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Automobilismo

Trozobas Racing: a aventura dos FlatOuters que disputaram a Mil Milhas de SP

Você sabe como são os grupos de Whatsapp. Memes e figurinhas o dia inteiro, links de notícias e política, tiração de sarro e piadas, tudo sempre silenciado para não drenar a bateria do aparelho. Você acorda e lá estão as 597 notificações da conversa que seus amigos tiveram enquanto você fazia algo mais importante.

Mas naquele dia de janeiro de 2022 um grupo com flatouters que costumam se encontrar nos track days recebeu uma mensagem diferente: “Alguém quer correr a Mil Milhas no ano que vem?”

Não era brincadeira. Alguém realmente estava propondo disputar a clássica Mil Milhas. Esse alguém era Osvaldo Kusano, um FlatOuter como eu e você, conhecido por muitos aqui como o dono do Fiesta Blacklotus, figurinha fácil nos track days de São Paulo.

É claro que a mensagem empolgou todo mundo, mas à medida em que Osvaldo reafirmava que a proposta era real e que havia um longo trabalho pela frente, restaram só três malucos: Filipe Martins, Daniel Gonçalves e Antônio Tavares Júnior. Com a equipe definida, o próximo passo era descobrir como fazer isso. Como é que você sai de uma ideia de um grupo no Whatsapp e chega ao grid da Mil Milhas em Interlagos?

Você começa do começo. E o começo é conseguir um carro.

Como o Osvaldo já corria de Fiesta nos track days e já tinha um motor Duratec guardado, o plano original seria comprar um Fiesta, instalar o motor Duratec no carro e correr algum campeonato ao longo de 2022 para desenvolver o carro e adaptar a pilotagem ao circuito de Interlagos, além de acumular horas ao volante do carro para aclimatação.

O plano do Fiesta não deu certo, afinal, o carro precisaria ser feito do zero e, por uma questão de tempo e dinheiro, era mais prudente comprar um carro pronto. Ou quase isso. Foi assim que o quarteto acabou com um dos Corsa 2.0 da Equipe OTO, que tem uma ampla experiência — e muitas vitórias — em provas de longa duração.

O Corsa 2.0 é uma receita muito utilizada nas pistas por ser prática e eficiente, sem a necessidade de adaptações extensas, usando praticamente apenas peças de prateleira. Na prática, coloca-se o Família II de 2 litros combinado a um câmbio de relações curtas e uma injeção programável, sempre rodando com etanol para atingir entre 150 cv e 180 cv, dependendo da preparação.

Com o carro em mãos, a equipe dos FlatOuters, batizada Trozobas Racing Team (TRT), começou a acertar o carro para disputar a Super Liga paulista em 2022. A categoria foi escolhida por ser uma das mais acessíveis dentre as que correm em Interlagos (lembre-se que a participação na categoria tinha como objetivo ganhar tempo de pista e volante para a Mil Milhas), além de ser muito disputada e ter um clima garagista e amistoso entre as equipes. É o automobilismo à moda antiga, de raiz, com regulamento extremamente restritivo em termos de preparação — justamente para manter a competitividade.

A preparação permitida para o motor se resume a alívio de volante inercial, polia ajustável do comando de válvulas, coletor redimensionado e nada além disso. Pistões e cabeçote podem ser modificados apenas nas medidas de retífica (até 1mm) e as borboletas de admissão acabam sendo limitadas pelo coletor de admissão, que precisa ser original.

Apesar de pronto, o carro era um carro usado — e usado em pista. Logo no primeiro treino, em maio de 2022, o motor quebrou. Uma janela considerável se abriu no bloco e encostou o carro na oficina pelas quatro semanas seguintes. Apesar de o motor ser aberto para o reparo, ele foi remontado com peças usadas — afinal, a proposta é manter o custo baixo, não? E assim mesmo o carro foi para a pista no início de junho de 2022.

Como a TRT entrou na metade do campeonato de 2022, eles correram apenas três etapas, pouquíssimo tempo de pista e volante com o carro novo. Por isso, o quarteto decidiu não disputar a Mil Milhas de 2023, e aproveitar o ano novo para disputar a temporada completa. Desta vez seriam dez etapas nas categorias Hot Classic e Turismo 2.0 (ambas da Super Liga) e mesmo com a saída de Antônio no meio da temporada eles conseguiram terminar o campeonato em terceiro — um feito e tanto para uma equipe com 13 provas no currículo, correndo com um motor montado com peças usadas.

