Depois de muita espera, Gordon Murray enfim revelou ao mundo sua obra prima, a materialização de toda a sua experiência, de todo o seu conhecimento, e de tudo o que ele considera crucial em um superesportivo: o Gordon Murray Automotive T.50. O carro que, para o engenheiro sul-africano, é o real herdeiro do McLaren F1, que já foi o carro mais veloz do planeta e, para muitos entusiastas, ainda é o melhor supercarro já feito.
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A fórmula básica é exatamente a mesma: um supercarro de três lugares com espaço para bagagem (nas laterais, ao lado do motor), um V12 naturalmente aspirado, câmbio manual de seis marchas e tração traseira. A carroceria, embora obviamente desenhada de acordo com as tendências atuais, lembra de forma mais que passageira o McLaren F1 – não apenas na silhueta, mas na falta proposital de apêndices aerodinâmicos e no desenho da dianteira. Mas estamos falando de quase trinta anos de evolução, e isto fica bem claro quando se passeia por todos os detalhes. E são muitos.
Aliás, é possível que existam outros engenheiros automotivos tão detalhistas quanto Gordon Murray, mas só ele abriu uma empresa para colocar esta obsessão em prática, e construiu um carro exatamente como ele queria – sem as interferências típicas de grandes corporações com dezenas de departamentos, bean counters e preocupações com custos. Um luxo que Murray se deu para deixar sua marca definitiva no mundo dos superesportivos.
Analisando os detalhes do T.50, estamos tentados a dizer que ele conseguiu.
Notável é a limpeza do design. As formas são claramente ditadas pela função e, em grande parte, não há nada revolucionário no estilo do carro. Pelo contrário: o desenho da carroceria é familiar, como o de um McLaren F1 atualizado para o século 21 – nos vincos do capô, no contorno das janelas, na forma como as portas se abrem e nas proporções entre balanços e entre-eixos. Mas o carro não parece datado, e também não é retrô. É uma homenagem que leva em conta a heritage do F1 com muito respeito.
E é um carro relativente pequeno: são 4,35 m de comprimento por 1,85 de largura e 1,16 m de altura. O entre-eixo é de 2,70 m, enquanto as bitolas dianteira e traseira têm 1, 59 mm e 1,52 mm, respectivamente. Se os números não te dizem muita coisa de bate pronto, podemos te colocar em perspectiva: são dimensões próximas de um Porsche Cayman – na verdade, o esportivo alemão é 2 cm mais longo. Peso? Apenas 986 kg com fluidos (exceto combustível). O peso seco é de ridículos 957 kg. É o mesmo que o mais leve dos populares brasileiros – e exatos 152 quilos a menos que o McLaren F1.
Em tamanho, aliás, o T.50 também é bem próximo do próprio McLaren F1 – um carro, como já dissemos, feito 30 anos atrás. Gordon Murray rejeita a ideia de que os supercarros precisam ser grandes, pesados e absurdamente potentes. Assim, no espectro dos supercarros, o T.50 não poderia estar mais distante do Bugatti Chiron, por exemplo, que tem suas duas toneladas e 4,60 m de comprimento. (O entre-eixos de ambos, porém, é quase idêntico – são 2,71 m no Chiron.)
Como o McLaren F1, o T.50 usa um monocoque de fibra de carbono como principal componente estrutural – de acordo com a ficha técnica, o motor V12 Cosworth de quatro litros (já vamos falar dele) é semi-estrutural. Também como seu antecessor, o T.50 tem portas borboleta, que abrem para o alto e para a frente. E também possui compartimentos de bagagem nos flancos traseiros – acessíveis por duas portas asa-de-gaivota, e não pelas laterais como no F1. Eles acomodam, no total, 288 litros.
Tudo no carro reflete a busca obstinada de Gordon Murray pelo baixo peso. Carroceria e monocoque pesam, juntos, menos de 150 kg. O motor pesa 178 kg, sendo 60 kg mais leve que o motor do McLaren F1, e o câmbio manual de seis marchas da Xtrac é 10 kg mais leve que a caixa usada pelo F1. Cada um dos 900 parafusos de titânio foi pesado para garantir a menor massa possível, e até mesmo a caixa de pedais do T.50 – belíssimas peças usinadas – tem seus 300 g a menos que a caixa de pedais do McLaren. Cada um dos faróis de LED pesa 2,1 kg, incluindo o sistema de arrefecimento com dissipador de calor e ventoinha.
