Em 1957 a Citroën lançou aquele que, talvez, seja seu modelo mais icônico: o Citroën DS. Mas nós não vamos falar dele — hoje não. Em vez disso, vamos dedicar este post ao carro que antecedeu o DS e trouxe inovações que foram essenciais para definir a cara do automóvel contemporâneo: o Traction Avant, que completa 80 anos em 2014.
Como você deve suspeitar, Traction Avant significa, literalmente, “tração na frente”. E você já deve ter ouvido falar que este era o grande diferencial do Citroën. Não é mentira, mas também não é toda a verdade: o Traction Avant colecionou pioneirismos e estava à frente de quase tudo em seu tempo.
Não é por acaso que as fabricantes francesas de automóveis têm fama de inovadores (ou esquisitas mesmo). André Lefèvbre, projetista do Traction Avant, trabalhava na Voisin, famosa pelo Aerodyne, foi para a Renault e depois para a Citroën. Com ele, levou para a marca do duplo chevron um projeto batizado de PV, ou Petite Voiture — que foi logo aceita pela companhia de seu xará, André Citroën.
O carro que Lefévbre apresentou a Citroën era um pequeno sedã de duas portas com motores de 1.000 ou 1.100 cm³ posicionados na dianteira, onde também ficariam a transmissão e as rodas motrizes. Na época, pouquíssimos fabricantes ousavam tirar das rodas traseiras a função de mover o carro — nem tanto por achar que era a maneira correta, mas também porque simplesmente era assim que todo mundo fazia. Entre as poucas marcas que investiam na tração dianteira estava a DKW, velha conhecida dos brasileiros.
Apesar de não ser o primeiro carro de tração dianteira do mundo — a honra vai para o Alvis FWD, de 1928 — o Traction Avant (ao lado dos DKW) foi um dos primeiros a fazer sucesso, e foi o primeiro carro do mundo a ter motor dianteiro, tração dianteira e construção com monobloco em aço — configuração adotada por virtualmente todos os automóveis modernos quase quarenta anos mais tarde. Mas toda história precisa de um começo.
Prejuízo ou investimento? Os dois
Antes de ser apresentado no Salão de Paris no dia 18 de abril de 1934, o Traction Avant custou muito dinheiro à Citroën — tanto à ponto de a marca declarar falência naquele mesmo ano e passar às mãos da Michelin, um de seus maiores credores. Dá para entender o motivo: todo o projeto, desde sua concepção até a apresentação do modelo final, durou apenas um ano e meio — algo impensável até mesmo com a tecnologia que temos hoje.
O tempo e o dinheiro investidos incluíram a demolição da antiga fábrica da Citroën em Paris e a construção da nova fábrica, que produziria o Traction Avant, além de um presunçoso banquete com 6.000 convidados que André Citroën deu para comemorar o término das obras, que se deram sem que a produção do Citroën Rosalie, modelo que o Traction Avant substituiu, fosse interrompida.
Mas tudo valeu a pena: uma pequena multidão se formou para ver o carro no Salão de Paris para ver o novo Citroën, e todos saíram de lá boquiabertos.
Tração à frente (de seu tempo)
Era um carro pequeno. Mesmo tendo saído maior do que o previsto, tanto nas dimensões quanto no deslocamento do motor, ainda era um carro bem pequeno para os padrões da época. Em vez de duas portas, como o projeto original previa, ele tinha quatro. E, em vez de um motor de 1.000 ou 1.100 cm³, o quatro-cilindros debaixo do capô deslocava 1,3 litro.
Mas o motor não era o maior atrativo do Traction Avant, e sim o que estava em volta dele: uma carroceria baixa, graças à construção do tipo monobloco, suspensão muito moderna para a época — independente com barras de torção na dianteira, além de eixo de torção na traseira —, freios com acionamento hidráulico em vez de cabos e, claro, motor e tração na frente.
