Oficialmente “Velozes e Furiosos” (The Fast and The Furious, 2001) foi inspirado na história real de Rafael Estevez, um descendente de dominicanos que fazia parte de uma gangue de corredores de rua de Nova York nos anos 1990.
O que pouca gente sabe, é que “Velozes e Furiosos”, ou “The Fast and The Furious”, é o nome de um filme lançado em 1954. Os produtores de Velozes e Furiosos de 2001 tiveram até mesmo que comprar os direitos de uso do título para poder batizar seu filme com este nome. E o que menos gente ainda sabe, é que “Fast and Furious” é o nome de outros dois filmes além deste dos anos 1950.
Toretto do mundo real: conheça o cara que inspirou o primeiro “Velozes e Furiosos”
O primeiro deles é um filme da era do cinema mudo, lançado em 1927 e traz algumas semelhanças com o enredo de “Velozes e Furiosos” de 2001. O filme começa com um caso de road rage entre um magnata americano do petróleo, o sr. Smithfield, que viaja com sua filha Dorothy, e um jovem britânico chamado Tom Brown. No entrevero, o carro de Tom capota e, durante o socorro, o britânico sai ileso, e fica fascinado por Dorothy.
O sr. Smithfield, depois de socorrer Tom e discutir com o rapaz, deixa um cartão de visitas e segue a viagem, o que significa que agora Tom tem o contato da moça. Extasiado, Tom nem percebe estar no meio da rua e acaba atropelado. Ele sobrevive e recebe recomendação médica para se recuperar em um local de clima mais ameno, então decide ir para os EUA, na esperança de encontrar Dorothy.
Ao chegar nos EUA, ele acabou se envolvendo em uma discussão de trânsito com o sr. Smithfield, sem reconhecê-lo, e seguiu para a casa de Dorothy. A moça, contudo, havia saído para visitar o ateliê do escultor Marcel Dumont, a quem havia encomendado uma escultura do piloto George K. Billings em seu carro. O próprio Billings seria o modelo da escultura porque havia sido contratado pelo sr. Smithfield para correr em sua equipe.
Billings, contudo, cancela o compromisso por questões pessoais e Dumont fica sem um modelo para sua escultura. Tom, que pretende conquistar Dorothy a qualquer custo, se oferece para ocupar o papel de Billings — não apenas como o modelo, mas também como piloto, passando-se pelo próprio Billings, cuja fisionomia não era conhecida pelos Smithfields.
Aqui já temos duas semelhanças com o “Velozes e Furiosos” moderno: uma rivalidade que dá origem a uma relação amorosa, e um protagonista que usa uma identidade falsa para atingir seu objetivo.
O problema é que Tom desenvolveu um trauma psicológico que o impede de se aproximar dos carros. Dorothy pensa estar apaixonada pelo piloto Billings e usa seu envolvimento com ele para convencê-lo a disputar a corrida. Tom consegue se manter afastado do comprometimento para não revelar sua verdadeira identidade, mas, cada vez mais envolvido com Dorothy, ele se vê forçado por ela a disputar a corrida.
Com ajuda de Dumont e alguns estimulantes, Tom consegue pilotar o carro e vence a prova, mas precisa revelar sua verdadeira identidade a Dorothy para poder se casar com ela. E como este é um filme dos anos 1920, o final é um tanto acelerado: Dorothy aceita a situação e se casa com Tom. Ninguém fugiu para o México.
Depois desta comédia romântica para tataravós, o filme seguinte a usar o título “Fast and Furious” foi lançado em 1939 e era o primeiro de uma trilogia que o usava o tema “fast” em seus títulos — “Fast and Furious”, “Fast Company” e “Fast and Loose” — e tinha como protagonistas um casal de detetives de Nova York.
Desta vez o filme nada tem a ver com carros. O casal apenas desvenda um caso de corrupção e assassinatos em um roteiro cheio de clichês até mesmo para a época — com elementos como evidências que apontam para um inocente e um culpado carismático que convence todos de sua inocência, falsas acusações e novos assassinatos como queima de arquivos. Tanto que o filme foi espinafrado pela crítica após o lançamento. Não o encontrei online e, sinceramente, nem vale a pena assistir se você não for um cinéfilo obsessivo.
O terceiro “Velozes e Furiosos” tem uma tradução um tanto equivocada como “Velozes e Furiosos”, porque trata da história de um homem que foi preso por um assassinato que não cometeu e se envolve com uma corredora de carros amadora durante uma corrida.
O filme começa com cenas de um Jaguar XK120 modificado para corridas em uma estrada sinuosa. As cenas são aceleradas, bem ao estilo dos anos 1950. Neste carro, está uma jovem mulher chamada Connie. Ela é uma piloto amadora a caminho de uma corrida que terminará no México.
