Dizem por aí que a vida de um entusiasta acaba quando ele constitui uma família e precisa renunciar a todas possibilidades de comprar um carro bacana para investir em algo seguro, espaçoso e versátil para a mulher e os filhos — nos EUA, esta “tradição” é muito maior, mas ela existe por aqui também.
Isto porque, por mais bacanas que sejam do ponto de vista prático, minivans não são carros exatamente arrojados, empolgantes ou inovadores, ou ao menos é o que a maioria dos gearheads acha. Mas nem sempre foi assim: lá nos anos 30, um americano decidiu que queria um carro espaçoso, versátil e diferente de tudo o que havia nas ruas. Seu nome era William Bishnell Stout, e ele era formado em “Artes Mecânicas”, que era como as escolas deviam chamar o curso de design industrial na época.
Faz sentido. De fato, o carro mais famoso que William Stout fez em sua vida parecia muito mais uma obra de arte sobre rodas — não aquela arte feita para encantar, mas sim para expressar uma visão muito própria, única e futurista, que não foi bem aceita na época mas tem seu conceito básico aproveitado até hoje.
Na verdade chega a ser injusto que Stout seja lembrado unicamente pelo Scarab, como acontece na maioria das vezes: ele também teve uma brilhante carreira na aviação, fundando a Stout Metal Airplane Company que, em 1925, foi comprada pela Ford e produziu o Trimotor, também conhecido como “Tin Goose”, que foi um dos primeiros aviões de transporte comercial de passageiros dos EUA, sendo produzido até 1933.
Embora seja uma injustiça, contudo, a associação imediata do nome de William Stout a sua revolucionária, porém mal-sucedida criação não é desonra alguma. Na verdade, o Scarab utilizava os princípios de design que Stout aprendeu enquando fabricava aviões, e ainda apresentava várias inovações técnicas que só seriam vistas décadas mais tarde.
Depois que a parceria com a Ford acabou, no início da década de 1930, Stout ficou procurando coisas para fazer — até que descobriu que os europeus estavam bastante envolvidos com a ideia de criar um carro popular com motor traseiro e carroceria aerodinâmica. Entre eles, Josef Ganz, Ferdinand Porsche e Hans Ledwinka, três nomes que aparecem na controversa origem alternativa do Fusca (leia aqui).
Stout gostou da ideia, e decidiu adotar uma variação deste conceito — uma bem arriscada naquele período pós-Grande Depressão: usar o motor traseiro e a carroceria aerodinâmica propostos por seus colegas europeus em um novo veículo, mas não um carro popular. Stout não pensava pequeno, e decidiu que faria um veículo espaçoso, versátil e com interior reconfigurável. Daria para morar nele, se você quisesse.
O projeto teve um desenvolvimento bem rápido, e em 1934 já estava pronto para ser produzido. Não há certeza sobre a autoria do design — enquanto alguns dizem que as linhas são de John Tjaarda (designer nascido na Holanda como Joop Tjaarda e pai de Tom Tjaarda, que também se tornou designer e tem no currículo o Fiat 124 Spider, o De Tomaso Pantera e, acredite, o Ford Maverick), outros acreditam que Stout só se inspirou nos rascunhos de Tjaarda e pediu algumas dicas.
De qualquer forma, Scarab significa “escaravelho”, e não foi por acaso: as linhas do veículo lembram, de fato, o tipo de besouro (percebeu algo familiar?), mas o visual é só uma de suas várias características marcantes.
Para começar, em vez de usar o conceito de carroceria sobre chassi, como era a norma entre os carros americanos da época, Stout decidiu-se por uma estrutura tubular coberta com painéis de alumínio de desenho bastante aerodinâmico, incluindo vidros e maçanetas rentes à carroceria, características que só se tornariam mais comuns no início da década de 1990. O Scarab também tinha para-lamas embutidos à carroceria e não destacados, ausência de estribos e rodas traseiras encobertas — tudo em nome da aerodinâmica.
Encarregado de mover o carro estava um Ford V8 Flathead, fruto de sua associação passada com a Ford. Posicionado sobre o eixo traseiro — que na verdade era um transeixo, pois incorporava uma caixa automática de três marchas desenvolvida pelo próprio William Stout —, o conjunto mecânico ocupava pouco espaço e ainda permitia um amplo compartimento para bagagem na traseira.
O arranjo ainda permitia que o assoalho fosse totalmente plano e a cabine, absurdamente espaçosa. Somente o banco do motorista era fixo ao chão — o do carona e o banco traseiro, que era enorme, podiam ser posicionados ao redor de uma mesa que ficava escondida na lateral. Estas características, mais a porta na porção central do lado do passageiro, levam historiadores a afirmar que o Scarab é a primeira minivan da história.
A suspensão também não era exatamente convencional — para começar, era independente nas quatro rodas com molas helicoidais e bandejas na dianteira e eixos oscilantes na traseira, com braços arrastados e uma mola semielíptica transversal.
Não era uma minivan barata, porém: sua construção artesanal, com materiais nobres, levava o preço final a espantosos US$ 5.000. Achou pouco? Pois saiba que US$ 5.000 nos anos 30 equivalem a cerca de US$ 90 mil (ou R$ 230 mil) em dinheiro de hoje. Só pessoas muito ricas poderiam comprá-lo — entre elas, a família Firestone, que ficou com um dos nove Scarab fabricados entre 1934 e 1939.
A associação com a Firestone rendeu ainda uma última inovação na Scarab: Stout colocou bolsas de ar experimentais da Firestone no lugar das molas da suspensão de seu exemplar de uso pessoal — e provavelmente também do Sr. Harvey S. Firestone, fundador da fabricante de pneus que levava seu sobrenome.
Com o início da Segunda Guerra, Stout mudou o ramo de atuação de sua fábrica para a construção de aviões, e só depois do conflito voltou a focar-se no Scarab — desta vez, com o Stout Scarab Experimental, ou Project Y-46. Era um sedã com linhas um pouco mais convencionais, porém uma inovação ainda maior na carroceria: ele provavelmente foi o primeiro carro na história feito de fibra de vidro.
Depois do Scarab, Stout se aposentou e mudou-se para Phoenix, no Arizona. Ele morreu em 1956, quatro dias depois de completar 76 anos de idade. Seu legado, contudo, ainda vive em quase todos os carros modernos por seu cuidado com a aerodinâmica mas, principalmente, nas minivans por sua modularidade e versatilidade.
Você não precisa virar fã de minivans mas, depois de conhecer seu precursor, que tal tratá-las com um pouco mais de respeito?
Ah, e caso você curta jogar a versão vintage de Grand Theft Auto, saiba que você pode dirigir um Scarab no game L.A. Noire, que se passa em Los Angeles, na década de 1940: