Minha estante da sala tem alguns livros, uns DVDs e miniaturas de carros. Embaixo do modelo em escala do Volvo Iron Knight está um livro chamado “A história da odontologia”. É um livro que ficava no consultório do meu pai e que, por acaso, eu ganhei quando ele decidiu se aposentar.
Aquele livro é só um livro. Um punhado de papel com informações que você pode encontrar na Wikipédia. Por que guardar esse negócio pesado e inconveniente, que ocupa espaço e junta pó, se tudo o que há nele está convenientemente guardado por outras pessoas e empresas em servidores de internet?
Porque aquele livro não é só um livro. Não para mim. Eu estava com meu pai quando, numa noite depois de sair do consultório, ele foi à livraria encomendá-lo. E eu estava com meu pai quando ele foi retirar o livro na loja, semanas depois.
Era um negócio interessante demais pra um adolescente curioso. Eu nunca tinha parado para pensar na origem da escova de dentes ou da própria noção de se limpar os dentes. Não é algo natural, se você parar pra pensar. Alguns animais se limpam de alguma forma — os banhos de gato são bem conhecidos — mas nenhum bicho limpa os dentes, só a gente.
Quando meu pai decidiu se aposentar, eu lembrei de pedir algum instrumental seu. Um explorador, o espelho bucal e, talvez, um boticão. São emblemáticos da odontologia. Um dos meus tios guardou o grampeador que meu avô usava em seu escritório na repartição pública onde ele trabalhou na maior parte de sua vida. Eu também queria uma lembrança do trabalho do meu pai.
Quando eu pedi os instrumentos, ele já havia doado tudo. Fiquei sem nada. Um dia, meses depois, veio o livro, que se tornou um símbolo do tempo em que meu pai era o “dr. João”. E o fato de o livro estar na minha casa, e não mais no consultório dele, simboliza o fim de uma fase das nossas vidas. Ele não é só um livro: ele é uma lembrança de um tempo que não existe mais, e um lembrete permanente de que a vida é feita de começos, meios e fins. No plural, porque eles acontecem o tempo todo.
E ele não é só um livro, da mesma forma que o grampeador guardado pelo meu tio não é só um grampeador. São exemplos banais de que o valor que as coisas têm vem do significado que damos a elas. Há uma certa tendência moderna em praticar o desapego anti-materialista como uma espécie de caminho para uma superioridade espiritual. Tem a ver com a noção religiosa de que somos almas temporariamente em um mundo material e que, um dia, o deixaremos para trás.
Mas símbolos materiais são importantes mesmo para esse fim. Até os carros. Especialmente os carros.
E, por mais que um carro seja só um carro, às vezes ele pode ser como o livro e o grampeador. Pra muita gente um carro significa muitas coisas. E se ele tem significado, tem valor.
Tem gente que trata um carro com indiferença. Racionaliza o uso e a propriedade de um carro, o que faz sentido, de certo modo. Pode ser que, para eles, outras coisas tenham mais significado.
Uma réplica do Lamborghini Diablo contra o tempo | FlatOut Classics
Mas um carro é diferente — e você nem precisa ser um entusiasta. Basta ver a reação das pessoas — qualquer pessoa — ao comprar um carro novo, a satisfação de ter conquistado algo que trará benefícios para suas vidas. Mesmo a pessoa que “não liga para carro” sente algo especial nesse momento.
Porque os carros são uma daquelas máquinas que nos dão superpoderes. Eles nos fazem ir mais rápido e mais longe do que poderíamos ir com nossas pernas e pulmões. São um abrigo, um encurtador de distâncias, um poupador de tempo, um possibilitador, um realizador, um descobridor de novos mundos. Uma coisa nossa em qualquer lugar do mundo. Algo familiar em um lugar estranho. O seu carro é seu na sua garagem ou a 10.000 km de casa. Mesmo um carro alugado numa viagem a Tóquio. E por causa disso eles se tornam símbolos.
Pode ser a lembrança de uma viagem, de alguma pessoa que está distante, de um tempo bom, de tempos difíceis, de uma primeira vez, de uma descoberta, de uma fase da vida, de uma paixão, do início de uma família, de uma empresa, de qualquer coisa. Sabe aquela história de vender um carro para fazer dinheiro e comprar um carro barato para usar temporariamente? Ela é tão comum que você sabe exatamente do que estou falando. E esse carro será, no mínimo, uma referência temporal, uma memória de uma trajetória de vida.
Neste final de semana eu farei a última viagem com meu atual carro. Neste final de semana ele fará a primeira com seu novo proprietário, um amigo próximo que já tem uma história para contar sobre ele: uma viagem de 800 km para buscá-lo.
E esse carro não é só um carro. Ele me ajudou a manter o FlatOut em seu momento mais difícil, assim como o Dodge Dart do Juliano, que também não era só um carro.
Ele foi um fiel companheiro por longos anos e dezenas de milhares de quilômetros. Rodou por cinco estados, foi a um monte de cidades e rodou no ponto mais alto onde se pode dirigir no Brasil, a mais de 2.400 metros acima do nível do mar.
Foi o ambiente de bons e maus momentos, um lugar de reflexão por longos quilômetros. Palco de conversas memoráveis, discussões e cantorias. Um pedaço da minha casa, mesmo quando eu mudei de casa. Até vídeo do FlatOut ele protagonizou! — sem contar as vezes em que foi carro-câmera.
Mas chegou a hora dele partir. Sua missão foi cumprida. Uma fase se encerrou e, como o livro do meu pai, ele agora irá para outra garagem, onde fará parte de uma nova história e acabará, cedo ou tarde, se tornando uma lembrança dessa nova história. Porque um carro, afinal, nunca é só um carro.
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