Já faz décadas que os fãs da Porsche usam seus carros como base para projetos originais. A Porsche geralmente não vê problemas nisso – diferentemente da Ferrari, por exemplo. Você só precisa respeitar a marca e deixar claro que, por baixo de toda a perfumaria, o que se tem é um veículo feito pela Porsche e modificado depois. Ah, e não gravar a marca Porsche direto na carroceria…
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Mas você conhece a história do Porsche modificado que inspirou um novo modelo da fabricante? Pois é: foi isso que aconteceu, dizem, com o Porsche Spexter – um 911 transformado em roadster que supostamente inspirou a própria Porsche a criar o Boxster. Até o nome é parecido.
A história toda começou em junho de 1988, há exatos 32 anos. A edição da revista americana Motor Trend daquele mês trazia uma foto do carro na capa, acompanhada da pergunta: “O novo speedster da Porsche?”, sugerindo que aquele carro era um conceito oficial.
Dentro, a reportagem esclarecia que não – praticamente um clickbait, mas na mídia impressa. Contudo, o carro em si não era menos interessante por isso. Além de ter toda a cara de Porsche “oficial”, com boa qualidade de construção; design futurista, porém coeso; e um emblema que dizia “Powered by Porsche” na traseira; ele também propunha algo interessantíssimo: uma interpretação moderna do Porsche 356.
Made in Canada
Esta história é curiosa, porque ela começa… com um Honda Civic. Ou melhor, com um Honda Civic modificado por uma empresa de Montreal, no Canadá, chamada Spex Design – um pequeno roadster chamado Elf, baseado no Civic de primeira geração. Pequeno, leve e com a carroceria abaulada como o casco de um barco, o Elf era esquisitinho, mas teve algumas dezenas de unidades produzidas. A Spex Design era tocada por dois caras chamados Paul Deutschman e Kell Warshaw, e Deutschman ainda é dono de um exemplar.
Embora seja um carro extremamente obscuro, o Elf conquistou alguns fãs na época. E um desses fãs era um cara chamado Clyde Kwok – que também tinha uma fabricante de automóveis em Montreal, a Wingho Auto. É provável que sua criação mais famosa seja o protótipo Concordia II, um carro em forma de cunha com chassi e motor de Fusca.
O veículo, porém, é mais conhecido como Black Moon – era esse seu nome no filme “Erro Fatal” (Black Moon Rising, 1986). Apesar de ter John Carpenter como diretor e Tommy Lee Jones no papel principal, o filme passou despercebido na época – foi considerado “descartável”, “superficial” e “bobo” pela crítica. Não era exatamente ruim, mas também não era uma obra prima.
Como admirador do Elf, Kwok decidiu procurar a Spex design para um projeto conjunto. E, em vez de usar o Fusca como ponto de partida, ele decidiu-se por algo mais entusiasta – um Porsche.
Kwok, pelo visto, era fã de muitas coisas – ele também admirava intensamente o Porsche 356, e sempre quis saber como ficaria um Porsche 356 moderno (o que, no caso, significa “feito na segunda metade dos anos 80”). Ele se referia carinhosamente ao 356 como “banheira”, por causa da sua silhueta peculiar de banheira invertida, claro, e decidiu chamar a Spex para colocar o plano em prática. Por que ele não fez tudo sozinho? É um mistério – talvez ele simplesmente curtisse o trabalho de Deutschman e Warshaw, ou então estivesse a fim de descansar um pouco e deixar outras pessoas fazerem o serviço pesado.
Qualquer que tenha sido o motivo, a Spex aceitou. Deutschman, em uma entrevista recente ao site Hagerty, disse que gostou da ideia – encarou como um desafio, e uma oportunidade para mostrar até onde iam suas habilidades.
Um Porsche 911, só que não
Apesar da inspiração no Porsche 356, o carro foi feito sobre um Porsche 911 Targa, que era a opção aberta na época. O nome Spexter foi criado, como dá para deduzir, da união das palavras “Spex” e “Speedster”.
O Targa original, apesar de romper com a silhueta clássica do 911, é considerado uma das mais belas variantes do esportivo com seu santo-antônio em metal escovado e vidro traseiro envolvente – características replicadas na atual geração 992. Mas a Spex não teve pudores em arrancar todos os painéis da carroceria para dar forma às ideias de Clyde Kwok: nada é compartilhado com o 911 Targa.