Toda esta comparação com o McLaren F1 não é só para colocar a gente em perspectiva – o próprio Murray diz que o T.50 é como um McLaren F1 melhorado, sem restrições, feito exatamente como ele gostaria que o carro fosse. Algo que só é possível com um engenheiro e designer trabalhando por si mesmo, para si mesmo, sem precisar responder a ninguém.
Isto também fica evidente no interior, que emula exatamente o mesmo layout do cockpit do McLaren F1 – três lugares, garantindo que o motorista, sentado ao centro, tenha a ergonomia perfeita – pedais perfeitamente alinhados e tudo ao alcance das mãos. O console de fibra de carbono exposta fica do lado direito, com a alavanca de câmbio emoldurada por uma placa de titânio (que só tem 7,8 gramas) e a parte inferior vazada, deixando exposto seu mecanismo.
O quadro de instrumentos tem duas telas digitais ladeando um enorme conta-giros físico, com um tradicional ponteiro sobre uma escala. E, segundo Murray, não há nada de plástico no carro: é tudo alumínio, fibra de carbono e alcantara. Até mesmo o ponteiro do conta-giros é de alumínio. E, novamente a preocupação com a qualidade de vida a bordo e o baixo peso se entrelaçam: o GMA T.50 tem um sistema de áudio Arcam com dez alto-falantes que tem a metade do peso do sistema da Kenwood usado pelo McLaren F1.
E ainda nem falamos do motor, a obra de arte feita em parceria com a Cosworth e, segundo a Gordon Murray Automotive, completamente inédito. Trata-se de um V12 com bloco e cabeçotes de alumínio, bielas e válvulas de titânio (quatro por cilindro), cárter seco e sistema de indução “ram-air”, com um scoop no teto.
O V12 entrega 663 cv a 11.500 rpm e 47,6 kgfm de torque a 9.000 rpm (dos quais 71% aparecem já às 2.500 rpm), mas isto não é tudo – e estes dados sequer são os mais impressionantes. O que realmente nos deixa boquiaberto são coisas como a redline de 12.100 rpm, atingida em 0,3 segundo – acompanhada do fato de que o motor ser capaz de ganhar 28.400 rotações por segundo (algo que o próprio Murray admite ter dificuldades de processar); ou a potência específica de 166 cv/l – a melhor da história em motores naturalmente aspirados. Um carro de 663 cv não é chocante por si só, mas quando falamos em um motor V12 naturalmente aspirado entregando estes números em 2020, em um carro que pesa 986 kg e, consequentemente, dispõe de 672 cv por tonelada (ou 1,48 kg/cv), aí sim ficamos embasbacados.
O outro grande trunfo do T.50 é o “ventilador” na traseira – a evolução de uma ideia que foi banida da Fórmula 1 após seu uso no Brabham BT46, de 1978, cujo design foi assinado por Murray.
O engenheiro aponta que no T.50 o projeto é muito mais sofisticado. A ventoinha, no caso, acumula algumas funções diferentes. Na parte aerodinâmica, ela trabalha em conjunto com os enormes difusores traseiros para impedir o estol aerodinâmico (a perda de sustentação) que inevitavelmente ocorreria um um desenho tão agressivo – sem ela, os difusores precisariam ser bem mais modestos na curvatura. Para isto, ela utiliza em parte o princípio da ventoinha do Brabham BT46, o “fan car” projetado por Gordon Murray no final da década de 1970, porém aplicado aos difusores.
O sistema aerodinâmico atua em seis modos: Auto, Braking, High Downforce, Streamline e V-Max Boost. Dois deles são automáticos (Auto e Braking), e os demais são selecionáveis pelo motorista.
O modo Auto é o ajuste padrão do carro, sem o uso dos sistemas ativos para aumentar o downforce. O modo Braking, como diz o nome, é ativado durante as frenagens em situações específicas, acionando os spoilers traseiros em sua inclinação máxima (mais de 45°) para dobrar o downforce nas frenagens – e, segundo a GMA, reduzir em dez metros a distância necessária para ir de 240 km/h a zero. Em uma frenagem de emergência, o modo Braking se sobrepõe a qualquer outro modo que esteja ativo no momento.
O modo High Downforce ajuda na aderência – nele, os spoilers se levantam a cerca de 10 graus e a ventoinha gira para aumentar o downforce em 50%. Já o modo Streamline faz o oposto, reduzindo o downforce em 12,5% para aumentar a velocidade em linha reta e reduzir o consumo de combustível. Para isto, os spoilers traseiros inclinam-se em -10°, as válvulas dos difusores se fecham parcialmente e a ventoinha opera em alta velocidade, criando uma “long tail virtual” e produzindo empuxo de 15 kg.