Ao parar em um café à beira da estrada, ela encontra com Frank Webster, um ex-motorista de caminhão que fora preso por um assassinato que não cometeu e por isso fugiu da cadeia. Durante sua fuga, ele se torna assunto das notícias de rádio e acaba descoberto por dos clientes do café. Encurralado, ele dá um golpe no homem e sequestra a garota, vislumbrando uma forma de fugir para o México e encontrar sua liberdade.
O restante do filme, pouco mais de 50 minutos, se resume à fuga do homem a bordo do Jag e ao lado da garota. Ela inicialmente se mostra durona, mas por fim acaba se apaixonando pelo fugitivo que a sequestrou. Em pouco tempo a polícia consegue a descrição do casal e do carro e passa a apertar o cerco.
O tempo, contudo, foi suficiente para que Frank e Connie chegassem ao local da corrida, e começassem os últimos preparativos para largar. Uma regra de última hora impede que mulheres participem da prova, e por isso Frank acaba abandonando a garota em uma cabana enquanto trilha seu caminho rumo ao México. No fim, a garota acaba convencendo-o a se entregar e enfrentar o julgamento com a certeza de que ele será absolvido. Webster se entrega e o filme acaba.
Apesar de parecer um resumo rápido, a trama do filme é assim rasa mesmo, e é provavelmente por isso que você nunca ouviu falar dele. Mas talvez você tenha achado essa história familiar. Especialmente se você é daqueles que assistiam à Sessão da Tarde no fim dos anos 1990 — como veremos mais adiante.
Os títulos
No Brasil todo filme da franquia é chamado “Velozes e Furiosos”, seguido pelo número do filme na sequência da franquia e, às vezes, um subtítulo. Os títulos originais, contudo, trazem conceitos diferentes.
Veja o caso do primeiro filme da franquia, de 2001 (que precisou comprar os direitos do título do filme de 1954): o título original é “The Fast and The Furious” nos dois filmes. Em inglês, o artigo definido “the”, indica que se conhece a identidade daquilo que é identificado pelo substantivo. Portanto a ideia expressa pelo título do filme de 1954 é apresentar “a” veloz (a moça corredora) e “o furioso” (o fugitivo acuado, que fará de tudo para escapar).
O título original do primeiro “Velozes e Furiosos”, de 2001, também parece ter a intenção de transmitir a ideia de que há um protagonista veloz e outro furioso. Sua tradução literal seria “o veloz e o furioso” ou “os velozes e os furiosos” — para ser traduzido como “Velozes e Furiosos” o título deveria ser “The Fast and Furious”.
A ideia expressa na tradução “Velozes e Furiosos” usada no Brasil se aplica melhor ao quarto filme, intitulado apenas “Fast and Furious” — ou seja: não há o artigo para definir quem são exatamente os velozes e furiosos. A ideia é dizer apenas que eles são velozes e também furiosos. Note como essa sutileza da tradução tirou a noção da evolução dos enredos. No primeiro filme havia os velozes e havia os furiosos, mas no quarto filme todos eram velozes e furiosos — Brian O’Conner já estava fora da polícia àquela altura.
O terceiro filme também passa a ideia das duas personas (“o veloz e o furioso”), mas agora no drift de Tóquio. Já o segundo filme, “2 Fast, 2 Furious” tem um trocadilho intraduzível (“too fast, too furious”), que expressa a ideia de “muito velozes, muito furiosos”.
O oitavo filme também traz um trocadilho intraduzível: “Fate of The Furious” é traduzido literalmente como “o destino dos furiosos”, mas a palavra “fate” tem em sua pronúncia o som do número oito em inglês (“eight”), então o filme foi intitulado F8 (se lê “feight”, com o mesmo som de “fate”).
Note também que, após o quinto filme, o título original abandonou “Fast” para manter apenas “Furious”, consolidando-os como uma franquia de ação. Somente agora, no filme final, o nome Fast volta ao cartaz (Fast X).
Nomes diferentes, histórias iguais
“Velozes e Furiosos” de 1954 não influenciou nenhum dos dez filmes da franquia “Velozes e Furiosos”. Ele apenas cedeu o nome para algo que, originalmente, sequer seria uma franquia — apenas um filme inspirado pelos corredores de rua (ou rachadores…) da Los Angeles dos anos 1990.
O filme, contudo, teve um remake um pouco menos desconhecido, chamado “Rotação Máxima” (The Chase, 1994), exibido algumas vezes na Sessão da Tarde na virada dos anos 1990 para os 2000.
A diferença é que em “Rotação Máxima” a garota não pilota carros — em vez do Jag XK120 ela usa um BMW 325i com calotas… — e que no final, ambos conseguem fugir e acabam curtindo a vida nas praias mexicanas. Ah, e se você curte rock americano dos anos 1980 e 1990, vai curtir as participações especiais do filme: Henry Rollins (Black Flag e Rollins Band) como policial, e a dupla Flea e Anthony Kiedis (Red Hot Chilli Peppers) como dois malucos em um Ford Bronco.
