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Pensatas

Você rejeita o carro elétrico pelo que ele é, ou pelo que ele representa hoje?

Há exatos dez anos e seis meses falamos sobre carros elétricos pela primeira vez no FlatOut. Era uma notícia sobre a tentativa da cidade de Frankfurt em eliminar os automóveis até 2034. Desde então, estamos acompanhando a evolução das tecnologias, os desafios que o carro elétrico enfrenta, e, claro, as tentativas de transformá-lo na única opção de transporte individual motorizado.

Agora, depois de dez anos e a menos de 10 anos do pretenso banimento da combustão elétrica na Europa e na Califórnia, os carros elétricos estão populares como nunca foram. No Brasil eles já são quase 3% dos carros novos vendidos. Quem diria?

A popularização dos carros elétricos também popularizou as discussões sobre o tema, sobre as vantagens e desvantagens dos carros elétricos, e é claro que ela acabou chegando ao ponto de clubismo. De um lado, há dezenas de grupos/clubes online de proprietários e entusiastas dos carros elétricos, uma legião de influenciadores que cresceu e apareceu por causa dos carros elétricos. Do outro, o pessoal que faz questão de ouvir ronco de motor, de sentir o cheiro do combustível, de ter a possibilidade de dirigir sem parar até esvaziar o tanque e “recarregar” em cinco minutos em qualquer posto.

Meu primeiro contato com um carro elétrico: o Volvo C30 Electric em 2012

O clubismo é simplesmente a polarização da discussão, para usar a palavra da moda ao se referir a debates públicos. Extremos que não se interessam pelas nuances que escondem os pedaços da realidade. De um lado, tudo é perfeito nos elétricos. Do outro, tudo é errado nos elétricos. E é claro que a realidade (que, aqui, é sinônimo de “verdade”), está em algum lugar entre estes dois polos.

É difícil encontrá-la, mesmo com toda a comunicação possível atualmente. Há coisas que não são ditas em público. Há coisas que sequer são ditas, apenas executadas. A verdade, talvez, seja algo que nunca iremos encontrar. Mas é possível ao menos entender algumas pistas que a realidade deixa pelo caminho, o que nos ajuda a não ser um radical defendendo uma causa que talvez não seja realmente nossa. Isso nós podemos fazer — e me permito a pretensão de propor alguns fatos e opiniões e pontos de vista sobre os carros elétricos atualmente.

A primeira delas é fundamental para sair dos extremos:

Não confunda o carro elétrico com as políticas sobre o carro elétrico

Olhe para o carro elétrico estritamente como uma máquina. Esqueça que ele está sendo usado para matar os carros de combustão interna. Olhe para ele como alguém que gosta de máquinas em geral. É impossível dizer que ele não é fascinante como máquina: seu motor é altamente eficiente e durável. Despeja potência a níveis inimagináveis 30 anos atrás com a confiabilidade de um ventilador de teto, a um custo relativamente baixo. Isso, em um carro, se traduz em velocidade instantânea, em arrancadas antes só acessíveis a donos de esportivos.

Não é uma máquina perfeita, claro. Como ela não produz energia a bordo, ela precisa carregar essa energia consigo. Por isso, é preciso usar uma bateria pesada que afeta seu comportamento dinâmico como carro. Mas nenhuma máquina é perfeita. Mesmo um Dodge Demon tem seu inconveniente: experimente bancar o combustível de um carro desse no vai-e-volta do trabalho.

A essa altura você já deve estar preparando seus argumentos contrários ao carro elétrico. Eu sei porque é isso o que a discussão atual te faz fazer. Mas antes de continuar a formular estes argumentos, responda a si mesmo: eles miram na máquina, na comparação do carro elétrico com o carro a combustão, ou no símbolo sócio-político-ambiental que o carro elétrico se tornou? Pense bem.

Porque é justamente este o problema: as pessoas estão misturando as coisas. O desprezo pela política ambiental que irá matar o carro de combustão interna em algum momento do futuro, se torna o desprezo pela máquina e pelo produto. E talvez você não tenha percebido que, apesar da existência do carro elétrico ser motivada por estas políticas, ele não significa a aceitação absoluta delas.

É possível ser contrário ao banimento dos carros elétricos e, ao mesmo tempo admirá-los e observá-los com interesse genuíno. Só assim poderemos encontrar a verdade/realidade sobre o carro elétrico e como poderá ser o futuro dos automóveis. Rejeitá-los sem conhecê-los, é tão estúpido quanto aceitá-los sem conhecê-los. É apenas o outro lado da moeda.

