Se alguém te perguntar qual é o motor mais preparado no Brasil, as chances de você responder “o motor AP” são, sem dúvida, bem altas. Ele pode não ser o mais moderno, mas certamente é o mais difundido, com uma das maiores ofertas de peças nacionais para preparação turbinada e aspirada. Dá para dizer a mesma coisa dos motores Fiat, por exemplo? Aqui no Brasil, não. Mas na Argentina a história é outra.
Enquanto a Fiat chegou ao Brasil somente na metade dos anos 1970, na Argentina a marca já vendia seus modelos desde os anos 1960. Mais tarde, em 1980, os italianos criaram na Argentina uma subsidiária de sua joint-venture com a PSA, batizada Sociedad Europea de Vehículos para Latinoamérica, mais conhecida como Sevel.
A Sevel era empresa que, na Argentina, fabricava sob licença veículos e componentes de várias marcas — Fiat, Peugeot, Alfa Romeo, Chevrolet e Citroën. Um de seus produtos mais populares foi o Fiat Uno, que no país vizinho usava motores 1.0 de 52 cv e 1.6 de 87 cv. Eram diferentes dos motores dos Uno brasileiros, mas chegaram até nós em algumas versões do modelo e, por aqui, foram apelidados com o nome da empresa que os fabricava. De 1989 a 2000, foram produzidas 179.767 unidades — um número bastante elevado em um país com pouco mais de 10 milhões de veículos em circulação.
Com um volume de produção tão alto, os motores Sevel na Argentina acabaram se tornando extremamente populares — pense neles como o Volkswagen AP para os brasileiros. Assim, quando os hermanos procuram um carro barato e com ampla oferta de peças, é o Fiat Uno que entrega essas características por lá. Com isso o modelo se tornou extremamente popular em arrancadas e outras categorias amadoras do automobilismo local, o que levou a uma grande variedade de receitas para aumentar a potência — e por sua vez deu origem a um grande mercado de peças.
Um típico Uno argentino. Note que eles gostam de deixar a dianteira mais baixa do que a traseira, a fim de otimizar a tração em arrancadas
A versão mais popular como ponto de partida para modificações é o Uno SCV/SCR, equipado com motor 1.6. Diferentemente do nosso Fiasa, o Sevel pode chegar a 1,9 litro de deslocamento e é bastante girador. Dá só uma olhada nas rotações indicadas por este conta-giros ligado a um Uno 1.6 argentino:
Sim, são 10.000 rpm! É claro que esta é só uma demonstração do potencial do Sevel 1.6. É muita coisa, e pode danificar o motor — afinal, isto é velocidade típica dos motores de moto, que são mais leves —, mas os Fiat Sevel preparados podem chegar aos 8.500 rpm com relativa segurança.
Uma concepção comum sobre os motores de combustão interna é que o fator físico que limita as rotações do virabrequim é a velocidade dos pistões. Isto é quase certo. Na verdade, o fator limitante é a aceleração dos pistões. Esta, por sua vez, depende de uma série de fatores: comprimento das bielas, diâmetro dos pistões, deslocamento e fluxo do cabeçote. Além disso, também leva-se em conta o peso, a composição e equilíbrio o das partes móveis.
Um motor de curso mais curto naturalmente será mais girador — por esta razão, motores de moto costumam ser superquadrados, isto é, ter o curso dos pistões menor do que o diâmetro dos cilindros. No entanto, para atingir rotações estratosféricas, não basta ter bielas curtas e curso reduzido. Por exemplo: quando um motor gira alto demais, existe a possibilidade de as molas não suportarem a frequência exigida pela rotação. Nesse caso, a válvula começa a girar aberta — o que pode ser extremamente nocivo e até mesmo causar a perfuração do pistão no momento da compressão. Um sistema de válvulas desmodrômicas (atuadas mecanicamente, como explicamos neste post) pode resolver este problema, bem como a adoção de molas duplas. No entanto, estas medidas podem elevar bastante o custo da preparação. Por isso, a maioria dos preparadores opta por não elevar tanto assim o giro do motor. Daí, o limite “seguro” de 8.500 rpm no motor Sevel.
Normalmente, os fabricantes mantém o giro máximo abaixo do que o motor é capaz de suportar (tarefa que ficou mais fácil e eficiente com a evolução dos sistemas eletrônicos). E, naturalmente, alguns motores são mais giradores do que outros. Na maioria das vezes, contudo, cabe aos preparadores fuçar e descobrir qual é a capacidade máxima de giro que um motor pode suportar. Foi o que eles fizeram com o Sevel – e descobriram que ele é bem mais resistente e versátil do que o motor fabricado pela Fiat no Brasil.
Já faz dois anos que o Fiat Uno original saiu de linha e, de fato, para a maioria das pessoas, a imagem que ficou dele é a de um dos carros mais frugais já vendidos no Brasil — especialmente nos últimos anos, quando até mesmo o revestimento nas colunas internas era ausente e o trilho dos bancos foi encurtado.
Por outro lado, a pegada back to basics tem seus admiradores. Para eles, o Uno não é “pelado”, é “aliviado” (Fiat Uno Superleggera?). Some a isto as inerentes qualidades dinâmicas, e o que você tem é uma bela base para um motor girador. Que tal deixar o orgulho de lado e ir bater um papo com os argentinos?
[ Fotos: Enfierrados.com ]