O tempo passa rápido, meus amigos. Parece que foi ontem que a Porsche venceu as 24 Horas de Le Mans pela segunda vez consecutiva, em um final de corrida dramático no qual a Toyota perdeu a liderança nos últimos minutos por um problema com o protótipo TS050 Hybrid, mas já faz quase um ano: estamos em junho, e a edição de 2017 da corrida é daqui a duas semanas – nos dias 17 e 18.
Há um fato que torna as 24 Horas de Le Mans de 2017 especialmente notáveis para nós: nada menos que nove brasileiros no grid de largada, um recorde absoluto.
Mas a presença do Brasil nas 24 Horas de Le Mans não é exatamente novidade: nas 84 edições da prova realizadas até agora, nada menos que 26 brasileiros participaram da competição. A primeira vez foi em 1935 – ou seja, temos uma tradição até razoável no Circuito de La Sarthe. Depois disto, tivemos alguns marcos importantes: em 1959, pela primeira vez foram dois brasileiros na largada; número que subiu para três em 1995, quatro em 1996, cinco em 2008 e seis em 2016.
O salto para nove pilotos do Brasil em Le Mans neste ano certamente é admirável e nos deixa orgulhosos – especialmente porque isto significa que teremos três pilotos estreantes na corrida de 24 Horas: Barrichello, Daniel Serra, André Negrão e Tony Kanaan. Quando eles largarem, serão 29 brasileiros na história da corrida. Até agora, porém, a lista é esta:
– Bernardo Souza Dantas – 1935
– Hermano da Silva Ramos – 1954, 1956 e 1959
– Christian Heins – 1959 e 1963
– Fritz D’Orey – 1960
– José Carlos Pace – 1973
– Paulo Gomes – 1978
– Marinho Amaral – 1978
– Alfredo Guaraná Menezes – 1978
– Roberto Moreno – 1984
– Raul Boesel – 1987, 1988, 1991
– Maurizio Sandro Sala – 1989, 1990, 1991, 1992, 1995, 1996
– Antonio Hermann de Azevedo – 1993, 1994,1995, 1996, 1997
– Thomas Erdos – 1995, 1996, 1997, 1999, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011
– Nelson Piquet – 1996 e 1997
– André Lara-Rezende – 1997
– Ricardo Zonta – 1998 e 2008
– Jaime Melo – 2004, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012
– Nelson Piquet Jr. – 2006 e 2016
– Christian Fittipaldi – 2006, 2007 e 2008
– Alexandre Negrão – 2008
– Bruno Senna – 2009, 2013, 2014 e 2016
– Augusto Farfus – 2010 e 2011
– Lucas Di Grassi – 2013, 2014, 2015 e 2016
– Fernando Rees – 2014, 2015 e 2016
– Pipo Derani – 2015 e 2016
– Oswaldo Negri Jr. – 2016
– Rubens Barrichello – 2017*
– Tony Kanaan – 2017*
– André Negrão – 2017*
– Daniel Serra – 2017*
É uma galera, não? Por esta razão, vamos comentar as participações mais marcantes dos brasileiros nas 24 Horas de Le Mans. Começando, é claro, do começo.
O pioneiro: Bernardo de Souza Dantas
Apesar de ter nascido em Paris, Bernardo de Souza Dantas tinha cidadania brasileira graças a seu pai, também brasileiro. De família rica, Bernardo ganhou um Bugatti logo que começou a dirigir. Com um dos esportivos mais importantes da época na garagem, o jovem logo se interessou por automobilismo e começou a disputar ralis, subidas de montanha e arrancadas no início dos anos 1930. Seu sonho eram os Grandes Prêmios, porém já naquela época os monopostos eram carros caríssimos, e proibitivos mesmo para um jovem afortunado como ele.
Mas Le Mans era diferente: bastava ter um esportivo que pudesse ser dirigido à noite. Com o regulamento em mãos Bernardo mandou preparar seu carro para a prova de 1935, na qual alinhou a dez dias de seu 23º aniversário.
