Há alguns meses, na ânsia de experimentar novas motos e sem acesso a elas, aproveitei uma promoção da PlayStation Store e comprei Ride 3, um simulador na pegada de Gran Turismo – ou seja, com um pezinho no arcade –, só que com motos. É um jogo recente, lançado em 2018, que por alguma razão passou por baixo do radar.
O jogo foi desenvolvido pela Milestone srl, estúdio italiano fundado há quase 30 anos que hoje é o maior da Itália e que, ao longo de sua vida, dedicou-se exclusivamente a games de corrida e simuladores.
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Ride 3, lançado em 2018, foi considerado pela imprensa como um game de motos mais acessível – no sentido de que os controles, a interface e a dinâmica são mais amigáveis para jogadores casuais e novatos. A recepção da imprensa foi morna, elogios aos gráficos e à variedade de modos de jogo acompanhadas de críticas à jogabilidade – especialmente à falta de sensação de velocidade e à dinâmica um tanto estéril das motos. Mas dá para se divertir: é mesmo um jogo bonito, há uma boa quantidade de pistas – incluindo Nürburgring Nordschleife e vários circuitos de rua da Europa – e, de forma geral, uma experiência agradável. Há vários ângulos de câmera, incluindo uma visão em primeira pessoa muito bem feita e imersiva.
Resumindo: o jogo é bacana, e se não me engano paguei menos de R$ 20 por ele. Mas, depois de algumas horas, me dei conta de que o conceito da série Ride – cujo primeiro game foi lançado em 2015 – não é exatamente inovador. Claro, há alguns recursos modernos, como um modo online e um sistema de rewind (como em Forza, no qual você pode literalmente voltar no tempo para refazer uma curva ou evitar um acidente). Mas um simulador de motos com física mais acessível, à la Gran Turismo? Ora essa, os próprios criadores de Gran Turismo já fizeram isso. E o resultado foi o incompreendido Tourist Trophy – que, sob diversos aspectos, pode mesmo ser considerado um “Gran Turismo de moto”.
Tourist Trophy foi lançado em 2006, dois anos depois de Gran Turismo 4, e utiliza a mesma engine – o que, nesse caso, significa que a física do jogo, vários modelos 3D dos cenários e outros elementos são compartilhados entre os dois títulos.
Obviamente a inspiração para o nome do game foi o Tourist Trophy da Ilha de Man, uma das corridas de motos mais tradicionais (e brutais) do planeta, realizada em um gigantesco circuito de rua (o Snaeffel Mountain Curso) com trechos onde é fácil passar dos 300 km/h com a moto certa.
O anúncio de Tourist Trophy, em 2005, foi recebido com entusiasmo pelos fãs de Gran Turismo. E quando o game foi lançado em 2006 – curiosamente, primeiro na China, depois no Japão e finalmente no resto do mundo – as expectativas não foram frustradas. Ao contrário.
Quase tudo o que havia feito de Gran Turismo um sucesso estava lá. A seleção impecável e variada de motos, a quantidade generosa de circuitos com diferentes variações, disputas arcade single player, multiplayer e time trials, e um robusto modo carreira no qual você começava de baixo, com motos menores e mais fracas, e ia ganhando novas máquinas à medida em que vencia corridas e campeonatos.
Só não havia uma moeda do game, com os Credits de Gran Turismo – em vez disso, as motocicletas eram prêmios por vitórias em corridas e bom desempenho nos testes para conseguir as licenças. No total, eram 135 motos de dez fabricantes diferentes – as quatro grandes do Japão (Yamaha, Honda, Suzuki e Kawasaki) concentravam a maior parte delas, claro, mas havia opções BMW, Aprilia, MV Agusta, Ducati, Triumph, a saudosa Buell. E também havia motos de duas preparadoras japonesas: Moriwaki e Yoshimura. Havia opções com deslocamento de 124 cm³ a 1.670 cm³, com exemplares de 1961 a 2007. Uma seleção para fã nenhum botar defeito.
