Faz exatamente cinco anos que a Ferrari confirmou que estava decidida a cometer a heresia de criar um SUV com sua marca. Porsche e Lamborghini têm uma licença poética, um background histórico para isso.
A Porsche nunca foi uma marca exclusivamente de esportivos. Nos anos 1950 eles fizeram tratores. E desde sempre eles desenvolveram projetos para outras fabricantes ou qualquer um que pagasse a quantia certa. Ainda hoje, se você procurar direito, . A Lamborghini também suas rodas no campo, e tem até o LM002 como contexto histórico para o Urus. A Ferrari não.
A Ferrari é uma marca orgulhosamente nascida nas pistas. Os carros de rua foram uma consequência da vontade de Enzo disputar corridas. Qualquer coisa que fosse minimamente dissonante dos seus carros de pista, era tratada de maneira diferenciada. Veja as Dino, por exemplo. São carros de rua com motor central traseiro V6 e V8, como nenhuma outra Ferrari até então. E você pode ser sensível e achar que Enzo Ferrari criou a marca como uma homenagem póstuma a seu primogênito. Eu quero crer nisso. Mas é impossível não pensar que ele fez essa divisão “de entrada” para não macular a imagem sacrossanta da Ferrari.
Ao usar “Dino” Enzo Ferrari impediu que dissessem que a Ferrari estava fazendo carros mais baratos. E também se protegeu contra um eventual fiasco da marca. Se os carros fossem rejeitados, não era uma Ferrari, mas uma simplória Dino. Havia até um Fiat com o mesmo motor e mesmo nome.
Essa mística da Ferrari foi mantida mesmo quando Luca di Montezemolo assumiu o comando da Ferrari em 1991, impondo um controle quase obsessivo sobre a utilização da marca e também sobre o volume de produção, que não era limitado pela demanda, mas pelo objetivo de manter a oferta reduzida como forma de valorização não apenas dos carros, mas da marca em si.
É por causa deste senso de preservação da imagem da Ferrari que, há cinco anos, quando o próprio Sergio Marchionne confirmou que a marca estava fazendo um SUV, eu, Leo Contesini, comecei a suspeitar de que a Ferrari não faria um SUV como a Porsche ou a Lamborghini. Ao menos não com o livro de receitas dos Super-SUV na bancada. E essa suspeita veio de uma notícia divulgada dois anos antes.
Em junho de 2015 a Ferrari revelou uma foto de uma das propostas de estilo para a sucessora da Ferrari 612 Scaglietti, que haviam sido feitas no final dos anos 2000. E a proposta de estilo mostrava não uma shooting brake ou um GT, mas um crossover. E quando essa imagem apareceu, muitas coisas sobre a Ferrari começaram a fazer sentido.
O primeiro deles é o motivo de a FF (e, depois, a GTC4 Lusso) ser uma shooting brake e ter tração integral. O outro é o porquê de o “SUV da Ferrari” ter se tornado um tema recorrente naquela virada de década.
Era uma evidência concreta de que a Ferrari queria fazer um crossover desde que ainda produzia a Scaglietti. Ou seja: ela talvez tenha ficado tentada a encher os cofres com um modelo de apelo mais popular como fizera a Porsche com o Cayenne uns poucos anos antes.
E para fazer jus ao crossover, o carro precisaria de um sistema de tração nas quatro rodas, como todo SUV de luxo tem. Mas, sendo uma Ferrari, ela ainda precisava ter desempenho esportivo em estrada. E por isso que, segundo essa hipótese que estou apresentando, a FF saiu com tração nas quatro rodas em vez de ser uma shooting brake com tração traseira, convencional, como toda perua derivada de um GT. Não faz sentido para uma Ferrari ter um sistema complexo como aquele. A menos que ele tenha sido feito para um crossover que, na última hora, acabou virando uma shooting brake.
É muito provável que Montezemolo, que era o cara à frente da Ferrari na época, tenha vetado a FF “crossover” para esperar um pouco mais de tempo. Vai que esse negócio de crossover é uma moda passageira como foram as minivans. Seria uma manobra com alto risco de banalizar a marca, lançar uma Ferrari SUV antes de ter certeza de que o mundo do automóvel iria convergir para os SUV.
