Hoje o futuro do automóvel parece sombrio com tantas certezas sobre o desconhecido. Mas a humanidade tende a seguir em frente. Se tudo o que parece decretar o fim do carro realmente ameaçar acabar com o carro, haverá uma reação natural das pessoas. Porque seu fim representa um retrocesso evidente, e a história mostra que a humanidade jamais deu um passo para trás. Ela nunca regrediu depois de conquistar território novo.
Foi assim que terminei minha pensata sobre o iminente fim do carro popular, publicada em fevereiro de 2021. Na ocasião estávamos em plena pandemia, no auge de todas as consequências econômicas que ela causou — o que incluía uma ruptura na cadeia de suprimentos que afetou o preço do aço, do frete e dos semi-condutores.
Os carros novos ficaram caros, os carros usados subiram junto e muitas fabricantes fizeram o óbvio: se concentraram nos produtos de maior valor percebido para minimizar o prejuízo de se passar dois ou três anos com vendas em baixa.
Foi justamente por ali que o carro popular começou a desaparecer no mundo todo e o valor médio dos carros novos aumentou significativamente. Nos EUA, o preço médio dos carros novos subiu 30% entre 2019 e 2023. No Brasil, o preço médio subiu 51,5% nesse mesmo período, enquanto os Europeus pagam hoje 16% mais do que em 2019 — lá a escalada começou em 2018 pela demanda estimulada de carros híbridos e elétricos.
Outro efeito dos tempos de pandemia foi a inflação global generalizada provocada pela injeção de dinheiro pelos governos e pela redução na oferta de insumos. Para piorar, a Rússia decidiu entrar em guerra contra a Ucrânia, algo que acabou afetando o custo da energia na Europa inteira e, consequentemente, trouxe mais inflação.
O cenário global hoje, de forma simplista, é: todos estão pagando mais caro por tudo e sobra pouco dinheiro ou crédito. O volume de vendas nos EUA, em 2022,, sendo 9% menor que em 2021. Na Europa a queda foi maior: 10,4%. No Brasil, surpreendentemente, a queda foi mais amena, 0,8%, mas foi uma queda do frágil banquinho onde estávamos sentados.
A perspectiva não é das melhores, afinal, burocratas redentores decidiram que temos de banir a mais barata das tecnologias de mobilidade até 2035 nos EUA (Califórnia, mas ela influencia o país todo) e na Europa. Não é preciso ser muito esperto para concluir que existe um risco muito grande de o carro se tornar algo elitizado, para uns poucos ricos que poderão comprá-los.
E aqui voltamos ao primeiro parágrafo, aquele que escrevi em 2021. Mais especificamente essa frase: “Se tudo o que parece decretar o fim do carro realmente ameaçar acabar com o carro, haverá uma reação natural das pessoas.”
Parece que ela está começando. Primeiro, a Alemanha conseguiu um acordo com a União Europeia para furar a barreira do banimento dos motores de combustão interna em 2035. Alguém com um mínimo de sensatez percebeu que o negócio não era só uma questão de vontade, mas também de consequências graves para a estrutura socio-econômica do país — que é o sexto maior produtor de automóveis do planeta. Não adianta salvar o planeta e condenar sua população, afinal.
O CEO da Stellantis, Carlos Tavares, já havia se pronunciado em algumas ocasiões sobre esse problema do prazo e do banimento, assim como membros do governo italiano e o presidente da BMW. São pequenos sinais, que aparecem em entrevistas mais abrangentes, que dão indícios de que haverá uma reação caso a situação chegue a um ponto crítico.
Agora, mais recentemente, o presidente da Stellantis na América do Sul, Antonio Filosa, que a região precisa discutir a volta do carro popular. Para isso, ele propôs uma espécie de “câmara setorial” automobilística, composta por todas as partes interessadas e com poder de ação para reduzir os preços dos automóveis — governo, fornecedores, fabricantes e instituições financeiras.
Talvez esta seja a solução para os “populares de R$ 70.000” que temos hoje. O Brasil teve algumas ondas de motorização e todas elas foram estimuladas por acordos entre governo, instituições financeiras e indústria. Foi assim na industrialização do Brasil, nos anos 1950, depois com o programa do carro popular nos anos 1990 e, mais recentemente, com o boom dos anos entre 2008 e 2013.