A direção foi dividida com o amigo francês Roger Teillac, largando sob uma forte chuva. “Em 1935 havia 60 concorrentes e a minha posição era a 6ª por causa da cilindrada. Deram a partida e eu segui andando pela minha velocidade, porque numa corrida de 24 horas você tem que seguir um plano de corrida, senão o carro quebra na primeira hora. Foi interessante porque o circuito tinha 13 quilômetros e você conseguia fazer esses 13 quilômetros uma vez, duas vezes, três vezes, uma vez atrás da outra com uma diferença de segundos. Você repete a mesma coisa: mesma velocidade, mesmo lugar, mudança de marcha… é uma experiência muito boa”, disse Bernardo em entrevista a Luiz Alberto Pandini do site GP Total.
Foi desta forma serena e metódica que Bernardo e seu amigo Roger Teillac conduziram o Bugatti Type 35, com seu oito-em-linha de 3,3 litros, por 19 horas ao longo de 129 voltas. No 130º giro o motor quebrou e eles abandonaram a corrida.
Pouco depois da corrida Bernardo perdeu boa parte de sua fortuna quando o banco que a guardava simplesmente faliu. Ele então vendeu seu Bugatti e, sendo engenheiro aeronáutico, começou a trabalhar em uma fabricante de motores de avião em Paris. Quando a Segunda Guerra começou, temendo acabar em um campo de concentração, ele mudou para o Brasil já em 1940 e aqui ficou até 2005, quando morreu vitimado por um tumor no fígado.
Pace, Boesel e Di Grassi: os brasileiros a um degrau do topo
Nunca tivemos um vencedor brasileiro nas 24 Horas de Le Mans, mas chegamos bem perto: três pilotos conquistaram a segunda colocação em três ocasiões diferentes.
Na primeira vez, foi José Carlos Pace. Chamado pelos gringos apenas de Carlos Pace, o o piloto ficou mais conhecido por sua carreira na Fórmula 1, que começou em 1972 e terminou abruptamente em 1977, com um acidente de avião que tirou sua vida.
Em 1973, porém, Pace estava em ótima forma: disputando as 24 Horas de Le Mans com a Ferrari 312PB, protótipo do Grupo 6 equipado com um flat-12 de três litros (na verdade, 2.991 cm³) com comando duplo nos cabeçotes e 470 cv.
Ele dividiu o volante com o italiano Arturo Merzario e, depois de 349 voltas, chegaram em segundo lugar, atrás apenas da dupla francesa Henri Pescarolo e France Gérard Larrousse, que pilotavam o Matra MS670B e venceram com seis voltas de vantagem.
Depois foi a vez de Raul Boesel, que em 1991 dividiu o posto no Jaguar XJR-12 – e seu mítico V12 de 7,4 litros e 740 cv – com o americano Davy Jones e o francês Michel Ferté. No entanto, o que todo mundo lembra das 24 Horas de Le Mans de 1991 é a vitória do ainda mais mítico Mazda 787B, que cruzou a linha de chegada primeiro com 362 voltas completadas. Com 360 voltas, Boesel pode ter ficado em segundo, mas ao menos garantiu à Jaguar o título do WSC naquele ano.
A terceira e última foi recente: em 2014, Lucas di Grassi chegou em segundo lugar ao volante do Audi R18 e-tron Quattro nº1, que dividiu com o dinamarquês Tom Kristensen e o espanhol Marc Gené. Foi, na verdade, uma dobradinha da Audi – o R18 nº2, comandado por André Lotterer (Alemanha), Marcel Fässler (Suíça) e Benoît Tréluyer (França), completou 370 voltas em 24 horas, três a mais que o carro de Lucas di Grassi. Ambos eram equipados com motores V6 turbodiesel TDI de quatro litros em conjunto com um sistema elétrico “e-tron”.
Team Pace: a equipe brasileira em Le Mans
Incentivados, financeira e moralmente, pelo então presidente da Confederação Brasileira de Automobilismo Carlos Naccache, os brasileiros Alfredo Guaraná Menezes, Paulo Gomes e Mario Amaral decidiram disputar as 24 Horas de Le Mans em trio. Em parceria com a equipe francesa Cachia Team, foi formada a Cachia Team Pace, em homenagem a José Carlos Pace, morto no ano anterior.