O motor ficava atrás do eixo dianteiro, que na verdade era um transeixo, incorporando a transmissão manual de três marchas. Graças a este posicionamento, o carro tinha uma excelente distribuição e peso. Somada à suspensão moderna e à carroceria mais baixa, o carro tinha um comportamento dinâmico exemplar, bastante alardeado na publicidade impressa da época.
Aqui, um parêntese: apesar de o Citroën fazer história com seu monobloco, o pioneiro neste tipo de construção foi o Lancia Lambda, de 1922, que fez relativo sucesso até 1931. Contudo, ele ainda tinha tração traseira. O Traction Avant foi o primeiro a juntar o monobloco à tração dianteira.
A Citroën estava confiante no sucesso do Traction Avant que a produção começou logo no dia 19 de abril. As primeira unidades tinham alguns problemas nas juntas da transmissão e no circuito dos freios hidráulicos — reflexo da pressa com que o projeto foi levado a cabo, por pressão de investidores que queriam ver o carro pronto o mais rápido possível. Contudo, suas qualidades suprimiam os defeitos.
Uma delas era o motor 1.3 de 32 cv. Apoiado em coxins que, na verdade, eram molas helicoidais, ele tinha boa parte de sua vibração absorvida por elas em vez de ser transmitidas à cabine. Esta, por sua vez, era bem espaçosa, com assoalho plano — graças à configuração do conjunto motriz, que dispensava o túnel do eixo cardã que os carros de tração traseira tinham (quem já andou no banco traseiro de um Chevette sabe o quanto isso incomoda). Como o carro era bem mais leve e aerodinâmico do que seus contemporâneos, o motor também era bem econômico — o carro chegava a rodar 11 km com um litro de combustível, média excelente para a época.
A primeira leva do Traction Avant ainda não tinha este nome: era chamado de 7A — 7 era a quantidade de chevaux fiscaux, ou cavalos fiscais. Esta unidade de medida era feita com base em uma fórmula que levava em consideração, entre outros dados, o número de cilindros, o curso e o diâmetro dos pistões.
O câmbio de três marchas ficava atrás da grade (à frente do motor — era um transeixo, lembra?) e a alavanca ficava no painel, ao lado do volante. Tinha três marchas, sendo que as duas últimas eram sincronizadas, além da ré. A posição da alavanca se mostrou bastante eficiente e foi levada para outro Citroën icônico, o 2CV, lançado em 1948. Foi até testada uma caixa automática — projetada pelo engenheiro francês naturalizado brasileiro Dimitri Sensaud de Lavaud — mas, pouco confiável, foi descartada.
Evoluções
Desconsiderados os percalços, graças a sua concepção mecânica, o Traction Avant tinha uma dirigibilidade muito parecida com a dos carros atuais e bastante apreciada na época. Mas, apesar de bem recebido, o Traction Avant ganhou uma importante atualização apenas dois meses depois de lançado — e um novo nome: 7B. O motor, agora um 1.5, tinha três cavalos a mais e, finalmente, era capaz de levar o carro aos 100 km/h — meta imposta ao projeto desde o início, porém não cumprida no 7A.
As vendas começaram a ficar boas de verdade, e o carro ganhou várias versões em questão de meses: um conversível (Cabriolet, ou simplesmente Cab’Trac), um cupê (Sport) e até uma perua (Combi) — esta última muito utilizada por taxistas e empresas que a convertiam em limusine. O conversível e o cupê se valiam do “banco da sogra”, que era revelado quando se abria um compartimento acima do porta-malas. Este, por sua vez, era acessado rebatendo-se o estepe, em uma engenhosa solução.
O cupê ficou conhecido como “Faux Cabriolet” (“conversível falso) pelo desenho do teto, que lembrava o de uma capota de lona
Antes do fim do ano, mais um modelo foi lançado — o 11A, mais largo e mais comprido e com a opção de entre-eixos mais longo, capaz de levar até 9 pessoas, conhecida como Familiale. O motor teve a capacidade aumentada para 1,9 litro e era capaz de fazer o carro acelerar até os 105 km/h. Além disso, o 7B dava lugar ao 7C, com motor de 1,6 litro — e estreava a denominação Traction Avant.