Como acontecia em Gran Turismo, as motos eram modeladas com perfeição e estavam entre as representações mais fiéis do PlayStation 2 – e o modo fotografia, exatamente como em Gran Turismo 4, ajudava a tirar proveito disso. Além de salvar as imagens em um pen drive, você também podia imprimi-las usando uma impressora Epson (desde que ela fosse compatível – havia um guia para te ajudar a descobrir).
Agora, se as opções de motos agradavam os fãs das duas rodas, as pistas aqueciam o coração de qualquer fã de Gran Turismo. Quem sempre havia sonhado em percorrer Trial Mountain, Grand Valley ou High Speed Ring sobre duas rodas, poderia fazê-lo – bem como Autumn Ring, Deep Forest, Mid-Field Raceway, Seattle Circuit e o noturno Special Stage Route 5.
Havia também circuitos do mundo real – Fuji Speedway (dos anos 80, 90 e 2000), Laguna Seca, Suzuka, Tsukuba e Motegi estavam presentes. O grande pecado era não existir uma versão virtual do Snaeffel Mountain Course, justamente locação da corrida que inspirou o nome do game. Nem tudo é perfeito…
Apesar dessa falha, porém, Tourist Trophy era um game bem completo. O modo carreira, chamado TT Mode, era onde estava boa parte da diversão – além de te fazer sentir-se como um piloto de verdade, começando por baixo e aprimorando suas habilidades, o modo carreira era o segredo para liberar mais motos e circuitos no arcade.
O comportamento dinâmico das motos era reproduzido com bastante fidelidade, incluindo a possibilidade de empinar a dianteira ou a traseira caso o projeto da moto permitisse – mas só no modo de dificuldade “Normal”, que também era um pouco mais tolerante com erros e frenagens tardias. No modo “Professional”, a coisa ficava bem mais séria – os wheelies e stoppies (as empinadas de traseira nas frenagens, que no Brasil alguns chamam de “RL”) eram desativados, e o jogador podia usar o Dualshock 2 para posicionar o corpo do piloto sobre a moto de diferentes formas, jogando o peso mais para a frente ou mais para trás, de acordo com o que a situação pedisse.
Claro que nem tudo era perfeito. Os que estavam acostumados com Gran Turismo acharam o game difícil demais, mesmo no modo Normal – o que tem mais a ver com a natureza das motos e as diferenças de pilotagem em relação aos carros, do que com as características do game em si. Por outro lado, quem já estava acostumado com jogos de moto tinha críticas principalmente ao comportamento dos oponentes.
Isso porque a inteligência artificial carecia de nuances – ou os adversários faziam uma corrida perfeita, como só uma máquina pode fazer; ou cometiam gafes inexplicáveis, como frear cedo demais antes de uma curva e abrir uma brecha absurda para você. Curiosamente, os erros da IA jamais resultavam em tombos – talvez porque a Polyphony Digital não quisesse desenvolver um modelo de colisão com reações realistas a um choque entre pilotos.
Pesando defeitos e qualidades, o site Metacritic exibe a classificação Average para Tourist Trophy – “na média”, por assim dizer. Mas é fato que o IGN colocou o game entre as melhores simulações de 2006, o que ajuda a entender a proposta da Polyphony com ele.
Embora não tenha sido um sucesso estrondoso, Tourist Trophy conquistou uma base cativa de fãs, que desde o lançamento aguardam uma sequência. Já se passaram duas gerações do PlayStation desde então, acabamos de entrar na terceira, e o diretor Kazunori “Mr. Gran Turismo” Yamauchi nunca chegou a descartar a possibilidade – ele mencionou planos para começar a trabalhar em um TT2 em 2015, e novamente em 2018, mas todos sabemos que Gran Turismo Sport e seu foco em disputas online acabou tomando toda a atenção da desenvolvedora. O que é uma pena, porque um Tourist Trophy no PS5 certamente seria interessante, e com certeza os anos de evolução técnica fariam um bem danado à fórmula.