Atropelamentos são a maior causa de mortes no trânsito em São Paulo e no Rio de Janeiro. Também são a maior causa de mortes de idosos no trânsito e a causa de 30% das mortes nas rodovias brasileiras. Mais que o excesso de velocidade, que corresponde a entre 11 e 16%, dependendo da fonte.
E não apenas no Brasil: eles são a segunda maior causa de mortes nas ruas e estradas europeias e americanas. E contrariando as estatísticas gerais, tanto no Brasil, quanto nos EUA e na Europa, o número de pedestres mortos está aumentando, apesar da redução do número total de mortes no trânsito.
Na prática, o que está acontecendo é que os ocupantes dos veículos estão mais protegidos e, por isso, sobrevivendo aos acidentes. Mas se o número total de acidentes também está diminuindo, significa que eles estão se tornando mais letais para quem está fora do carro. E embora estejamos condicionados a pensar na velocidade como um fator de letalidade, ao que tudo indica o problema é o design dos carros — em especial a “SUVização” do planeta.
Segundo um estudo do Intituto das Seguradoras para a Segurança Rodoviária (IIHS na sigla em inglês), o número de atropelamentos fatais causados por SUVs aumentou 81% entre 2009 e 2018 — no total pouco mais de 6.000 pessoas morreram atropeladas nos EUA em 2018.
Os problemas são evidentes: eles têm maior área frontal, capô mais elevado e, em modelos e versões fora-de-estrada, para-choques mais rígidos. Além disso, a mesma altura de rodagem que transmite segurança para os ocupantes, também aumenta a área oculta à frente do carro — e também na traseira, em modelos não equipados com câmeras. Isso aumenta o potencial de atropelamento de crianças e pedestres de menor estatura, principalmente em conversões.
No Brasil não temos estatísticas, mas como usamos EUA e Europa como exemplos de segurança no trânsito — e como inspiração para soluções de segurança —, creio que seja sensato considerarmos alguns estudos deles neste momento em que os SUV e crossovers se tornaram o segundo maior segmento do nosso mercado.
Infelizmente, enquanto os americanos têm um instituto governamental dedicado unicamente à promoção da segurança no trânsito (a Administração Nacional de Segurança Rodoviária – NHTSA), no Brasil reduzimos a conscientização à intimidação e a campanhas antiquadas, que usam o mesmo tipo de abordagem há 30 anos. Elas tendem a se concentrar no combate ao consumo de álcool por motoristas, ao combate à velocidade excessiva, à conscientizar pedestres sobre a travessia na faixa e ao combate às ultrapassagens proibidas.
Os EUA, por exemplo, já identificaram que, além dos SUV, o uso do celular por pedestres também resulta em acidentes graves ou fatais. Distraídos, eles se colocam em situações de risco e acabam atropelados. Somente nos últimos anos o Brasil começou a tratar deste comportamento, e ainda de forma muito tímida. Além disso, as campanhas educativas da NHTSA incluem a conscientização do pedestre, não apenas para atravessarem na faixa, mas também com orientações para realizarem travessias seguras.
Por alguma razão, o Brasil não tem campanhas de orientação aos pedestres. Tudo o que temos é a óbvia recomendação de atravessar na faixa e/ou aguardar o semáforo verde para pedestres, embora o Código de Trânsito Brasileiro tenha (esquecido em seu artigo 69) recomendações e regras para a travessia segura e correta:
“Para cruzar a pista o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta, principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos, utilizando sempre as faixas ou passagens a ele destinadas sempre que estas existirem numa distância de até cinquenta metros dele, observadas as seguintes disposições:
I – onde não houver faixa ou passagem, o cruzamento da via deverá ser feito em sentido perpendicular ao de seu eixo;
II – para atravessar uma passagem sinalizada para pedestres ou delimitada por marcas sobre a pista:
a) onde houver foco de pedestres, obedecer às indicações das luzes;
b) onde não houver foco de pedestres, aguardar que o semáforo ou o agente de trânsito interrompa o fluxo de veículos;
III – nas interseções e em suas proximidades, onde não existam faixas de travessia, os pedestres devem atravessar a via na continuação da calçada, observadas as seguintes normas:
a) não deverão adentrar na pista sem antes se certificar de que podem fazê-lo sem obstruir o trânsito de veículos;
b) uma vez iniciada a travessia de uma pista, os pedestres não deverão aumentar o seu percurso, demorar-se ou parar sobre ela sem necessidade.”
Contudo, nosso código de trânsito também cita, resumidamente, que o “veículo maior cuida do veículo menor” e todos são “responsáveis juntos pela incolumidade dos pedestres”, este sim um artigo muito bem lembrado por todos, de forma que a atribuição de deveres é feita somente aos condutores, mas não aos pedestres.
A situação se agrava com o discurso nocivo da “humanização do trânsito”, que desumaniza o condutor dos veículos e retira o senso de dever dos pedestre, de forma que se tornou um tabu do trânsito sugerir que os pedestres sejam precavidos ao atravessar a rua — afinal, isso seria a “culpabilização da vítima”, um outro conceito nocivo que acaba sufocando a prevenção de acidentes por ambas as partes. Como sempre digo por aqui, para ter razão você precisa estar vivo.
Há ainda uma outra questão que se mistura aos SUV, aos celulares (com pedestres e com motoristas): a maioria dos atropelamentos no Brasil acontece à noite, uma das condições adversas do trânsito devido à limitação de visibilidade. Apesar de a iluminação pública ser um padrão, a instalação de iluminação para faixas de pedestres não é um padrão.
Além disso, as regras atuais para instalação de faixas permite a criação de faixas inseguras, pois elas não precisam levar em conta a característica da via — e mesmo que levassem, não há uma fiscalização de faixas mal-feitas eficiente como a fiscalização de maus motoristas.
Infelizmente não teremos tão cedo o tipo de estatísticas de atropelamentos como as dos americanos. No Brasil o problema tende a ser reduzido ao controle de velocidade — que deve existir, evidentemente — enquanto novos fatores sequer considerados pelas autoridades podem estar influenciando mais acidentes do que se imagina.
A notícia de que SUVs e celulares têm relação com o aumento dos atropelamentos nos EUA, é mais uma prova de que, quando se trata de segurança no trânsito, não podemos apontar o dedo para a primeira correlação que encontramos ao dobrar a esquina.