Com o resultado, os FlatOuters perceberam que estavam prontos para o desafio das Mil Milhas de 2024. O primeiro passo foi fazer a inscrição na corrida — algo que exigiu que o carro estivesse adequado às regras (ele estava) que os pilotos tivessem alguma das carteiras exigidas pela Confederação Brasileira de Automobilismo. No caso, como estavam pilotando um carro antigo, foi exigida a mais básica das carteiras, a PVH – Piloto de Veículo Histórico.

Depois, era preciso encontrar uma equipe. Pela relação com a Equipe OTO — afinal, o carro foi comprado deles —, a TRT dividiu os boxes com eles além de pagar pelo serviço de apoio de pista. Mas houve também uma grande ajuda dos amigos FlatOuters. Além do trio trabalhar no carro entre as etapas e nos preparativos da Mil Milhas, o pessoal do grupo que não montou nem pilotou o carro, acabou formando uma segunda equipe de apoio nos boxes. Felipe Regiane, Fred Martini, Giovane Cipriano, Rodrigo Leite, Ricardo Neves, Fábio Sato, Lucas Cassiano foram alguns dos amigos que ajudaram a TRT ao longo das 12 horas de prova e também antes, durante os treinos e a preparação para a corrida.

A preparação envolveu uma série de “ajustes técnicos não-originalmente-provisionados”, se é que me entendem. Como a prova começa à meia-noite, metade dela é feita no escuro o carro foi improvisado com faróis de LED. A parede corta-fogo foi feita com uma chapa sucateada de uma obra próxima à casa do Osvaldo, enquanto o rádio veio diretamente da China e foi testado somente na véspera da prova.

Participar de uma prova destas com poucos patrocinadores, aliás, é um desafio e tanto. A maior parte do dinheiro investido sai do bolso dos próprios pilotos. Depois dos treinos, que foram aproveitados do primeiro ao último minuto para pegar ritmo de prova à noite, devido à mudança da percepção de velocidade e dos pontos escuros do traçado — e também serviram para assentar pastilhas e sanar uma pane elétrica dos faróis —, a equipe largou em P30 na geral e P6 na categoria.

O primeiro a levar o carro foi Filipe em um stint de 1h45 — tempo suficiente para entregar o carro ao Osvaldo em P18 geral. Daniel assumiu com a equipe em P23 e, apesar de ter o para-brisa ensebado por uma chuva de óleo causada por um motor estourado à sua frente, conseguiu passar o carro para o Antônio em P22, que também ganhou posições em seu stint e entregou o carro em P18 para o segundo stint do Felipe.

Tudo corria bem para os FlatOuters da TRT — algo que parecia inacreditável para um bando de graxeiros sem experiência na Mil Milhas e com menos de 15 corridas na bagagem. Especialmente se você lembrar que o motor do carro tinha um bloco soldado desde 2022 e fora reparado com bielas usadas.  Quando o Osvaldo assumiu o carro pela manhã, em seu segundo stint, eles estavam em 17º lugar na geral e em P2 na categoria — ou seja, mais algumas horas mantendo o ritmo e eles estariam no pódio — isso sendo conservador, porque eles poderiam muito bem sonhar com o primeiro lugar na classe.

Mas… você sabe: provas de longa duração só acabam quando terminam. E para terminar a corrida em primeiro… você primeiro tem que terminar a corrida. Por volta das 8h, na Junção, o piloto/narrador Luc Monteiro teve de frear forte seu Ford Ka Mk1 entre os protótipos e acabou rodando após perder a traseira. Ao tirar o carro da pista indo em direção à grama, ele acabou obstruindo o traçado do Osvaldo no Corsa. Apesar da reação rápida e da frenagem forte, a colisão foi inevitável. Luc e o Ka conseguiram seguir andando para os boxes, mas Osvaldo e o Corsa tiveram que ser rebocados devido à quebra do radiador e vazamento dos fluidos — provocando a entrada de um safety car, aliás.