Agora… o fato de não ter relação alguma com o filme de 1954 não significa que “Velozes e Furiosos” de 2001 não tenha seu roteiro muito parecido com um outro filme antigo. “Outro” não: outros. O primeiro é “Atraídos Pelo Perigo” (No Man’s Land, 1987). Coincidentemente o ator principal também é Charlie Sheen e a história tem semelhanças demais com “Velozes e Furiosos”.
Em “Atraídos pelo Perigo”, Benjy Taylor (D.B. Sweeney) é um policial que precisa investigar uma série de roubos de Porsche 911 na região de Los Angeles. Em “Velozes e Furiosos” Brian O’Conner é um policial que precisa investigar uma série de assaltos a cargas nas estradas da região de Los Angeles.
Benjy se infiltra em uma concessionária Porsche graças ao seu vasto conhecimento sobre a mecânica dos esportivos da marca. Em “Velozes”, Brian O’Conner se passa por um rachador bom de braço e que manja de motores. Ambos ganham a confiança do principal suspeito — Benjy (Charlie Sheen) por consertar o carro do cara, e O’Conner por salvar Dom Toretto da polícia. Nos dois filmes o policial infiltrado passa a participar dos negócios ilegais dos suspeitos, e acabam conhecendo a irmã dos caras, se envolvem afetivamente com elas e acabam muito mais envolvidos com os criminosos.
A diferença, felizmente, é o final do filme: O’Conner livra a cara de Toretto, enquanto Benjy Taylor troca tiros com seu amigo/suspeito e acaba matando-o. Impossível imaginar Brian O’Conner trocando tiros com Dom Toretto, não?
O segundo é Caçadores de Emoção (Point Break, 1991). Você certamente conhece: é um dos grandes clássicos da década e inspiração da “geração saúde” daquela década. Keanu Reeves é Johnny Utah, um novato do FBI que acaba infiltrado em um grupo de surfistas para investigar uma quadrilha que assalta bancos conhecida como “The Presidents”, por usarem máscaras dos presidentes americanos anteriores ao filme.
Como Brian O’Conner, Utah aprende a surfar, usa sua relação com uma garota para se aproximar do grupo, entra em conflito com alguns membros mais desconfiados, mas acaba conquistando a confiança do líder Bodhi (um Toretto surfista interpretado por Patrick Swayze) por demonstrações de lealdade e boas intenções.
Ao longo de seu envolvimento, ele é pressionado pelo chefe e pelo parceiro policial para trazer resultados, exatamente como Brian O’Conner, e acaba fazendo uma aposta fracassada ao apontar uma gangue rival como a responsável pelos assaltos. Exatamente como Brian fez com a gangue japonesa de Johnny Tran.
Quando finalmente descobre que seu amigo é o assaltante, Utah acaba envolvido na ação, porém como membro do assalto — enquanto O’Conner tenta impedir a ação de Toretto e seus comparsas. Nos dois filmes a ação dá errado: Utah e O’Conner acabam revelando sua verdadeira identidade, causando repulsa da garota e do líder.
Aqui os dois filmes divergem novamente: Bodhi sequestra a namorada de Utah, mas Dom apenas afasta Mia de O’Conner. Algum tempo depois, os agentes se encontram com seus amigos traídos para um último diálogo, mas com uma diferença: Utah vai prender Bodhi, que sonhava em surfar a maior onda de todas, enquanto o O’Conner tenta se explicar para Toretto.
O final dos filmes é basicamente o mesmo: Utah deixa Bodhi encontrar-se com seu destino, surfando a onda gigante e, eventualmente, morrendo por desafiar o mar. O’Conner, depois do racha, entrega seu carro e deixa Dom Toretto escapar.
Se você já conhece o filme, assista novamente comparando-o com Velozes e Furiosos: até mesmo o bar em que Utah aborda a garota é o mesmo em que Toretto e O’Conner vão comer camarão com fritas depois do racha com a Ferrari F355 preta, o “Neptune’s Net”, em Malibu, Califórnia. Veja Utah chegando ao bar no início do vídeo abaixo (o clipe que inicia com o Mustang estacionando):
Note que até a tomada da chegada no bar é muito semelhante em “Velozes e Furiosos”:
Não por acaso, “Velozes e Furiosos” influenciou toda a geração de jovens entusiastas dos anos 2000 como “Caçadores de Emoção” influenciou os surfistas e skydivers dos anos 1990. Era o retrato de uma cultura que já existia localmente e que foi projetado para uma audiência global pelo sucesso de ambos os filmes.
Washington Olivetto, o famoso publicitário brasileiro, diz que “a melhor forma de ser global é ser o mais local possível”. Foi mostrando as cenas locais que os entusiastas de todo o mundo se identificaram ao seu modo, e transformaram ambos os filmes em “cult movies”. Eles deixam de ser mero entretenimento para se tornar um pedaço da cultura.
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