O carro que a Team Pace conseguiu foi um Porsche 935, alugado, equipado com um boxer de 2,1 litros com turbo e nada menos que 700 cv. O carro foi todo decorado com os nomes de patrocinadores brasileiros e pintado nas cores vermelho e amarelo.
O vencedor foi o Renault Alpine A442B de Didier Pironi e France Jean-Pierre Jaussaud, com 369 voltas completadas. Já o desempenho do trio brasileiro foi bastante satisfatório: sétimo lugar com 369 voltas completadas. E ainda mais se considerarmos que os Porsche ainda ficaram com a segunda, a terceira, a quinta, a sexta e a oitava posições. Foi uma das poucas edições das 24 Horas de Le Mans nos anos 1970 que não foram vencidas pela Porsche.
O recordista: Thomas Erdos
Thomas é o primeiro à esquerda. Sim, o outro, à direita é Ben Collins, “The Stig”
Thomas Erdos nasceu no Rio de Janeiro em 1963, mas fez sua carreira na Europa. Depois de uma ascensão consistente nas categorias de base — com direito ao título britânico da Fórmula Renault em 1990 — ele se viu muito perto de chegar à sonhada Fórmula 1. Mas ao mesmo tempo em que esteve tão perto do sonho, ele também estava distante: seu patrocínio fora cortado devido à crise gerada pela Guerra do Golfo, iniciada em 1990.
Em vez de fazer as malas e voltar para o Brasil, Erdos continuou na Fórmula Renault, na Fórmula 3 e, em 1995 estreou nas 24 Horas de Le Mans pela equipe de fábrica da britânica Marcos na categoria GT2. Era o início de um recorde brasileiro em Le Mans: Erdos disputou nada menos que 13 edições da prova, conquistando duas vitórias na categoria LMP2 em 2005 e 2006 e um terceiro lugar na mesma categoria em 2010.
A vítima de Le Mans – Christian “Bino” Heins
Foto: Revista Warmup
Christian Heins estreou nas 24 Horas de Le Mans em 1959, quando dividiu um Porsche 718 RSK com o francês Carel Godin de Beaufort. A dupla, porém, abandonou a corrida depois de 186 voltas por uma quebra no motor. Nascido em São Paulo em 1935, Heins foi para Stuttgart em 1953 onde fez seu curso técnica de nível superior e um estágio na Mercedes-Benz.
No ano seguinte iniciou sua carreira nas pistas nas 2 Horas de Interlagos e começou a destacar-se até se tornar chefe da equipe Willys no início dos anos 1960. Sua posição rendeu um convite da própria Alpine para disputar as 24 Horas de Le Mans de 1963 em um protótipo Alpine M63, baseado no A108 (não por acaso a versão francesa/original do Willys Interlagos).
Heins topou, pintou seu Alpine com uma faixa verde e amarela sobre a pintura azul. Na quinta hora da prova Heins imprimia um ritmo forte o bastante para liderar sua categoria quando o motor do Aston Martin DP214 de Bruce McLaren e Innes Ireland estourou e despejou todo o óleo contido em seu cárter na pista.
Os pilotos Ninian Sanderon e Mike Salmon, que vinham logo atrás, conseguiram desviar da enorme mancha escorregadia. Roy Salvadori, que vinha em seguida com seu Jaguar E-Type Lightweight, acabou derrapando no óleo e capotou o carro, dando início a um incêndio. Jean-Pierre Manzon bateu no Jaguar e parou no meio da pista. Heins, que seguia Manzon, tentou desviar e bateu em um quarto carro antes de acertar um poste e explodir.
Salvadori e Manzon tiveram ferimentos mas escaparam vivos. Heins não teve a mesma sorte: com queimaduras extensas e graves lesões na cabeça, ele morreu ainda no local com apenas 28 anos. Em homenagem a Heins, seu amigo Wilson Fittipaldi Jr. batizou seu filho com o nome Christian.