os quatro faróis circulares na dianteira e as lanternas largas davam ao hatch fastback um visual distinto do restante da família. E, assim como o Karmann Ghia, era fabricado pela Karmann, e não pela Volkswagen.
Está percebendo? Por baixo da carroceria especial havia não muito mais que um Golf – claro, com bancos mais baixos, painel de instrumentos com conta-giros em destaque e mostradores auxiliares em profusão, volantes de três raios com menor diâmetro e acabamento superior.
O projeto básico de suspensão, McPherson na dianteira com eixo de torção, era o mesmo para os dois carros, que também compartilhavam os motores quatro-cilindros com comando no cabeçote e deslocamento entre 1,1 litro e 1,7 litro.
Produzido entre 1974 e 1981, o Scirocco Mk1 vendeu pouco mais de 500.000 unidades — o que deixa bem evidente seu posicionamento em relação ao Golf Mk1, que entre 1974 e 1983 vendeu nada menos que 6.800.000 unidades. Entre suas diferentes versões, a mais interessante era, sem dúvida, o Scirocco GTI, que usava o mesmo motor 1.6 8v do Golf GTI, com injeção mecânica Bosch K-Jetronic.
Em 1982 veio a segunda geração. Por mais que seja tentador dizer que ele é um parente do Santana devido ao formato das portas e das lanternas traseiras, a verdade é que se tratava de uma reestilização bem abrangente.
Com alterações na dianteira, que ficou mais retilínea e moderna, e no formato dos vidros laterais traseiros; além da adoção de para-choques envolventes e um criativo aerofólio que passava sobre o vigia traseiro.
O interior ganhou formas mais parecidas com as dos carros japoneses, e os motores evoluíam com a adoção de cabeçote multiválvulas e injeção eletrônica. No caso do Scirocco GTI, o motor passou a ser um 1.8 16v de 140 cv.
Era uma mais boa demonstração de como a Volks conseguia aproveitar ao máximo a capacidade de seus projetos ao longo dos anos – o Scirocco Mk2 foi fabricado até 1992, com poucas modificações. Foi uma decisão acertada, e a Volkswagen conseguiu criar uma boa reputação para o Scirocco em duas gerações.
Em 1988 veio o sucessor do Scirocco: o Volkswagen Corrado. Como seu antecessor, ele era construído pela Karmann e baseado no Golf — agora, porém, no modelo de segunda geração. O entre-eixos era maior, com 2,47 m, e o Corrado adotava formas mais musculosas e alinhadas com a década que se iniciava.
O interior lembrava bastante o que se veria no Golf Mk3, apresentado no fim de 1991 e, de fato o Corrado incorporou componentes da terceira geração do hatchback em algumas versões.
Enquanto as versões com motor de quatro cilindros usavam componentes de suspensão, como subchassis, amortecedores e braços do Golf Mk2 – incluindo nesta o Corrado G60 e seu motor 1.8 supercharged, o Corrado VR6 usava peças do Golf de terceira geração, melhor projetadas para aguentar o peso extra e o melhor rendimento do seis-cilindros de 2,8 litros.
O motor, que trazia as bancadas de cilindros separadas por apenas 15 graus e, com isto, usava apenas um cabeçote, fora concebido exatamente para aplicações transversais. Rendia 181 cv na versão de 2,8 litros para o mercado americano, e 190 cv na versão de 2,9 litros usada na Europa.
O Corrado teve cerca de 97 mil unidades fabricadas entre 1988 e 1995. Era um carro mais moderno, refinado e caro, o que permitiu que o Scirocco fosse vendido até 1992, sendo efetivamente substituído pelo Corrado apenas em 1993.
Com seu comportamento dinâmico mais refinado e uma boa cavalaria, o Corrado VR6 é considerado uma das “joias perdidas” da Volkswagen – na época, o Corrado VR6 foi chamado de “um dos melhores carros que a VW já fez” pela imprensa internacional. A revista britânica Car chegou a colocar o VR6 em uma lista de “25 carros para dirigir antes de morrer”.
É por isso que fica difícil entender por que a VW levou tanto tempo para aparecer com um sucessor. Ele só veio 11 anos depois, em 2006, quando a Volks anunciou sua volta com o conceito Iroc. Certamente tem gente que vai lembrar dele, e da pista dada pelo seu nome: as quatro letras do meio da palavra “Scirocco”.
O momento era oportuno: a VW havia lançado, em 2004, o Golf Mk5, primeiro feito sobre a plataforma PQ35 e o primeiro a adotar, na versão GTI, o novo motor TSI de dois litros e 200 cv. Era a hora perfeita para trazer de volta um hatchback de visual mais agressivo feito sobre uma plataforma conhecida e criar todo aquele efeito de carro de imagem.
A verdade é que Volkswagen meio que congelou o Scirocco no tempo: enquanto o Golf ganhou duas gerações daquela época até hoje, o Scirocco teve de se contentar com uma reestilização em 2014, inspirada pelas linhas do Golf GTI Mk7. Não que o carro precisasse de muito mais do que isto para cumprir sua missão, pois era mais um modelo de nicho para quem queria algo mais sofisticado e exclusivo do que um Golf.
No fim das contas ele acabou meio esquecido: fora o Scirocco R, com 280 cv e visual mais agressivo, a Volks não deu ao modelo muitas variações e melhorias ao longo dos anos e, assim, ele deixou de ser produzido em 2018.
O que, para nós, é um grande potencial desperdiçado – especialmente porque nenhum Scirocco (ou Corrado) foi vendido no Brasil de forma oficial, ainda que ele tenha inspirado o mais popular dos Volkswagen verdadeiramente brasileiros.