Você certamente conhece a fama do Renault Gordini vendido no Brasil. “Leite Glória” era seu apelido, por conta do slogan do leite em pó – “desmancha sem bater”. A comparação um tanto maldosa fazia alusão à qualidade de construção do sedã de projeto francês e fabricação brasileira, por parte da Willys-Overland. De fato, não era um um carro extremamente robusto, mas era no mínimo tão valente quanto o Fusca, líder de vendas no País e seu principal rival.
Em 1964, há exatos 60 anos e apenas cinco anos depois de seu lançamento, a Willys decidiu que era preciso fazer algo para melhorar esta faceta do Gordini diante do público. Como? Colocando o carro para rodar 50.000 km ininterruptos em Interlagos, parando apenas para abastecer e revezar pilotos.
O Renault Gordini foi lançado no Brasil em 1959 – de início, como Renault Dauphine. Ele tinha um motor quatro-cilindros com de apenas 845 cm³, com comando no bloco, duas vávulas por cilindro, carburador de corpo simples, taxa de compressão de 7,7:1 e humildes 26 cv a 4.000 rpm, moderados por um câmbio manual de três marchas. O conjunto ficava todo atrás, como no antecessor 4CV (o famoso “rabo quente”), deixando a dianteira livre para ter um porta-malas.
O lançamento do Renault Gordini de fato só aconteceu em 1962. O nome era emprestado da preparadora fundada em 1946 por Amédée Gordini, que construía monopostos de corrida com mecânica Renault e, com o tempo, passou a preparar seus modelos de rua para agradar quem queria algo mais apimentado. A Gordini oferecia, inclusive, uma versão preparada do Renault Dauphine na França.
No Brasil, a vantagem do Gordini sobre o Dauphine estava nos 6 cv a mais do motor totalizando 32 cv, e no câmbio de quatro marchas que oferecia melhor aproveitamento de “toda aquela força”. O aumento de potência foi conseguido com novos coletores de admissão e escape, comando de válvulas e carburador retrabalhados e mais taxa de compressão. Eram 40 cv brutos, exaltados em propagandas com o slogan “40 hp de emoção”, que mostravam o carro em situações de uso pesado.
No fim das contas, o nome Gordini foi o que pegou, e até mesmo o Dauphine acabou ficando conhecido como Gordini. Por mais que não tenha chegado a vender mais que o Fusca, o franco-brasileiro era um concorrente respeitável. E a campanha bolada pelo publicitário Mauro Salles, que cuidava das propagandas da Willys, mostrava que o Gordini aguentava mais do que a aparência e a reputação faziam crer.
Sua ideia era a seguinte: colocar um Gordini para encarar uma prova de resistência no anel externo do antigo traçado de Interlagos (que, obviamente, não era antigo). O circuito inaugurado em 1940 tinha 7.823 metros de extensão naquela época, e sua infraestrutura ainda era relativamente precária — como em qualquer circuito da época sequer havia zebras e onde acabava o asfalto havia um desnível e mato. Ou barrancos. Ou cercas.
A prova consistia em rodar nada menos que 50.000 km seguidos com o carro, que só faria paradas para que os pilotos revezassem ao volante, os pneus fossem calibrados ou trocados, o tanque fosse abastecido com gasolina e que o óleo do motor e a água do radiador fossem completados.
Para conduzir o carro, uma seleção de pilotos de alto nível, a maioria contratada pela equipe Willys: Bird Clemente, Chiquinho Lameirão, Carol Figueiredo, Geraldo Meirelles, José Carlos Pace, Luiz Pereira Bueno e Wilsinho Fittipaldi. Além deles, foram convidados Danilo Lemos, Vitório Andreatta e Vladimir Costa.
A largada aconteceu no dia 27 de outubro de 1964. O único carro na pista era um Gordini bege, escolhido ao acaso e apresentado a representantes da Renault, da Willys e do Autódromo de Interlagos, que autografaram o carro na linha de montagem antes que ele fosse levado para o circuito. Sem modificação alguma, o carro partiu.
Logo nas primeiras horas, o pequeno Gordini enfrentou chuva e asfalto molhado, que chegavam a aumentar seu tempo em seis segundos – da média de 1:52 para 1:58. No entanto, seu pior obstáculo veio no dia 31 de outubro – coincidentemente, o Dia das Bruxas, que ainda não era lembrado no Brasil como é hoje.
Bird Clemente se aproximou da Curva 3, que hoje não faz mais parte do traçado, coberta por cascalho e resíduos da chuva, perdeu o controle e acertou o barranco logo depois da pista. Ele estava em sua 3.217ª volta.
A carroceria ficou extremamente danificada mas, de acordo com o relato da própria Willys na época, sua mecânica permaneceu intacta. Com isto, o carro foi reparado na medida do possível e seguiu com o percurso, que foi completado no dia 17 de novembro de 1964. E não foram só 50.000 km rodados: foram exatamente 51.233 km. A teimosia do carro em continuar rodando mesmo depois do acidente lhe renderam o apelido de “Willys Teimoso”.
Com o tom exaltado típico das propagandas do Dauphine, a Willys fez questão de frisar que, ao permanecer rodando por oito dias consecutivos, o Gordini já havia quebrado seu primeiro recorde. Continuando na pista para percorrer 51.000 km seguidos em Interlagos a uma velocidade média de 97 km/h, o carro conquistou, no total, nada menos que 133 recordes de distância e velocidade média: 54 recordes locais, 54 recordes nacionais e 25 recordes internacionais.
Muito antes do Kwid: os (sensacionais) carros depenados do passado
Naquele mesmo 1964, o Renault Dauphine ganhou uma versão de baixo custo, destinada a aproveitar as condições de compra facilitadas pelo governo para carros de até Cr$ 4.000.000 (cerca de R$ 70.000). Sem cromados nos para-choques, sem revestimentos no interior e com apenas uma lanterna na traseira (leia mais sobre ele aqui), que cumpria o papel de luz de posição e luz de freio, o Gordini mais barato de todos custava pouco mais da metade do preço de um Gordini, e foi batizado “Teimoso” como homenagem ao Gordini recordista.
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