Imagine um cenário onde a popularização e experimentação do carro elétrico leva à conclusão que ele não será realmente viável. Teremos um fato, algo concreto, e não apenas estatísticas e suposições. Outro cenário hipotético, mas plausível, é a popularização e experimentação do carro elétrico resultar em uma participação de mercado que trará o equilíbrio de emissões, tornando desnecessário o banimento do carro de combustão interna. Como eu já disse antes aqui no site e no podcast do FlatOut, o futuro não está esculpido em pedra. Não é uma certeza. As coisas já estão mudando hoje em relação às políticas do carro elétrico. Não despreze a máquina porque você despreza a instrumentalização dela. Carros elétricos podem ser úteis e interessantes. E aqui vem o segundo ponto desta pensata:

O carro elétrico pode ser uma boa alternativa para algumas pessoas

Não meça o mundo pela sua régua. Às vezes você é um quadrado em um mundo de círculos. O jeito que você usa o carro pode ser muito específico — e ele certamente é, porque você está num site de entusiastas. Para algumas pessoas, o carro elétrico pode ser tão adequado quanto um Up TSI está sendo para mim, e como um Virtus MSI é para o MAO, e como o Sandero RS é para o Juliano.

Depois de conversar com proprietários de elétricos e dar uma boa olhada nos grupos de proprietários, encontrei um perfil que parece muito satisfeito com eles: motoristas que rodam muito e que têm um segundo carro para viajar que têm geração própria de energia (painéis solares). Parece um perfil específico, mas o Brasil tem mais de 2 milhões de residências com energia solar. Fora os estabelecimentos comerciais. Também não é raro encontrar alguém que roda 3.000 km por mês, por exmeplo. E menos raro ainda alguém que tenha dois carros. Na ponta do lápis, esses carros podem ser vantajosos para esse perfil. Mais que um carro a combustão.

O carro elétrico, afinal, não foi feito para você viajar com a família nas férias — como fazem alguns proprietários mais confiantes e entusiasmados. Ele foi pensado para o vai-e-volta diário. A rotina de casa-escola-trabalho-supermercado-casa. Pense nesse cenário: você tem seu carro a gasolina para a família viajar, e tem um elétrico compacto para rodar na cidade o dia todo, recarregando à noite com a energia solar gerada no seu telhado. Funciona para todo mundo? Não, da mesma forma que o Sandero RS não funcionou para a minha rotina. Eu não desprezo o Sandero RS só por que ele não cabe na minha vida.

Aqui chego ao ponto central da minha pensata: desprezar o carro elétrico porque ele não cabe na sua vida e por que você despreza a política ambiental que favorece o carro elétrico e quer matar o seu carro, é alimentar ainda mais a polarização. Já te ocorreu que talvez seja exatamente isso o que os grupos de poder e pressão desejem? É uma técnica clássica de manipulação de narrativas: o uso de falácias simplistas para fabricar inimigos que não existem.

Eu explico: digamos que você tem uma bebida que hidrata com mais eficiência que água. Ela tem efeitos colaterais, mas a hidratação é mais eficiente. Como a hidratação é fundamental para a manutenção da boa saúde, você cola na sua bebida o rótulo de “promotora de saúde”. Quem for contrário a ela, não está sendo contrário à sua bebida, apenas. Estará sendo também contra a promoção de saúde. Sacou?

Velocidade mata, radares controlam a velocidade. Logo, radares podem evitar mortes, ou salvar vidas. Logo, se você é contra o radar, você é contra salvar vidas. É uma manipulação simples, elementar, que qualquer boboca com alguma habilidade retórica consegue driblar, mas que funciona bem na manipulação da caixa de ressonância da discussão pública.

E aí o que acontece: você não está criticando o carro elétrico, mas está sendo contra “a redução das emissões”, contra a “salvação do planeta”, e contra “a melhoria da qualidade do ar”. Quando você aceita que o carro elétrico pode ser uma opção para algumas pessoas, você anula essa manipulação de narrativa e sai de um dos polos extremados da discussão, tornando-a mais aceitável a quem repudia a polarização. Você traz bom-senso e ponderação para a discussão, que volta à civilidade e deixa de parecer uma briga territorial de animais.

Pense a respeito: um carro elétrico pode ser bem legal. Pode não ser perfeito, nem servir para seu tipo de uso, mas a individualidade não é a régua do mundo. Mas ela é o peso e o contrapeso de uma grande balança. A sua individualidade pede uma solução e a minha pede outra. Por isso, a popularização do carro pode ter uma consequência positiva, que é a ampliação das opções de transporte individual. Ela só não pode ser a única, porque aí não é opção, mas imposição. E a história já nos mostrou aonde imposições em nome de uma “solução definitiva” acabam nos levando…


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