Nos boxes, começou uma corrida dentro da corrida: reparar o carro o mais rápido possível. As partes amassadas foram endireitadas por uma ferramenta de ajuste fino popularmente conhecida como “pé-de-cabra”, fluidos foram repostos, o carro foi liberado e voltou para a pista depois de 32 minutos… para voltar em seguida devido ao desprendimento de uma semi-árvore. Sem conseguir voltar por seus próprios meios para os boxes, novamente o carro foi rebocado — em um processo que levou 23 minutos até o fim do reparo.

Com Antônio ao volante, os trozobeiros seguiram em P7, já sem chances reais de recuperar a posição, mas correndo para concluir a prova — o que por si seria algo vitorioso, novamente, para uma equipe iniciante que nascera dois anos antes quase como uma brincadeira em um grupo de Whatsapp. Tudo correu bem nesse stint, após o reparo do semi-eixo, claro. Já nas últimas horas da corrida, Antônio entrou nos boxes e entregou o carro para o Daniel.

E aí o imprevisto pegou carona novamente.

Um acidente provocou a entrada do Safety Car novamente (foram mais de dez intervenções do carro ao longo das 12 horas de prova), mantendo Daniel atrás do carro por quase uma hora e meia, inviablizando qualquer possibilidade de reação da equipe. Para piorar, eles perderam a terceira marcha, fundamental para manter o ritmo na parte travada. E o ritmo só é baixo para os protótipos (o Safety Car era um Camaro SS pilotado por Maurizio Sala); para os Corsa 2.0 a velocidade era praticamente a mesma da prova.

Mesmo assim, Daniel conseguiu manter o ritmo com as duas marchas altas e recebeu a bandeira quadriculada depois de 269 voltas — 74 atrás do protótipo vencedor da prova e apenas 23 atrás do vencedor da categoria, o que prova que eles tinham ritmo para o P1 na categoria, uma vez que estavam virando em 2:10 na média e perderam 55 minutos com os reparos que tiveram de ser feitos.

A chegada do carro ao fim da prova (em uma formação tripla com os outros carros da Equipe OTO) provocou uma catarse emocional nos pilotos e na equipe. Aquilo que parecia inacreditável, que começou com um “vamos correr a Mil Milhas?” no Whatsapp estava acontecendo. Eles não apenas correram a Mil Milhas como chegaram perto de um pódio na categoria e, apesar de tudo, receberam a bandeira quadriculada depois dos quase 1.600 km corridos.

É um feito e tanto, que não só remete às histórias do passado que todos admiramos e celebramos, mas também a repete e mostra na prática que disputar uma prova lendária como a Mil Milhas Brasileiras é possível com um pouco de planejamento, muito esforço e com uma grande ajuda dos amigos.

“Minha mensagem pros FlatOuters é para contar que é possível realizar o sonho. Já me dei muito por satisfeito andando na Super Liga, lembro da minha primeira dividida de curva numa corrida e sentir realizando o sonho de vida.

Correr a Mil milhas foi a realização daquela meta de dois anos antes, algo que pra mim era impensável. A prova em si tem uma aura muito f***!! Andar à noite, com tantos carros é muito especial, vale cada pingo de suar trabalhado para realizar o sonho, assim como o tempo e a grana investidos no carro.” – Filipe Martins

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“As mil milhas significaram a realização de um sonho pessoal e em grupo desses amigos amantes de carros, que certo dia estavam vendo uma edição das Mil Milhas juntos e resolveram, do nada, tentar realizar isso que parecia loucura até então.

E realmente foi um sonho realizado! Na hora que a gente saiu ali do box deu um arrepio e um nó na garganta por que nem dava para acreditar que aquela ideia entre amigos estava sendo realizada ali.

Pessoalmente era um sonho de criança, correr e disputar uma prova desse porte e relevância, então conseguir terminar era o nosso grande objetivo e foi sensacional!

Não tenho palavras para medir a emoção, a realização do trabalho em equipe que a gente teve, a parte de pista e pilotagem, a equipe trabalhando incansavelmente, os amigos que trabalharam, a amizade envolvida na realização e superação dos desafios inclusive financeiros que nós tivemos antes e durante o ano de preparação até chegar nessa prova.