Em 1935 foi apresentada uma versão com a carroceria do 7C e o motor do 11A. Era o 11BL (de légère, ou “leve”). O 11A passava a se chamar 11B. Também era introduzida a variação Comerciale — na prática, uma Familiale com tampa traseira hatchback e sem as últimas fileiras de bancos.
Nos anos seguintes, o carro passou por poucas mudanças — até 1938, quando finalmente recebia um motor capaz de aproveitar toda a excelência dinâmica do Traction Avant: um seis-em-linha de 2,9 litros cuja potência era um salto de 76 cv a 3.800 rpm, alimentado por um carburador Solex de corpo duplo. Fez muito sucesso no mundo todo, mas em especial na Inglaterra, onde era montado na cidade de Slough e recebeu o apelido de “The Big Six”.
Recebendo a denominação 15 Six, o modelo de seis cilindros teve outro papel bem importante: servir como veículo de destes para uma revolução da Citroën: a suspensão hidropneumática, que faria sua estreia no DS em 1957.
Depois da guerra, a derrota
Citroën 2CV, o “guarda-chuva sobre rodas”…
Dali em diante as coisas prometiam só melhorar, mas a França declarou guerra à Alemanha em 1939. O norte do país foi ocupado rapidamente pelo exército alemão, e o que se seguiu foi uma escassez de materiais usados na fabricação do carro, pois a prioridade era produzir equipamentos militares. Para tentar contornar a situação, a Citroën tirou de linha o conversível e o 7C, mas não adiantou — eventualmente todas as linhas foram paralisadas para produzir armas e artefatos usados na guerra. Curiosidade: apesar de tudo, em 1939 cerca de 250 Traction Avant foram usados na guerra pelo exército francês.
Com o fim do conflito, em 1945, a produção foi voltando lentamente, porém jamais voltou ao ritmo de antes. Depois da guerra, a economia da França estava muito enfraquecida, a moeda desvalorizada e, com isto, o Traction Avant ficou caro — seu preço passou de 20 mil francos para quase 150 mil francos, mesmo sem alterações significativas. A necessidade de um meio de transporte barato para a população levou à criação do 2CV, lançado em 1948.
A partir daí, o Traction Avant foi ficando cada vez menos popular — o que não impediu a introdução de novidades, como um porta-malas mais espaçoso em 1951 — mas, além do alto preço, o carro inovador de 1934 era agora um carro obsoleto, ao menos visualmente. Em uma tentativa de tornar o carro mais lucrativo, a Citroën focou nas exportações — para o Brasil, inclusive, entre 1947 e 1951.
… e Citroën DS/ID, os carros que ajudaram a matar o Traction Avant
Para piorar a situação do Traction Avant, o DS foi lançado em 1955. Como se não bastasse o contraste visual absurdo entre os dois modelos, eles ainda conviveram por dois anos antes que a Citroën lançasse o ID, uma versão mais barata do DS, que usurpou definitivamente o lugar do Traction Avant, 23 anos e 760.000 unidades produzidas depois de seu lançamento.
Mas sua história não acabou ali. O Traction Avant mostrou ao mundo que o futuro estava na tração dianteira — com exceções, claro, principalmente na Alemanha (o primeiro BMW de tração dianteira só foi apresentado no ano passado). Mas carros como o Mini, de 1959, o Fiat 127, de 1971, e até o próprio DS — todos devem a tração dianteira ao Citroën dos anos 30. E, mais uma vez: praticamente todos os carros do mundo usam construção monobloco (ou monocoque, no caso dos superesportivos) porque o Traction Avant a popularizou.
Sintetizando em uma única frase: todos os carros que são vendidos hoje devem sua existência, em parte, ao Traction Avant. Nada mau para um “calhambeque” de 80 anos.
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