Por fim, o modo V-Max Boost emprega as mesmas medidas do modo Streamline, mas lança mão de outro segredo do carro: o gerador de 48V ligado ao motor, que passa a mover a ventoinha. Combinado à indução ram-air, o modo V-Max libera cerca de 30 cv a mais para o V12, que chega aos 700 cv por um período limitado. Embora o gerador pese cerca de 20 kg, este acréscimo de massa é compensado pelo fato de ele funcionar como motor de partida e alternador, alimentando também o sistema de ar-condicionado e outros componentes elétricos do carro. Como cereja do bolo, o gerador também ajuda o V12 a enquadrar-se nas leis para emissões de poluentes. Sem turbos, sem baterias, sem downsizing – mais uma lição que as fabricantes de supercarros poderiam aprender com Gordon Murray.
Existem outros detalhes aerodinâmicos interessantes além do “ventilador”. Na dianteira, as entradas de ar do para-choque levam ar fresco para os radiadores, de forma semelhante ao que fazem no F1 – em formato eles são muito parecidos, inclusive. E eles não ficam em uma moldura escurecida no para-choque dianteiro por acaso: Murray explica no vídeo abaixo (feito com o lendário Harry Metcalfe, da Evo Magazine) que tentou esconder os dutos e recortes aerodinâmicos, ou ao menos deixá-los não tão aparentes. Um exemplo são os dutos abaixo dos faróis, que são ligados ao ar-condicionado/aquecedor e passam quase despercebidos. Ou os dutos de arrefecimento dos freios, que ficam ocultos sob o para-choque dianteiro.
A seção dianteira ainda guarda outras surpresas – como o recorte atrás dos para-lamas dianteiros, que serve para aliviar a pressão aerodinâmica nas caixas de roda. Murray explica que já queria colocá-los no McLaren F1, mas as técnicas para moldagem de fibra de carbono evoluíram bastante desde a década de 1990 – na época, simplesmente não era possível.
O T.50 usa suspensão por braços triangulares sobrepostos na dianteira e na traseira, com componentes de alumínio forjado e amortecedores inboard com acionamento por arranjo “pushrod”. Os freios Brembo têm discos de carbono-cerâmica nas quatro rodas, com 370×34 mm na frente e 340×34 mm atrás e mordidos por pinças de seis pistões e quatro pistões, respectivamente. As rodas são de alumínio, de 19×8,5 polegadas na frente e 20×11 polegadas atrás, calçadas com pneus Michelin Pilot Sport 4S. Medidas dos pneus: 235/35 na dianteira e 295/30 na traseira. Novamente, nada escandaloso, nada além do necessário.
Gordon Murray não deu números de aceleração e velocidade máxima, por enquanto. Isto não nos surpreende – o engenheiro já disse algumas vezes que marcas como estas não são o foco do T.50, mas sim o condutor.
Serão 100 os felizardos que poderão comprar o GMA T.50 – e cada um vai pagar £ 2,36 milhões por ele. O que, em conversão direta, dá cerca de R$ 16 milhões na cotação atual. Claro, a conversão é só por curiosidade – embora Gordon Murray não diga quantos carros já foram reservados, não duvidamos que todos eles o tenham sido. Estas 100 pessoas, segundo o próprio Murray, vão ter “a mesma experiência do McLaren F1, porém melhorada em todos os aspectos”.
Em 2014 Gordon Murray veio a público para se queixar da falta de sentido nos hipercarros modernos e disse o seguinte:
“Vejo estes carros mais como um exercício técnico. Não acho que o McLaren P1 não seja um bom carro, mas ele está a 180 graus da direção do McLaren F1. A coisa mais importante nele, era que você podia levá-lo para a pista, e ainda poderia passear com ele por aí. Ainda vou fazer mais um supercarro, e não faria se não fossem estes monstros híbridos de uma tonelada e meia. Eu teria parado no F1, mas agora há algo a se provar: você ainda pode fazer um grande carro com um motor de combustão interna e engenharia pura.”
O T.50 portanto, não é apenas a obra-prima de Gordon Murray, o gran finale de seus supercarros. Ele é uma lição para um mundo cada vez mais distraído por frivolidades e menos concentrado no que é essencial. Obrigado, sr. Ian Gordon Murray.