E foi o que aconteceu. A Ferrari esperou quase 10 anos para lançar seu crossover, e ele finalmente chegou, em uma terça-feira 13, na forma da Purosangue. E a revelação da Purosangue traz mais uma evidência de que esta teoria que eu expus aqui pode ser mais que uma hipótese: veja a silhueta da Purosangue e a compare com o crossover proposto para substituir a 612 Scaglietti. Em especial os para-lamas traseiros e o formato da área envidraçada lateral.
Veja e tente não pensar na Purosangue como uma versão atualizada daquela proposta. Aliás… conhecendo melhor a Purosangue, você também terá a impressão de que ela é realmente aquele carro proposto para substituir a 612, porém lançado 11 anos depois.
Como esperado, a Ferrari se recusa a considerá-la um SUV. Eles não chegam nem perto dessa sigla, e muito menos da palavra “crossover”. Ela é um esportivo e pronto. Um “esportivo de quatro portas”, segundo a Ferrari. O primeiro que eles fizeram.
Você talvez lembre que nós questionamos se ela teria mesmo quatro portas. Ela tem. Mas as portas traseiras são discretas a ponto de parecerem não existir. Isso, porque elas são do tipo “suicida” e suas maçanetas são tão escondidas que ninguém no mundo parece ter perguntado onde elas ficam, já que a Ferrari também não mencionou onde elas estão.
E isso a torna ainda mais parecida com a proposta da FF. Infelizmente, as portas dianteiras mais curtas, típicas de carros quatro-portas, tiram um pouco da sensação de GT elevado que a Purosangue passa em determinados ângulos. Com a coluna B demarcando o centro da cabine, ela se aproxima mais do visual de crossover.
As suspeitas de que ela iria compartilhar a plataforma com o Maserati Levante foram afastadas depois que a Ferrari anunciou que ela mantém as características de construção de suas antecessoras, como o motor V12 central-dianteiro, o câmbio na traseira e a unidade de transferência de tração instalada à frente do V12. Você já viu essa configuração antes na FF e na GTC4 Lusso — e aqui temos mais uma evidência de que a FF foi planejada como um crossover e transformada em shooting brake para “acostumar” o público.
Com essa configuração mecânica a Ferrari conseguiu fazer um crossov… um “esportivo de quatro portas” que tem 49% de sua massa sobre o eixo dianteiro e 51% sobre o eixo traseiro, uma distribuição “ideal” segundo seus engenheiros.
Se você está se perguntando sobre o V12, sim, ele é o F140 e é aspirado, mas ele não produz 820 cv como na Superfast, mas “apenas” 725 cv. Isso faria da Purosangue o SUV mais potente do mundo, se ela fosse um SUV. Certo, ragazzi?
Apesar da potência menor que na 812, os cabeçotes, por exemplo, são os mesmos da versão Competizione, porém com comando de válvulas modificado. Os sistemas de admissão, escape e sincronização também são próprios da Purosangue. O conjunto reciprocante também foi modificado e reprojetado para a função familiar, assim como os dutos de lubrificação para otimizar a lubrificação das bronzinas e reduzir o consumo de combustível. As bombas auxiliares também foram reprojetadas para reduzir massa e atrito visando a eficiência de consumo.
Além de ter 725 cv e ser “o mais potente de sua categoria” (qual categoria, Ferrari? A dos… SUV de luxo?), a Purosangue tem 71,5 kgfm de torque a 6.250 rpm, mas 80% disso (57,2 kgfm) está disponível a 2.100 rpm. A potência máxima vem a 7.750 rpm.
Algo que aguardávamos com grande expectativa seriam as soluções de controle dinâmico que a Ferrari encontraria para um crossov… um esportivo de quatro portas. Afinal, ela pode ter um V12 central-dianteiro, transeixo na traseira e pilotos de Fórmula 1 desenvolvendo o carro, mas as leis da física não estão nem aí para um punhado de italianos orgulhosos. Como lidar com o fato de que esta Ferrari está alguns centímetros acima de onde deveria? E que ela pesa alguns quilogramas a mais do que deveria — e com todas as consequências dinâmicas disso?