Enfim tudo que levou a gente até ali e de forma a ainda reforçar mais essa amizade foi sensacional. Foi a realização de um sonho e como dizemos “historia para comtar pros netos”, e eu espero que a gente consiga ir adiante e disputar de novo! Quem sabe brigar pelo pelo troféu que estivemos bem perto de levar!
Muito obrigado equipe. E tamo junto TROZOBAS!” – Antônio Tavares Junior

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“Tudo começou nas mil milhas de 2022, onde uns doidos lançaram em um grupo de Flatouters participantes de trackday o seguinte desafio: “e se montarmos um carro para correr as mil milhas?”

Bom, estava lançado o desafio! E assim foi. Compramos um carro em março/abril e em maio já estávamos andando na Superliga. Dali pra frente o grupo foi cada vez mais se tornando mais amigos (lembre-se, é nas adversidades que conhecemos as pessoas!). O desafio de correr as mil milhas estava se concretizando, e a meta era pegar horas de volante!

O ano de 2023 foi um misto de decepções e vitórias. Na primeira temporada da Superliga Desportiva de Velocidade eu colidi o corsa, o que me trouxe decepção e um atraso no aprendizado (aquele botão chamado c* ativou, e toda vez que passava na curva do lago ele me lembrava que existia).

Pois bem, com a ajuda de amigos e essa irmandade seguimos em frente, e fomos 3º colocados nas duas categorias que participamos. O que era para ser o “treino” das mil milhas acabou sendo uma parte muito divertida! Obrigado Superliga por nos proporcionar estes momentos e incentivar o esporte a motor.

Agora nas mil milhas, foi sensacional! Um misto de medo e empolgação! A emoção de dividir pistas com carros muito fod*s não tem descrição!

Tínhamos duas metas principais: a primeira todos andarem e a segunda terminar a prova. Por ironia do destino consegui cumprir as duas. A primeira delas quando passei o carro para o Antônio guiar e a segunda quando peguei o corsa no último stint, mesmo sabendo que ia cair uma chuva torrencial (e eu nunca tinha andado na chuva…). Cruzar a linha de chegada junto com os amigos da equipe OTO (#quemtemequipetemtudo) foi a cereja do bolo!

Mesmo com todas as adversidades e o misto de emoções foi sensacional. Ver que tínhamos chances de pódio, ver na TV a colisão do Osvaldo, consolar o amigo que desceu do carro com a frente toda torta e depois vermos que todo mundo pegou no batente e fez o carro voltar à ativa não tem preço!

Isso apenas demonstra que a amizade é o pilar principal da nossa equipe, a Trozobas Racing Team e também a Equipe OTO! E é um prazer dividir estas experiências com esses irmãos que a vida nos trouxe!” – Daniel Gonçalves

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“Correr a Mil Milhas foi um processo longo, que levou bem mais tempo do que a gente imaginava  — ou, pelo menos do que eu imaginava. Tivemos muitos esforços empreendidos, individuais e coletivos. Sacrifícios pessoais, financeiros, sociais, familiares… Cada um de nós sabe bem o quanto a gente se dedicou pra correr essa prova.

O nosso objetivo foi correr e terminar as Mil Milhas, e nesse ponto, superamos o desafio. Precisei ver o Daniel cruzando a linha de chegada (ele me falou pouco antes de entrar no último stint que traria o carro de volta) pra me sentir aliviado. O final da prova – digno das 24 de Le Mans de 1966 – foi como uma redenção.

Todos nós nos esforçamos muito para fazer aquilo acontecer, mas até então, ainda sentia um misto de frustração, tristeza, raiva. Não foram apenas 12 horas de corrida, foram infinitas outras horas de preparação ao longo de um ano e meio que eu quase joguei fora no meu segundo stint – um stint no qual eu vinha confortavelmente desenvolvendo e me sentindo muito bem no carro, mas que acabou no incidente com o Ka (ah, a ironia na vida de um fordeiro…).

No final, correr as Mil Milhas foi uma montanha russa de emoções que eu nem imaginava que poderiam se misturar. O charme da prova em si, o frio na barriga, o êxtase, o cansaço, e tudo o mais que eu já disse acima. Que honra enorme dividir o carro com esses caras! E que venham as próximas Mil Milhas!” – Osvaldo Kusano


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