Todas elas tiveram como ponto central a redução de impostos para diminuir o custo de produção e/ou o preço de venda, linhas de crédito específicas e comprometimento dos fabricantes de alguma forma. Nos anos 1950 a contrapartida era a nacionalização dos carros. Nos anos 1990 era a faixa de preço-alvo do carro popular e, nos anos 2010, o investimento na produção local.
Destas, a que melhor funcionou a dos anos 1990, que realmente colocou o Brasil sobre quatro rodas sem efeitos colaterais sócio-econômicos. Os carros ficaram mais novos e mais seguros, não houve uma crise resultante do endividamento e, com o mercado aberto, também tivemos alta das exportações dos carros. Houve também uma preocupação mínima do governo em conter despesas para tornar o crédito sustentável e fazer o plano econômico da vez, o Plano Real, decolar.
Quanto custavam os carros populares de 1994 em valores atuais?
Nos anos 1950, o grande problema foi tratar a produção local como uma solução para a balança comercial. Falamos sobre isso em 2020, mas aqui vai um resumo:
O problema é que: 1) o Brasil era um país pouco desenvolvido; 2) a produção era voltada para substituição das importações no mercado interno. Sem escala, o custo de produção era elevado e não era atrativo para exportação. Sem importados, o produto não tinha concorrência externa.
Isso não afetou apenas a chegada da tecnologia — sempre atrasada em vinte anos, no mínimo. O produto brasileiro era um menino mimado de condomínio, protegido por câmeras, grades e vigilantes, sem a menor noção de como sobreviver no mundo real. Quando as importações foram abertas, aconteceu o óbvio: os projetos nacionais foram massacrados por projetos estrangeiros e modelos importados.
Depois, nos anos 2010, o problema foi a chamada responsabilidade fiscal. Falamos sobre isso em 2021:
No Brasil, esta reviravolta veio na forma de uma série de desastres econômicos consecutivos. O primeiro foi o crédito desenfreado e insustentável, seguido por uma tentativa desastrada de atrair investimentos no setor automobilístico da forma menos sutil possível: sobretaxando quem não se instalasse no Brasil. Literalmente criar dificuldades para vender a facilidade, em vez de facilitar as coisas. O negócio foi tão desastroso, que acabou com uma condenação do Brasil pela Organização Mundial do Comércio.
Como se não bastasse, o terreno fértil prometido não recebeu adubo, nem teve dinheiro para a irrigação. O crédito facilitado era insustentável porque boa parte do crescimento era consumido pela taxa de juros, que continuava elevada. Em todo o mundo a compra de bens de alto valor agregado, como automóveis e imóveis, depende de financiamentos de longo prazo, mas a diferença é que o custo do dinheiro é barato. Não vou entediá-los com números, mas, em resumo, a taxa de juros anual é equivalente à nossa taxa de juros mensal. É um negócio sustentável.
Por aqui, tivemos financiamentos de até 84 meses. Oitenta e quatro meses. Sabe o que isso significa? Que uma pessoa que comprou um carro desta forma em dezembro de 2013, só quitou sua dívida em dezembro de 2020. Nesses sete anos, ela não foi consumidora de mais nada além de gasolina, impostos, peças e pneus. Não comprou nenhum carro.
O carro popular já cumpriu seu papel. Nós é que não cumprimos o nosso
E foi assim que chegamos à situação atual: poucos carros vendidos nos últimos dez anos resultaram em uma redução na oferta de usados justamente quando os carros novos puxaram o preço dos carros em geral para cima.
É claro que isso preocupa os fabricantes — e deveria preocupar os governos. A indústria automobilística brasileira emprega mais de 110.000 trabalhadores diretamente e mais de 1 milhão indiretamente. A redução da produção, sem o crescimento de outros setores, resulta em desemprego ou em menos renda. Nos dois casos a única diferença é o quanto o trabalhador irá empobrecer — e deixar de comprar carros, em uma espiral descendente que não acaba bem.
Só a redução do IPI na virada dos anos 2000 para 2010, . E uma evidência de que a redução de impostos sobre o carro poderia impulsionar as vendas pela queda dos preços foi o sucesso do segmento PCD, que foi usado e abusado no fim da década de 2010 porque resultava em preços até 30% mais baixos. Uma redução de 30% nos populares os devolveria ao patamar dos R$ 45.000 a R$ 50.000 em condições normais.
Se esta câmara proposta pelo presidente local da Stellantis vai mesmo acontecer, é difícil dizer. O que podemos esperar, contudo, é algum tipo de reação da indústria e bancos e do próprio público caso nada aconteça. Ou teremos um inédito caso de retrocesso tecnológico?