Bem, aqui a Purosangue começa a se distanciar das outras Ferrari: ela tem um sistema de suspensão ativa capaz de conter a rolagem da carroceria. É um sistema inédito na linha Ferrari, baseado em sensores de aceleração, atuadores elétricos e válvulas hidráulicas que compensa individualmente a carga dos amortecedores de acordo com os movimentos da carroceria — e tudo de forma contínua enquanto estiver ativado. Sua ativação também reduz a altura de rodagem em 10 mm para reduzir o centro de gravidade.
As assistências ativas ainda incluem o sistema de esterçamento das quatro rodas e o diferencial eletrônico da 812 Competizione e o sistema de tração nas quatro rodas derivado da GTC4Lusso, porém com as atualizações de software da SF90 Stradale.
Por dentro da Ferrari Purosangue
Lá dentro o que se encontra é o padrão da Ferrari moderna: um cockpit simétrico, inspirado pela SF90, com uma tela que projeta as informações de condução para o passageiro. As duas metades longitudinais do carro são divididas por um túnel elevado — na traseira inclusive —, mas a Ferrari diz que o espaço interno é “surpreendentemente grande”.
Deve ser mesmo, pois o carro tem mais de 2 metros de largura, 3,02 metros entre os eixos e 4,97 metros de comprimento. Sim, é uma Ferrari de quase cinco metros, ainda mais longa que a FF e a GTC4 Lusso. Na verdade, esta é a Ferrari de rua mais longa já feita. O porta-malas, mesmo com uma transmissão de oito marchas embaixo, tem 473 litros.
E se você quer mais uma evidência de que a Ferrari mira até mesmo os mais luxuosos SUV de luxo, ela diz que tanto o espaço quanto os materiais da cabine são “cuidadosamente selecionados” e formam uma “oferta sem precedentes dentre as Ferrari de quatro lugares”.
Os bancos traseiros, normalmente pouco espaçosos nas Ferrari desse tipo, têm até mesmo ajustes elétricos para o encosto, assento e distância dos bancos dianteiros. É o tipo de coisa que se encontra em Land Rovers, Lamborghini Urus, Bentley Bentayga.
Apesar de ser um crossov… um esportivo de quatro portas, a Purosangue não consegue ser mais rápida que um dos SUV com quem ela poderia concorrer. Estou falando do Aston Martin DBX 707, que vai do zero aos 100 km/h em 3,3 segundos e chega a mais de 310 km/h. São os mesmos números da Ferrari Purosangue, que vai de zero a 100 km/h em 3,3 segundos e segue até os 310 km/h. Para chegar aos 200 km/h são necessários 10,6 segundos. Já pensou se a Purosangue fosse um SUV? Seria um concorrente e tanto…
Agora… se você está se perguntando por que a Ferrari esperou 10 anos para lançar seu SUV e não 15 ou 20 anos, o próprio diretor de marketing da Ferrari, Enrico Galliera explicou à revista britânica Autocar:
“Há alguns anos decidimos ter uma linha completa de automóveis. A Roma e a Portofino são carros para consumidores intimidados por nossos outros modelos. A 296 não é a mais rápida, mas é a mais divertida de guiar. A Purosangue completa essa linha”, disse Galliera.
Galliera também comentou que sempre que conhece a garagem de um proprietário de Ferrari, ele observa que, entre as Ferrari, há um SUV, porque a família precisa de mais espaço para passeios de fim de semana ou para uma ida às montanhas esquiar. E a Purosangue pode suprir essa necessidade.
Galliera ainda mencionou que o número médio de carros que um proprietário de Ferrari tem na garagem triplicou nos últimos 10 anos. Ou seja: a Ferrari não precisa mais concorrer com os crossovers: se o público compra, em média, três vezes mais carros, a Purosangue só precisa ser um dos outros dois carros escolhidos. As chances de venda aumentam.
E considerando o que o Cayenne fez pelas finanças da Porsche, o que o Urus fez com o volume de vendas da Lamborghini e o que o Cullinan fez pela Rolls-Royce, a demanda continuará maior que a oferta. E isso diz tudo sobre essa multiplicação dos SUV do mundo moderno.
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