A nova carroceria foi feita em fibra de vidro e Kevlar, e misturava perfeitamente o conceito estético do Porsche 356 com elementos contemporâneos. As superfícies eram todas lisas, com o mínimo de vincos e dobras – “para deixar as formas e proporções darem o recado”, segundo Deutschman. A silhueta formava uma curvatura suave entre o bico do carro e sua extremidade posterior, e a porção central era levemente côncava para formar a popularmente chamada “garrafa de Coca-Cola” (algo que também era visto nos muscle cars americanos da década de 1960). Os para-choques eram perfeitamente integrados ao restante da carroceria, demarcados apenas por vincos.
A dianteira era uma reinterpretação do Porsche 356, com faróis escurecidos e uma entrada de ar formada por quatro fendas horizontais no para-choque. Atrás havia uma lanterna que tomava toda a largura da face traseira, uma generosa saída de escape do lado esquerdo e os letreiros “Porsche” e “Spexter” – um em cada canto, como que para evitar que o carro fosse chamado de “Porsche Spexter”. Tanto é que, hoje em dia, o letreiro diz “Powered by Porsche”, afastando ainda mais a ideia de que se trata de algo oficial. Mas que parece, parece.
O interior também foi completamente remodelado – não sobrou nada do 911 além do volante de três raios e dos instrumentos do painel. E, ainda assim, eles ficavam em um cluster triplo feito sob medida e instalado na coluna de direção, à la TVR. Os bancos, maior charme do habitáculo, eram meras cavidades esculpidas na fibra de vidro com finas almofadas para garantir um mínimo de conforto. E, como bom Speedster, o carro não tinha colunas nem vidro laterais: só um defletor de plástico preto translúcido para desviar o vento do rosto dos ocupantes.
100% funcional
De acordo com Deutschman, o carro ficou exatamente como ele havia imaginado – exceto pelas proporções da traseira. O motor do 911, pendurado lá atrás, exigiu uma traseira mais alta e um aumento de 20 cm no comprimento total do carro, enquanto largura e entre-eixos foram conservados. Para o criador do Spexter, o ideal seria ao menos recuar o motor um pouco mais para o meio do carro, permitindo uma traseira mais curta, menos volumosa, e com caimento mais parecido com o do 356 original.
O trabalho foi concluído em apenas nove meses – e Deutschman diz que não teve grandes problemas pois os reforços estruturais originais do 911 Targa já davam conta de garantir toda a rigidez necessária.
Clyde Kwok encomendou o Spexter para curtir, dirigir mesmo, e não para ficar guardado. E assim foi – ele até emprestou o carro para a Motor Trend, que elogiou sua dinâmica, seu desempenho e seu estilo. “Fiel à sua inspiração, sem deixar de ser inovador”, dizia o artigo. Certamente o fato de a Spex ter deixado o chassi do 911 inalterado (freios, suspensão e estrutura são os mesmos) e apenas deixado o motor boxer de 3,2 litros mais potente – o teste falava em 252 cv, contra os 230 cv que o Targa tinha em 1985 – ajudou nas boas impressões.
O próprio Kwok manteve o carro consigo desde então, dirigindo com ele cerca de 100 km por ano. Só agora o Spexter foi a leilão – ele está anunciado no site PCarmarket, e o último lance público foi de US$ 145.000 (cerca de R$ 732.000 em conversão direta).
Inspiração para o Boxster?
Pois bem: em sua entrevista ao Hagerty, Deutschman conta que chegou a visitar o estúdio de design da Porsche pouco tempo depois que o Spexter foi revelado. “Eles notaram o Spexter, mas não esboçaram qualquer tipo de reação significativa”, relata o projetista.
Contudo, em janeiro de 1993, a Porsche revelou o conceito do Boxster, que viria a ser lançado três anos depois como modelo de entrada da marca – e, eventualmente, se tornaria um sucesso.
Deutschman achou que o nome Boxster era parecido demais com o nome do Spexter para ser mera coincidência. E mesmo o estilo, apesar de muito mais elaborado e harmônico, não estava tão distante assim.
Humilde, Deutschman nunca chegou a afirmar que a Porsche se baseou no seu one-off para criar o Boxster. “Foi bizarro, mas também me senti lisonjeado com a ideia de que havia alguma ligação entre o Boxster e o meu Spexter.”